ANA CÂNDIDA BRANDÃO
O olhar e o surrealismo fantástico em André Pieyre de Mandiargues
O olhar e o surrealismo fantástico em André Pieyre de
Mandiargues
Tese de Doutorado em Literaturas de Língua Francesa apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Literaturas de Língua Francesa).
Orientador:
Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes.
Rio de Janeiro
Ana Cândida Brandão
Orientador : Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas.
Examinada por:
__________________________________________________ Presidente, Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
__________________________________________________ Prof. Doutor Edson Rosa da Silva
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
___________________________________________________ Profª Doutora Maria Cristina Batalha
Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ
____________________________________________________ Profª Doutora Ana Maria Amorim Alencar
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
____________________________________________________ Profª Doutora Guacira Marcondes Machado Leite Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP
____________________________________________________ Prof Doutor Marco Lucchesi
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Suplente
____________________________________________________ Prof. Doutor João Camillo Barros de Oliveira Penna
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro Agosto de 20
terem me ensinado cedo a apreciar a música e a literatura, pelo seu entusiasmo contagiante, seu humor e imensa cultura e por terem me disponibilizado minha primeira biblioteca.
A meus filhos, Flavia e Pedro Henrique, meus maiores incentivadores, minhas fontes inesgotáveis de felicidade, pelas alegrias que sempre me deram, pela acolhida a minhas escolhas, pela intensa troca e pela paciência nos momentos em que estive particularmente ansiosa.
A meus três irmãos, grandes conhecedores de literatura, pelo debate constante.
Ao professor Marcelo Jacques de Moraes pela orientação, críticas, puxões de orelha e muita paciência durante o período desta pesquisa, principalmente pelas sugestões e pela compreensão das dificuldades que encontrei.
As minhas queridas amigas Diva Maria Rocha, Suely Lupo, Fátima G. Abud e a minha querida prima e amiga Célia Monterosso, pelas palavras de estímulo, entusiasmo e pela amizade que desfrutamos há longos anos. A Marie José Bourdin, por ter me recebido em Paris durante o término da minha pesquisa. Aos colegas professores Roberta Andrade e Valmir Miranda, pelos preciosos conselhos e ajuda nos momentos cruciais e ao querido amigo Luiz Flávio de C. Costa pelos constantes debates e trocas intelectuais.
Aos colegas do Colégio Pedro II, principalmente a Jorge de Azevedo e Viviane Lima pelas valiosas palavras de apoio e estímulo, fundamentais nos momentos importantes e a Patrícia de Souza Martins pela disponibilidade em me ajudar com a tradução do resumo em inglês.
Aos colega do CEAT, principalmente às queridas amigas e colegas professoras Thereza Galvão e Tais de A. Mesquita , por compartilharem minhas alegrias e pelas palavras de entusiasmo.
Aos professoras Fúlvia Moretto, Guacira Marcondes Machado, Lídia Fachin, Jorge Curi e Dante Tringali, fundamentais na minha formação desde o início dos meus estudos na UNESP de Araraquara, pelos ensinamentos e por terem despertado em mim o desejo de aprofundar meus estudos literários.
Ao professor Henri Béhar da Université de Paris III (Sorbonne-Nouvelle) por ter me apresentado Mandiargues em Paris no final dos anos 70 e por ter me ensinado a pesquisa no Centre de Recherches sur le Surréalisme.
Aos membros da banca de qualificação, professores Maria Cristina Batalha e Edson Rosa da Silva, pela leitura atenta e pelas críticas preciosas.
Sinopse
RESUMO
BRANDÃO, Ana Cândida. O olhar e o surrealismo fantástico em André Pieyre de
Mandiargues. Rio de Janeiro, 2010. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – faculdade
de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
A análise de algumas narrativas curtas de André Pieyre de Mandiargues sob o viés do olhar nos permite atestar seu diálogo com a estética surrealista e o gênero fantástico. Partindo do pressuposto da existência, em suas narrativas, de marcas deste gênero e desta estética, ressaltamos sua escrita barroca que é uma marca de seu gosto pela descrição minuciosa, fruto de seu olhar atento. Pretendemos mostrar, nesta pesquisa, de que maneira este autor concilia a experiência do olhar com a do encontro e sua consequente mudança de percepção do real. Desta forma, ressaltamos seu gosto acentuado pelo visual e pela violência, resultado do encontro com uma mulher
enigmática. Apoiamos nossa reflexão nos textos de Roger Bozzetto sobre o “horror
moderno”, uma das variantes do fantástico contemporâneo bem como na leitura dos
manifestos do surrealismo e na discussão sobre o maravilhoso e o insólito. A grande aparente contradição desta abordagem reside na conciliação entre o gosto pela escrita cuidada e a atração pela escrita ditada do inconsciente.
