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André Pieyre de Mandiargues: um fantástico surrealista

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 98-108)

Bozzetto, ao discorrer sobre os efeitos do fantástico e sobre o fantástico moderno, dedicou um capítulo inteiro à narrativa de APM. Para esse crítico, APM, além de ser um autor a que chamou “fantástico moderno”, é também um autor que estabelece um diálogo com a

estética surrealista. Ao se referir a APM em seus escritos, usou a expressão “fantástico

surrealista”, que adotaremos na presente tese. Essa associação pode parecer estranha, visto os surrealistas terem raramente feito alusão ao fantástico e principalmente por não terem valorizado muito o romance. O que interessou aos surrealistas da primeira geração não foi somente o mundo onírico, mas também o maravilhoso, um elemento bastante explorado por APM. Bozzetto vê APM não só como um "sucessor do surrealismo” 171

, mas também co mo um autor que tem um "parentesco secreto" com a obra fantástica de Marcel Béalu (1908- 1993). APM era grande admirador de Béalu, sobretudo pelo fato de este dar bastante ênfase ao insólito e ao fantástico. Esse próprio autor reconhece ter estabelecido um diálogo entre sua

novela L'araignée d'eau (prefaciada por Mandiargues) e a novela “Clorinde” de APM 172.

Para Bozzetto, tanto APM quanto Béalu são escritores cujos textos se inserem no “fantástico surrealista”.

171

BOZZETTO, R. Ter r itoir es des fantastiques. Aix-en-Provence : Université de Provence. 1998.p.54

172

MANDIARGUES, A.P. Soleil des loups. Paris. Grasset. coll. "Les cahiers verts". 1959 [coll. "Les cahiers rouges". Paris. Grasset. 1984]

[...] Diante de textos mais próximos de nós no tempo, de André Pieyre

de Mandiargues do Musée noir ou de Soleildes loups – ou ainda os de

Marcel Béalu – pode-se perguntar sobre [a existência de] um “fantástico

surrealista” 173

Segundo Salah Stétié, APM sempre se sentiu surrealista e o será sempre graças ao seu gosto violento pela liberdade do uso da palavra e pelo gosto de certa violência, capaz de “reequilibrar e de corrigir as falsas relaçõesinstituídas entre os homens e as mulheres [...]” 174 Embora a obra de APM sempre tenha sido associada ao surrealismo por seus críticos mais importantes (Bozzetto e Grossman), as novelas de três das coletâneas em que estão os

contos e novelas que estudamos nesta tese - Le musée noir, Soleil des loups e Feu de braise -

são sempre citadas como pertencentes ao gênero fantástico e ilustram inúmeras antologias temáticas do referido gênero.

Para Bozzetto, o APM fantástico se situa exatamente na “zona de influência” do surrealismo. Primeiro, pelo viés das epígrafes, quando transcreve frases de André Breton, Philippe Soupault ou de Salvador Dali. Depois, por dedicar grande parte das narrativas dessas

coletâneas, principalmente as de Le musée noir, a figuras desse movimento, tais como Léonor

Fini, Georges Hugnet e Paul Éluard. Sua declarada admiração pelo surrealismo faz dele,

segundo o crìtico Claude Leroy, um “epìgone do surrealismo” 175. APM não concebe a

imaginação sem que essa seja uma festa onde o sentido do cerimonial se reveste de uma precisão luxuosa.

APM mantém sua fidelidade ao fantástico e ao surrealismo, principalmente na sua predileção pela abordagem dos temas como o amor impossível, que é também um amor fantástico e surrealista, como o encontro, o insólito e o olhar. Um narrador, que pode ser o

173

BOZZETTO, R. Ter r itoir es des fantastiques. Aix-en-Provence : Université de Provence. 1998. p.54

174

STÉTIÉ, S. Ma ndia rgues. Coll. Poètes d’aujourd’hui. op.cit. p.8

175

próprio protagonista, como em “Le passage Pommeraye” e “Le pain rouge”, toma para si o relato do encontro como um último testemunho de uma revelação. A partir do relato de encontros com seres inimagináveis, como uma mulher minúscula em uma floresta (“Clorinde”); três bailarinas minúsculas dentro de uma pedra (“Les pierreuses”); um homem

também minúsculo com cabeça de leão (“Le diamant”); ou entre um homem e uma mulher

misteriosa segundos antes de sua própria morte (“Le Passage Pommeraye”); podemos dizer

que estamos diante desse "impossível de viver", nas palavras de Bozzetto176.