RESUMÉ
BRANDÃO, Ana Cândida.O olhar e o surrealismo fantástico em André Pieyre de
Mandiargues. Rio de Janeiro, 2010. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – faculdade
de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
L’analyse de quelques récits courts d’ André Pieyre de Mandiargues par le biais du regard, nous a permis de confirmer son dialogue avec le surréalisme et le fantastique.
En partant du pressuposé de l’existence dans ses récits de marques de ce genre et cette
esthétique, nous voulons renforcer son écriture baroque qui est l’une des marques de son
goût de la description minutieuse, résultat de son regard attentif. Nous voulons montrer,
dans cette recherche, la manière dont cet auteur concilie l’ expérience du regard, de la
rencontre et son changement de perception du réel. Nous renforçons ainsi, son goût accentué par le visuel et par la violence, résultat de la rencontre avec une femme
enigmatique. Nous basons note refléxion sur les textes de Roger Bozzetto sur l’ “horreur moderne”, une des variantes du fantastique contemporain, les manifestes du
surréalisme, le merveilleux et l’insolite. La grande contradition de cette approche c’est
la conciliation qui existe entre le goût de l’écriture soignée et l’atrait par l’écriture
dictée de l’inconscient.
BRANDÃO, Ana Cândida.O olhar e o surrealismo fantástico em André Pieyre de
Mandiargues. Rio de Janeiro, 2010. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – faculdade
de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
The analysis of some short narratives by André Pieyre de Mandiargues from the standpoint of viewing allows us to attest his dialog with Surrealist Aesthetics and Fantastic Genre. Based on the assumption that examples of the aforementioned aesthetics and genre occur throughout his narratives, we highlight his baroque writing, which is marked by the fondness for thorough description, resulting from his perceptive viewing. This research is intended to point out how the author mentioned above conciliates his experience of viewing and encounter and his consequent change of perception of what is real. Thus, we emphasize his featured liking for visual and violence in response to a meeting with an enigmatic woman. The theoretical framework
guiding this study draws on the texts by Roger Bozzetto on “Modern Horror”, one of the
variants of the Contemporary Fantastic, as well as the readings of surrealist manifestos and discussions on the notion of Marvelous and Insolite. The significant noticeable contradiction of this approach resides in the conciliation of careful writing fondness and the appeal for writing dictated by the unconscious mind.
Mais les mots sont bien plus libres que l’on n’admet pas communément.
Brandão, Ana Cândida.
O olhar e o surrealismo fantástico em André Pieyre de Mandiargues / Ana Cândida Brandão. Rio de Janeiro, 2010. 173 f.
Tese (Doutorado em Literaturas de Língua Francesa) –
Programa de Letras Neolatinas, Faculdade de Letras Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010
Orientador: Marcelo Jacques de Moraes
1. Literatura Francesa 2. Fantástico e surrealismo
3. O olhar e a imagem – Teses.
I. Moraes, Marcelo Jacques (Orient.).
II.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras Pós-Graduação em Letras Neolatinas. III. Título.
INTRODUÇÃO ...13
1 O FANTÁSTICO MODERNO E O SURREALISMO: APROXIMAÇÕES ... 20
1.1 O fantástico em André Pieyre de Mandiargues ... 25
1.2 O surrealismo em André Pieyre de Mandiargues ... 69
1.3 André Pieyre de Mandiargues: um fantástico surrealista... 97
2 A EXPERIÊNCIA DO OLHAR EM ANDRÉ PIEYRE DE MANDIARGUES ... 105
2.1 A antecipação ... 107
2.2 O olhar ... 117
2.3 A imagem ... 132
3 CONCLUSÃO... 153
4 BIBLIOGRAFIA ... 162
INTRODUÇÃO
A presente tese tem o propósito de investigar a dimensão fantástica na obra de um
surrealista tardio, André Pieyre de Mandiargues, considerado por muitos críticos como um
autor inclassificável, com múltiplas facetas. Sua obra, alheia a qualquer enquadramento, ocupa
os territórios imprecisos do fantástico e do surrealismo. Embora sempre tenha tido afinidades
com o surrealismo, quando questionado sobre de que forma foi influenciado pelos surrealistas
e sobre sua fidelidade a André Breton, Mandiargues disse:
Je crois avoir été fidèle à André Breton autant ou plus que les autres surréalistes, même si je me suis fait de lui, de son vivant, et me fais toujours davantage, une image qui ne s'accorde pas exactement avec l'orthodoxie surréaliste. Mais qu'est-ce que l'orthodoxie surréaliste? [...]
L'usage semble s'en être perdu à partir de la disparition d'André Breton.1
Apesar de sua não adesão ao grupo e da recusa ao convite feito pelo próprio Breton,
para participar dele, André Pieyre de Mandiargues criou em seus romances e novelas uma
nova forma de surrealismo: o surrealismo fantástico. Tratarei nesta tese do diálogo que a
escrita de seus contos e novelas estabelece tanto com o gênero fantástico quanto com a
estética surrealista, e de como esses assumem na estética de André Pieyre de Mandiargues,
características próprias. Vários de seus críticos, como Roger Bozzetto2, Delphine Gachet3 e
Simone Grossman4 já empregavam as palavras “fantástico”, “surrealista” e “insólito” ao se
1
MANDIARGUES, A. P. Le désor dr e de la mémoire. Entretiens avec Francine Mallet. Paris: Gallimard.1975. p.109
2
Le fanta stique dans tous ses états. Aix-en-Provence: Université de Provence. 2001.
3
"Enchantement et regard: les nouvelles d´André Pieyre de Mandiargues” . (Le musée noir , Soleil des loups, Feu de bra ise). Em SAIDAH, Jean-Pierre (org.). Modernités. Bordeaux : Université Michel de Montaigne, P.U.B. 2002. pp.215 - 221
4
referirem a seus escritos, assinalando as influências do fantástico e da estética surrealista no
conjunto de sua obra, o que é reafirmado pelo próprio Mandiargues em Le désordre de la
mémoire5. André Pieyre de Mandiargues, embora jamais tenha integrado oficialmente o
movimento surrealista pode ser considerado, no entanto, um surrealista da segunda geração.
Se percebemos de maneira inequívoca, principalmente em seus primeiros textos, uma
influência surrealista em sua obra ficcional como um todo, esta se manifesta também em seus
outros textos, de maneira mais livre, mas não menos intensamente. Essas denominações não
foram as únicas a provocar estranhamento. Seu “barroquismo”, caracterizado pela obsessão
pelo visível e pelo uso da descrição exagerada como suporte na construção de espelhos que
multiplicam a estrutura de sua narrativa em espirais, também chocava. Essa aparente
contradição entre o apuro formal do barroco e a narrativa ditada pelo inconsciente faz com
que acreditemos estar diante de um autor cuja retórica é a narrativa poética do delírio.
A escolha do corpus da presente pesquisa atenta para essas abordagens e não pretende
encerrar esta discussão. André Pieyre de Mandiargues, a partir daqui APM, é um escritor que
experimentou diferentes gêneros tais como o romance (prix Goncourt de 1967 com La
Marge), o conto, a novela, o teatro, a poesia e a crítica de arte (escultura, pintura, fotografia).
As cinco narrativas que escolhemos pretendem dar uma visão da familiaridade e da facilidade
com que APM circulava no universo da narrativa breve.
Os contos e novelas com os quais iremos trabalhar foram publicadas nas seguintes
coletâneas : Le musée noir. Gallimard. [1946] 1974; Soleil des loups. Robert Laffont. [1951]
1977 e Feu de Braise. Grasset.[1959] 1966. Da coletânea Le musée noir, sua primeira obra
publicada, escolhemos a novela “Le Passage Pommeraye”, claramente inspirada em Le paysan
5
de Paris de Louis Aragon. Nessa novela, a manifestação do insólito se dá em um mundo
aparentemente lógico, mas recheado de acontecimentos ilógicos. É somente a partir da
publicação dessa primeira coletânea que APM se aproxima de André Breton e passa a
frequentar, ainda que esporadicamente, os surrealistas.