Em uma entrevista dada a André Parinaud177, Breton anuncia, citando APM, “ter

detectado um novo fantástico” 178

quando conheceu sua coletânea, Soleil des loups. APM

também se vê como um escritor fantástico e surrealista. Faz alusão a sua predileção e

engajamento em dois de seus escritos não ficcionais (Le désordre de la mémoire, Un saturne

gai). Seu pertencimento a um gênero ou estética não é, evidentemente, atestado por sua

simples afirmação, mas o aproxima, sem dúvida do fantástico e do surrealismo. No prefácio

que redigiu à obra L’Aragnée d’eau de Marcel Béalu, APM apresenta o texto como “uma das

produções mais acabadas da literatura francesa no campo do fantástico”. 179 Este texto,

segundo o próprio Béalu, estabelece um diálogo com o conto “Clorinde” de APM por tratar da relação amorosa impossível entre um homem e uma aranha minúscula. No momento em que afirma esse seu pertencimento ao gênero, APM nos sugere que sua obra se situa entre esse gênero e a estética surrealista.

No Primeiro Manifesto, Breton escreve a respeito de seu desprezo pelos romances e a valorização do maravilhoso:

176

BOZZETTO, R. Ter r itoir es des fantastiques. Aix-en-Provence : Université de Provence. 1998. p.58

177

PARINAUD,A. André Br eton. Paris. revue Arts. 1972

178“la détection d’un nouveau fantastique”

Si le style d’information pure et simple, dont la phrase précitée offre un exemple, a cours presque seul dans les romans, c’est, il faut le reconnaître, que l’ambition des auteurs ne va pas très loin. Le caractère circonstanciel, inutilement particulier, de chacune de leurs notations,

me donne à penser qu’ils s’amusent à mes dépens. [...] il ne m’est laissé

d’autre pouvoir discrétionnaire que de fermer le livre, ce dont je ne me fais pas faute aux environs de la première page.

Dans le domaine littéraire, le merveilleux seul est capable de féconder des oeuvres ressortissant à un genre inférieur tel que le roman et d’une façon générale tout ce qui participe de l’anedocte. 180

O que despertava o interesse dos surrealistas da primeira geração era, principalmente, o mundo onírico e o maravilhoso. É por essa razão que os surrealistas se interessaram pelos textos góticos e seu universo “maravilhoso noir”. André Breton faz alusão, no mesmo

Manifesto, à obra O monge, de Lewis. Sobre esse livro, Breton disse ser ele “um modelo de

justeza” e, logo a seguir, faz uma alusão ao fantástico em uma nota, já citada anteriormente,

de certa forma enigmática, enaltecendo o mundo real como sendo fantástico.181

Em APM, o fantástico e o surrealismo participam de uma tendência mais geral, o que reflete uma preocupação temática com o estranho, o inexplicável, as premonições, e também com a violência e o exagero. O que resulta desses temas é o mal -estar que ronda sempre suas narrativas. Esse mal-estar é provocado, primeiramente, por pequenos detalhes que são posteriormente confirmados, como os presságios, que se tornam cada vez mais explícitos e se transformam, de maneira às vezes imperceptível, em um caminho para o desfecho irremediável: a morte do protagonista. O amor nos contos de APM é então, segundo Alain

Clerval, “uma selvageria elementar, disciplinada por um ritual rigoroso e relatado com

180

BRETON, A. Ma nifestes du surr éa lisme. Paris: Gallimard. 1975. p.15

181“Ce qu’il y a d’admirable dans le fantastique, c’est qu’il n’y a plus de fantastique: Il n’y a que le réel” p.25

minuciosa precisão”. 182No conto “Le diamant”, a selvageria do homem com cabeça de leão ao possuir Sarah é expressa neste trecho:

D’un petit saut, qui aplatit sa crinière contre ce que l’on pourrait nommer le plafond de la chambre cristalline, il réunit ses pieds élastiquement. Les talons nus battirent et, d’une enjambée, il fut sur Sarah Mose. […] Il se retourna. L’espace dont ils disposaient tous deux était trop mesuré vraiment pour qu’il eût besoin de longs efforts avant de la saisir. 183

Esse encontro descrito no conto “Le diamant” revela um tipo de fusão ligada ao desejo

e à transgressão. O desejo concretizado do homem com cabeça de leão faz com que Sarah “reveja” sua relação com os homens, após a cerimônia de iniciação dentro do diamante. O aspecto erótico desta cena é hiperbolizado pela escolha do personagem masculino, e stranho e violento, como um animal com quem se assemelha fisicamente.

Ao questionar a sustentação da ortodoxia surrealista, no que se refere ao aspecto formal, principalmente após o desaparecimento de André Breton, APM se coloca, de certa forma, como um autor que quer reagir às regras impostas por Breton. APM reconhecia em Breton, que admirava, a figura principal do surrealismo embora admirasse também Aragon. Ora, ao que parece, APM não teve nenhuma dificuldade em aceitar os preceitos surrealistas ou mesmo continuar sendo fiel a seu mestre, afirmação que pode ser evidenciada em seus contos.