Da segunda coletânea, Soleil des loups, escolhemos as novelas “Clorinde”, que trata do
tema do encontro com uma mulher minúscula e “Le pain rouge”, onde é narrada a viagem do
protagonista ao interior de um pedaço de pão. Da terceira coletânea, Feu de braise,
escolhemos duas novelas: “LesPierreuses” e “Le Diamant”. Nelas, APM confirma seu gosto
pela teatralização e sua obsessão recorrente pelos corpos femininos minúsculos e pela morte
trágica, como resultado da impossibilidade do encontro inusitado levado ao extremo. Sua
obsessão pelas imagens convulsivas também nos interessa. As novelas que escol hemos
testemunham sua incursão pelo gênero fantástico, seu gosto pelo insólito e pelo maravilhoso e
também sua atração pela estética surrealista, ressaltada pela escolha dos temas e pelo uso
particular de uma escrita calcada, contraditoriamente, no gosto barroco, no gosto pelas
descrições grotescas minuciosas. A partir desses elementos, nós nos propomos a estudar
algumas de suas principais temáticas, suas características formais e estruturais e, a partir delas,
destacar as características estéticas particulares de APM.
Nossa hipótese de trabalho está ligada à questão da visualidade. A verossimilhança,
portadora de uma aparência de verdade, é também problematizada nessas narrativas, para ser,
em seguida, desconstruída. A partir dessa desconstrução, a realidade criada por APM se torna
palpável e, portanto, possível. A estrutura narrativa é construída pelo olhar do narrador que é,
algumas vezes, o próprio personagem. O olhar, tanto do ponto de vista de quem olha como de
invariavelmente para o desfecho trágico. Esta relação será trabalhada a partir das perspectivas
de Georges Didi-Huberman6 e de Simone Grossman7.
Nesses contos, a existência de lugares e seres estranhos, principalmente de mulheres
enigmáticas, minúsculas e belas, exerce grande fascínio sobre os personagens masculinos que
sucumbem a elas. Essa relação é ressaltada pelo que Didi-Huberman disse a propósito do
objeto do olhar: esses seres só existem e são possíveis se "fecharmos os olhos para ver".
Segundo Didi-Huberman, nossa visão se choca reiteradamente com aquilo que não
gostaríamos de ter visto, mas que procurávamos inconscientemente; e assim que percebemos
sua presença, o que vemos diante de nós também nos olha e nos inquieta. Essa inquietação
gera fascínio e descontrole e será um dos indícios da morte trágica dos protagonistas
masculinos.
Segundo Didi-Huberman8, a imagem poética carrega em si uma força de distinção, uma
“energia”, e é a partir dessa atribuição que a mesma se apresenta aos olhos do leitor. A
imagem, ao se dar a ver, oferece um sentido. Ela é, pois, um motor de transformação, de
inquietação, de degradação das formas e de ruptura de sentidos. Em APM, essa forma da
transgressão da realidade serve à inquietação do leitor.
Analisaremos, no primeiro capítulo, “O fantástico moderno e o surrealismo:
aproximações”, alguns conceitos e fundamentos teóricos sobre o gênero fantástico, desde o
ensaio já clássico de Tzvetan Todorov até a reflexão de Roger Bozzetto sobre o “fantástico
moderno”. Abordaremos, na primeira seção deste capítulo, a evolução do fantástico desde sua
formulação inicial até o fantástico moderno chamado por Bozzetto de “horror moderno”. Na
6
DIDI-HUBERMAN.G. Ce que nous voyons, ce qui nous r ega rde. Paris: Les éditions de minuit. 1992.
7
GROSSMAN, S. L’oeil du poète. Pieyre de Mandiargues et la peinture. Paris: Minard. 1999.
8
segunda seção deste capítulo, além da abordagem do surrealismo a partir das ideias de Breton,
em seu Manifesto e das de outros críticos, sobretudo franceses, discutiremos os conceitos de
maravilhoso e insólito, relacionando-os no intuito de estabelecer um elo entre o fantástico e o
surrealismo em APM. Na terceira seção do capítulo trataremos de sua abordagem
fantástico-surrealista da narrativa.
No segundo capítulo, “A experiência do olhar em APM”, analisaremos as relações
estabelecidas entre a antecipação, o olhar e a imagem. O choque que o olhar provoca é
experimentado quando o personagem percebe o ser ou objeto que o atrai. Desse choque é
produzida uma imagem que é percebida como fantástica. A uma experiência análoga a essa,
Didi-Huberman deu o nome de déchirure que traduziremos aqui por rasgo. Em APM, este
rasgo se dá no momento em que o olhar do personagem encontra ao ocaso o objeto que o
transforma.
Na primeira seção desta segunda parte, “A antecipação”, mostraremos como os
personagens masculinos percebem os maus presságios e como esses se concretizam. Na
segunda seção, “o olhar”, trataremos deste tema relacionando-o à antecipação dos
acontecimentos e à miniaturização dos personagens. Ainda que desperto e controlando a
realidade palpável, o personagem mandiarguiano tem diferentes acepções sobre o olhar: o
olhar que perscruta, que reconhece, que investiga, mas também aquele que perturba, que
desconstrói, que destrói, e que, ao provocar tudo isto, leva a uma ruptura. O personage m
mandiarguiano, ao ser visto, levado pela insistência do olhar do outro, é impulsionado a
refletir sobre o significado de esse olhar e sua perturbação o induz a provocar um rasgo de si.
E esse olhar tem o poder não só de destruir o outro, mas de provocar uma autodestruição.
Embora APM tenha predileção pelo eu feminino, o que prevalece nesses contos e novelas é o
encontro, invariavelmente um acaso, transformam-se em vítimas desse fascínio que sua
presença provoca.
Em APM, o olho tem autonomia e muitas vezes a pintura dos personagens é reduzida a
ele. Tornar-se olho, segundo Castant, "provavelmente seja o projeto mandiarguiano por
excelência".9 Segundo o referido autor, há uma metáfora invertida nesse comentário: tornar-se
olho pela escrita não é uma empreitada difícil para APM, um escritor que explora o visível.
Ora, essa forma de narrar, através dos efeitos que a visão provoca, estabelece uma relação
entre o olhar e a imagem decorrente deste. Abordaremos esta relação na terceira seção dessa
segunda parte intitulada “A imagem”.
André Breton em seu primeiro Manifesto já abordava a questão do olhar como invocador
de imagens surrealistas que “se oferecem a ele” 10
. É falso, segundo Breton, que o espírito
perceba a relação entre as duas realidades coexistentes de forma consciente. É da
aproximação, de certa forma fortuita entre duas realidades, que nasce a forma particular que
tem APM de ver o mundo através de sua literatura. Breton, nesse mesmo Manifesto, diz que o
valor da imagem “depende unicamente da faìsca que provoca”. Esta forma de construção
revela o prazer de criar uma abundância de imagens e produz quase sempre uma representação
mental irracional, o que significa que as imagens criadas dialogam com a irracionalidade . Por
isso, essa concepção surrealista da imagem é, em APM, transgressora por princípio.
A morte, sempre um desfecho orgástico, é apresentada nesses textos como uma mise en
scène, uma representação. Os personagens masculinos esperam a morte que, segundo Roger
Bozzetto, "se torna seu único horizonte, sua única esperança” 11. Pode-se, então, afirmar que
9
CASTANT, A. L'ima ge da ns l'oeuvr e d' André Pieyre de Mandiar gues. Paris : Paris I (Panthéon-Sorbonne) 2000. p.71
10
BRETON, A. Ma nifestes du surr éa lisme. Paris: Gallimard. 1975. p.50
11
APM nos mostra o encontro na sua dimensão de loucura. Após a frustração, intransponível,
impossível de ser sublimada, os personagens caminham para um fim inadiável.
Abordaremos, também, como os personagens masculinos se sentem atraídos por
estranhas figuras femininas, todas desencadeadoras de um destino trágico que estava à
espreita. As descrições detalhadas dos espaços onde se dão os encontros, ao invés de
servirem a um propósito realista, preparam uma atmosfera que é da ordem do maravilhoso.
Não há, nos textos de APM, efeito de hesitação ou de medo diante da morte, que é sentida
como o ponto máximo do êxtase. Seu diálogo com o gênero fantástico e a estética surrealista
nos mostra como esse aspecto desempenha papel preponderante em sua estética e sua visão de
1 O FANTÁSTICO MODERNO E O SURREALISMO: APROXIMAÇÕES
Neste primeiro capítulo, faremos uma breve exposição sobre alguns conceitos em torno
do fantástico desde Tzvetan Todorov, passando por Irène Bessière12 até Roger Bozzetto13,
relacionando esses conceitos às cinco narrativas breves que analisaremos nesta tese. A partir
dessa discussão, visamos principalmente à procura de um lugar para o fantástico
contemporâneo de APM. Abordaremos nessas narrativas o que o crítico Roger Bozzetto
chamou de “efeitos do fantástico”14.