Os efeitos dessa construção revelam que APM tem uma visão não conformista do mundo e da literatura. Para APM, os amores extremos, que são uma variante do amor fantástico, atingem um além do imaginável, o gozo indizível que é a morte. Ao expor essa

182CLERVAL, A. “André Pieyre de Mandiargues, un érotique baroque”. Paris:

Nouvelle Revue França ise. nº 224. août 1991. pp. 77-81

183

MANDIARGUES, A. P. Le diamant. Feu de bra ise. Paris : Grasset. coll. "Les cahiers verts". 1959 [coll. "Les cahiers rouges". Paris. Grasset. 1984]

construção com outra roupagem, deixa transparecer que não há, na verdade, linhas de ruptura

emrelaçãoao surrealismo de Breton e o seu. Nessa atitude há uma virtude:

Jouer à condamner était pour André Breton une sorte d'enchantement, quoique je n'aie participé qu'à la seconde époque du surréalisme, très adoucie en comparaison de celle d'avant guerre, où le jeu infernal allait

aux dernières extrémités bien plus rigoureusement.184

APM reconhece em Breton não só um contestador, mas também um controlador. Mas, como não vivenciou o primeiro momento do movimento, mais duro em termos de exigências

formais, temáticas e políticas com a questão do engajamento, APM pôde dar livre curso à sua

imaginação sem ser incomodado ou controlado. Daí não ter sido cerceado por não ter sido

seguidor fiel das ideias iniciais de A. Breton. Segundo Flávia Nascimento185, APM é um

“surrealista ambìguo”, pois tem “um gosto manifesto por gêneros ficcionais tão “literários” quanto o conto e a novela".

A ambigüidade de que fala Nascimento, sobre APM ser um escritor com “exuberância

imaginativa” e com um “notável grau de exigência formal”, revela que APM trabalha com temas cujo quadro:

pertence sem dúvida ao domínio do impossível, a essas regiões mentais que qualificamos como absurdas, mas é penetrante e persuasivo, porque estruturado segundo uma lógica da linguagem que poderia se prestar à

narração de qualquer história realista.186

184

MANDIARGUES, A.P. Le désor dre de la mémoire. Entretiens avec francine Mallet. op.cit. p.111

185

NASCIMENTO, F. “As artimanhas do esteta artífice. Apontamentos sobre a composição d’O museu negro de

André Pieyre de Mandiargues”. Revista de Letras. Ed. UFPR. Curitiba: nº 62. pp.-41-59. Abril 2004. p.46

186

NASCIMENTO, F. “As artimanhas do esteta artífice. Apontamentos sobre a composição d’O museu negro de

Concordamos com a denominação de surrealista ambíguo, por acreditarmos que APM é um surrealista diferente dos outros. Segundo ele próprio, não foi um bom discípulo de Breton. Demonstrou, no entanto, à maneira dos surrealistas, um não-conformismo absoluto. Está posta, portanto, a contradição: APM é um surrealista embora com uma leitura particular dessa estética. Ele soube se ajustar com seus meios aos obstáculos que poderiam lhe impedir o

percurso. Na novela “Le pain rouge”, sua escrita remete ao automatismo psíquico tão

valorizado por Breton:

(...) feuillus de la bourbe fanée qui tombe des théières, quel gibier jamais leur assignai-je que ce qui est au-dessous du bord brillant de

l'imperméable? 187

Para Roger Bozzetto, o fantástico não deve ser identificado por traços que estão circunscritos a um único período. Daí a afirmar que o gênero fantástico é compartilhado por muitos autores de diferentes períodos, pelo simples fato de possuírem traços comuns. Segundo Bozzetto, o fantástico contemporâneo tem principalmente em APM uma vertente surrealista cuja fonte está “nas figuras de um maravilhoso esquecido no qual a dimensão onìrica retoma o lugar que lhe é próprio” 188

. A realidade adquire uma dimensão onírica e

dissolve a lógica do cotidiano, modificando-a. É em “Le pain rouge”189, sua novela mais

surrealista, que a dimensão onírica é valorizada e aprofundada:

Un soulier qui s'écoule entre des flaques d'eau, et le talon n'est plus, ou bien il se détache, des boutons manquent, la bride flotte sur le cou d'une jeune cheville, un bas de soie artificielle où l'humide a peint des fleurs japonaises (...) la beauté assassine d'une fermeture éclair qui a cedé et

qui bâille sur un flanc gras (...)190

187

MANDIARGUES, A.P. Soleil des loups. Paris: Robert Laffont. 1951. p.110

188

BOZZETTO, R. Le fa nta stique dans tous ses éta ts. Aix-en-Provence. Université de Provence. 1998. p.10