Discutiremos também neste capítulo, em uma segunda seção, o surrealismo em APM a
partir dos manifestos do surrealismo de André Breton, percorrendo também os comentários
feitos sobre essa estética pelo crítico Henri Béhar15. Estabeleceremos, a partir da análise
desses diferentes críticos, uma relação entre o gênero fantástico, o surrealismo, e a estética de
APM. Trataremos também do conceito de maravilhoso, ressaltando sua presença tanto no
fantástico quanto no surrealismo e, finalmente, na última seção deste capítulo, faremos uma
leitura mais precisa em torno do fantástico moderno em APM a partir dos contos e novelas do
nosso corpus.
O fantástico, tal qual existiu no século XVIII e XIX, parece alicerçar, a partir, sobretudo
de pressupostos metodológicos e conceituais, uma visão cristalizada desse gênero, como
salientado por Irène Bessière. Esse fantástico, considerado tradicional por inúmeros críticos,
estaria, pois, atrelado àquele momento histórico. A partir das elaborações de teóricos como
12
BESSIÈRE, I. Le r écit fantastique. La poétique de l’incertain. Paris: Larousse. 1974.
13
BOZZETTO, R. Ter r itoir es des fanta stiques. Aix-en-Provence : Université de Provence. 1998. Le fanta stique dans tous ses éta ts. Aix-en-Provence: Université de Provence. 2001. Pa ssa ges des fanta stiques. Aix-en-Provence: Université de Provence. 2005.
14
id. Le fa ntastique dans tous ses éta ts. Aix-en-Provence: Université de Provence. 2001. p. 6-7
15
Charles Nodier16, Pierre-Georges Castex17, Tzvetan Todorov18, Louis Vax19 e Ro ger
Caillois20, o conceito de fantástico adquiriu novas nuanças.
Quando nos referimos à literatura fantástica daquela época, percebemos estarem seus
conceitos mais ou menos sedimentados, sobretudo a partir da teorização e das abordagens dos
críticos citados acima. Naquele momento, embora escrever fosse considerado importante no
cenário das artes, a valorização dessa atividade estava ainda em processo. Pierre-Georges
Castex, em seu livro Le conte fantastique en France, de Nodier à Maupassant, ao pretender
fazer um histórico da produção literária fantástica na França, durante o século XIX, salienta a
grande influência que tinha o escritor alemão E.T.A. Hoffmann sobre os franceses. Seus
contos fantásticos têm o tom sombrio e pessimista que caracterizava, de certo modo, o espírito
daquela época. A admiração que os franceses passaram a nutrir por esse escritor contribuíram
para o surgimento de grande número de obras fantásticas na França. Após daquele momento,
principalmente depois da crítica positiva feita a Hoffmann, o gênero fantástico passou a ser
considerado perfeito para liberar a imaginação das angústias decorrentes daquele período
histórico. Surge, então, a vontade de utilizar os poderes mágicos da imaginação na literatura.
Esse fato fez com que o fantástico fosse considerado inovador.
Segundo Irène Bessière, o fantástico não é senão “um dos procedimentos da imaginação
que tem sua origem na religião e na psicologia e não se distingue das manifestações aberrantes
do imaginário” 21. Segundo ainda esta mesma autora, o fantástico provoca incerteza por
16 NODIER, C. “Du fantastique en littérature”.
Contes fantastiques.Tomes 1 et 2. Apresentação de Michel Laclos. Paris: Jean-Jacques Pauvert. 1957.
17
CASTEX, P.-G. Le conte fantastique en Fr ance: de Nodier à Maupassant. Paris: José Corti. 1951.
18
TODOROV, T. L’introduction à la littérature fantastique. Paris : Éditions du Seuil. 1970.
19
VAX, L. L'a r t et la littér ature fantastiques. Paris : Presses Universitaires de France. 1974.
20
CAILLOIS, R. Au coeur du fa ntastique. Paris : Gallimard. 1965.
21
colocar em causa dados contraditórios, levando o seu leitor a refletir “sob a aparência de um
jogo de invenção pura, sobre as metamorfoses culturais da razão e do imaginário” 22. A
literatura fantástica começa a ser vista como uma forma de extravasar os males de uma época
dominada pelo racionalismo, que resistia à imaginação como meio de curar essas angústias. O
fantástico passa a ser então um gênero narrativo que problematiza a carga simbólica em
contraponto com a estética racionalista. Essa problematização foi uma forma que os escritores
fantásticos acharam de “inovar” no campo literário. O escritor Gérard de Nerval, ao fazer a
defesa do gênero em Fantastique, critica a literatura que se prende a regras clássicas:
Pourquoi [...] rejetons-nous loin la littérature compassée du siècle de Louis XIV, toute cette poésie tirée au cordeau [...] toute cette prose en
manchettes? C’est qu’en littérature nous visons au fantastique.23
Ao defenderem o gênero fantástico, esses autores, dentre os quais Nerval e Nodier,
estavam, evidentemente, defendendo sua própria estética e sua liberdade de criar. Mais do que
um gênero narrativo, o fantástico é, segundo Antoine Faivre “um processo de escrita, um tipo
de narrativa”24.
Roger Bozzetto, em sua obra Territoiresdes fantastiques, diz haver múltiplos territórios
no gênero fantástico e que esses produzem efeitos específicos. Para esse autor, os territórios
do fantástico são “os vastos domìnios heterogêneos, tanto no espaço quanto no tempo” que
cobrem a literatura fantástica25. Ele afirma também que a existência desses territórios tão
díspares, como o romance gótico, contemporâneo do romantismo e da primeira revolução
22
BESSIÈRE, I. Le r écit fanta stique. La poétique de l’incertain. Paris: Larousse université. 1974. p.10
23
Gérard de Nerval. Fa nta stique. CASTEX, P.-G. Le conte fanta stique en Fra nce: de Nodier à Ma upa ssant. Paris: José Corti. 1951. p. 89
24
FAIVRE, A. COLLOQUE DE CERISY. La littéra tur e fanta stique. Genèse d’un genre narratif (essa i de pér iodisa tion). Cerisy: Cahiers de l’hermétisme. Albin Michel. p.15-43. p.15
25
industrial, inaugura a ideia de “modernidade”. Esse fato instaura uma crise de sentidos e
estabelece relações com significados culturalmente importantes como, por exemplo, o
pesadelo, a existência de monstros ou de vampiros. A maneira como o fantástico enquanto
expressão literária constrói o horror vem mudando ao longo da história literária. Segundo esse
crítico, cada época corresponde a um horror diferente. No horror moderno, o que interessa, de
acordo com Bozzetto, são os “efeitos” que o fantástico produz no leitor, mais do que as
representações anteriormente teorizadas por Castex e Todorov. Apesar da diversificação das
abordagens desses teóricos, todos apresentam, de certa forma, os mesmos aspectos do gênero.
O que foi o fantástico senão o propósito de brincar com os limites do verificável ou de seu
oposto?
O maravilhoso, um conceito ressurgido no século XVIII, juntamente com o de
fantástico, não é mais o maravilhoso alegórico da Antiguidade, teorizado na Poética por
Aristóteles. Para Aristóteles, o maravilhoso é um elemento do irracional. Nele, os fatos
narrados não têm explicação racional e os personagens desse tipo de narrativa aceitam os
fenômenos ditos irracionais como pertencentes às - novas - leis da natureza. No fantástico,
segundo Todorov, há hesitação entre aceitar ou não os fenômenos como naturais. O que os
diferencia, para esse crítico, é a aceitação ou a oscilação do personagem e do leitor diante dos
fenômenos descritos como naturais. Nesse sentido, a questão da verossimilhança adquire
novas nuanças. No fantástico das narrativas de APM, por mais que a existência dos fenômenos
relatados não seja crível, eles o são. Podemos pensar então em uma verossimilha nça
inverossímil.
Os personagens de APM aceitam os fenômenos inverossímeis da narrativa. O fato de
não demonstrarem surpresa diante desses fenômenos é um elemento que nos faz imaginar que
esses personagens “acreditam” na naturalidade dos fatos vividos. APM insiste na presença de
que Bozzetto chamou de “fenômenos sensìveis”. Nos contos aqui estudados, essa relação entre
os personagens e os fenômenos que presenciam e vivem, ao longo das narrativas, é percebida
naturalmente, sobretudo pela ligação que os mesmos estabelecem com a realidade. A
originalidade dessa abordagem está relacionada à forma como esses personagens vivenciam o
maravilhoso que, em APM, se situa além da temática habitual do fantástico, com o qual é
muitas vezes confundido. O prazer encontrado na vivência de fenômenos inverossímeis
ultrapassa a racionalização desses mesmos fenômenos. Essa relação atinge seu âmago na
morte como desfecho.
Abordaremos também, nesse mesmo capítulo, o surrealismo na estética de APM. Anos
depois do aparecimento do fantástico, o surrealismo surge com um contexto semelhante.
Ganha força estética principalmente a partir de André Breton, que o define em seu primeiro
Manifesto. André Breton nega que o surrealismo tenha, ou queira ter, qualquer relação com a
ideia de literatura. Para Breton, mais do que um movimento literário, o surrealismo tem como
objetivo o conhecimento.