189

MANDIARGUES, A.P. Le pain rouge. Soleil des loups. Paris : Robert Laffont. 1951. cf. anexo p. 169

190

O que há nesse trecho é uma imagem poética que produz uma perturbação. Segundo Pierre Reverdy, “a imagem é uma pura criação do espírito. Ela não pode nascer de uma

comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos distantes”.191A “beleza

assassina de um fecho éclair” nos mostra que a imagem gerada por essa relação distante entre “beleza assassina” e “fecho éclair” é fruto do tratamento surrealista da linguagem por ser esta imagem aparentemente incompatível.

Trataremos, no segundo capítulo, da importância do olhar como propulsor do encontro e consequente motor da reviravolta na narrativa fantástica surrealista de APM.

191

2 A EXPERIÊNCIA DO OLHAR EM APM

[...] Tonoeil tiède et doré me regarde (Le mouton noir. p.159)

[...] le regard qui appuyait sur le mien avec insistance me faisait comprendre [...]

(“LepassagePommeraye”. p.106)

Ao privilegiar a linguagem como jogo, o surrealismo permitiu um novo modo de olhar. Para APM, olhar e escrever não são duas, mas uma única atividade, pois não estão dissociadas. APM se define, antes de qualquer coisa, como un “voyeur” de uma realidade que

se camufla. Para ele “a visão deve preceder as palavras” 192. Isso quer dizer que a lingua ge m

em APM materializa uma experiência de ordem visual, e por isso, palpável. Sua escrita brota do olhar aguçado que percebe as coisas como portadoras de forças ativas que tr ansbordam além das aparências.

APM explora o poder do olhar e faz com que esse adquira materialidade. Os seres e objetos que a visão pouco alcança saem de sua existência secreta para se mostrarem nas páginas brancas sob a pena do escritor. APM refaz o processo da escrita por intermédio da iconicidade da língua, cuja dimensão artística é a polissemia das imagens. Em APM, as

imagens estruturam a mise en scène de seu imaginário, cujo segredo é a abordagem do mundo

invisível que se mostra por intermédio do olhar que tudo aumenta. Em seus contos e novelas, essa reconstituição é regida pela curiosidade que lhe provocam os detalhes e pela escrita cuidada que relata esses mesmos detalhes. Essa abordagem reforça o poder de atualização de sua narrativa, de sua experiência e gosto pela atmosfera surrealista e sua atração por temas do fantástico.

192

Antes de abordarmos a experiência do olhar em APM, apresentamos os contos com os quais iremos trabalhar em cada seção. Na primeira seção deste capítulo, abordaremos a antecipação dos acontecimentos a partir do olhar que percebe os sinais e os indícios que desestabilizam a narrativa na novela “Le passage Pommeraye” da coletânea Le musée noir

(1974). Em seguida, em uma segunda seção, trataremos da experiência do olhar como elemento que define o real, ao mesmo tempo em que o transfigura. O mundo, seja ele visível ou invisível, pode ser descrito para em seguida ser desconstruído. Analisaremos, nesta seção, a novela “Le diamant”, da coletânea Feu de braise (1984). Finalmente, na terceira seção deste capítulo, trataremos do poder que adquire a imagem em seus escritos, de como ela é percebida

e recebida pela imaginação do leitor que a constrói. Analisaremos este aspecto no conto “Le

pain rouge”, que pertence à coletânea Soleil des loups (1951).

A primazia do visual é percebida em APM quando se constata que o autor dirige seu olho como uma espécie de flecha em direção à mesmice das aparências e quando isso nos é mostrado pelo seu apuro na descrição minuciosa. Ao fazer uma leitura do q ue é pouco visível, o texto se abre para um espaço interior. Podemos perceber, pelas minúcias das descrições, sua existência real e a instauração da tarefa de esclarecer as fronteiras entre esses dois mundos: o pouco visível e sua posterior representação. Escrever uma narrativa ou um poema é, para APM, dar corpo às imagens reanimadas por seu olhar, buscando uma linguagem que materialize esse potencial ativo de transformação. A banalidade da realidade é descrita fugindo de associações corriqueiras e prosaicas, o que confere às palavras uma dimensão visual. Nessa perspectiva, poderemos falar de uma tipologia da criação do que é invisível. Só é possível se apropriar do real estabelecendo uma relação com o irreal e o desproporcional.

Passamos agora ao estudo de um elemento importante na narrativa: os presságios, sejam eles da ordem do encontro ou os relacionados à morte.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 98-108)

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