Assim como os autores que escreveram textos fantásticos, os surrealistas nutriam
também “a paixão pelo maravilhoso”. André Breton fez alusão ao maravilhoso quando o
associou, no Segundo Manifesto, a uma espécie de féerie antérieure. Essa explosão feérica
anterior seria fruto de uma atividade psíquica que visava à criação artística. Michel Leyris, em
um artigo intitulado “Musée des sorciers”, alçou o maravilhoso ao posto de valor fundamental
para a literatura.26 Nesse artigo, discorreu também sobre a grande atração que o inexplicável
exerce sobre os indivíduos.
Para os surrealistas, o maravilhoso é, juntamente com o sonho, um de seus valores
fundamentais. O maravilhoso no surrealismo é resultado da experiência com a escrita
26LEYRIS, M. “Musée des sorciers”.
automática e o relato dos sonhos. Breton propõe, então, a exploração do maravilhoso que
existe no tênue limite da vida acordada e da vida no sonho. Juntamente com o maravilhoso, o
inexplicável exercia também sobre os surrealistas um enorme fascínio. Para nós, a estética de
APM está na confluência entre o fantástico e o surrealismo, pelo viés do maravilhoso e do
estranho.
Analisaremos, na primeira seção desse primeiro capítulo, a presença e o tratamento que
APM dá aos elementos temáticos do fantástico e também a existência do maravilhoso como
um elemento agregador do fantástico e do surrealismo em sua estética.
1.1 O fantástico em André Pieyre de Mandiargues
Nesta seção, partiremos da reflexão sobre algumas diferentes discussões a respeito do
gênero fantástico para mostrar, em seguida, como APM o recria renovando-o. A evolução do
conceito deste gênero ocorreu pelo viés das diversas modalidades que foram surgindo, desde
Théophile Gautier até Stephen King. De acordo com Bozzetto, se em cada época surge m
diferentes figuras do horror, do terror, da monstruosidade, em APM, a renovação das figuras
do horror moderno pode ser vista na forma como este autor privilegia as imagens , a partir de
uma leitura particular dos espaços onde circulam seus personagens e as situações vivenciadas
por eles. Aparentemente banais, essas situações se transformam ao longo da narrativa, como
em um conto fantástico tradicional. Não trazem em si, inicialmente, características do
maravilhoso. Em um contexto mais amplo, a narrativa fantástica de APM vai nos interessar
por sua forma de apresentar, em particular, uma realidade que ultrapassa as aparências.
Esse fantástico do século XX, aqui representado pelos contos de APM, se distancia
considerações. Isso se deve, especialmente, ao afastamento do imaginário do leitor de temas
ligados a fantasmas, diabos e seres afins, explorados naquele momento histórico. A essa
mudança de paradigma corresponde, como iremos mostrar, um aumento da subjetividade.
Antes de comentarmos as diferentes teorizações sobre o fantástico, devemos lembrar a
existência de um pré-fantástico até meados do século XVIII, que inspirou os inúmeros temas e
motivos que seriam posteriormente utilizados pelo fantástico. Naquele período, aquele tipo de
literatura não visava somente a distrair o leitor, mas também a ensinar, por meio da
transmissão de mensagens. Após este período, seguiu-se uma época em que o gênero
amadureceu. O uso da razão fazia um contraponto com o sobrenatural de maneira
relativamente intensa, já que o leitor, por sua vez, não acreditava mais nesta forma de ver o
mundo, mas necessitava ser, de certa forma, orientado para ela.
O fantástico propriamente dito aparece em seguida e conhece seu apogeu na segunda
metade do século XIX indo, inclusive, até um pouco além. Depois desse período, ele se
transforma enquanto gênero27. Evidentemente, os diferentes espaços sociais e culturais
contribuìram também para dar nova forma ao cotidiano. Bozzetto diz que “a emoção fantástica
primordial está relacionada à realidade e essa se manifesta vigorosamente, principalmente na
nossa época diante das inúmeras crises de representação que vivemos” 28
. A compreensão das
coisas e do mundo não é mais sentida como satisfatória e provoca, antes, um mal -estar. Esse
mal-estar sempre existiu, principalmente se levarmos em conta as inúmeras crises que o
homem sempre viveu. A relação do homem com o mundo tende, portanto, a fazer instaurar
uma constante renovação da compreensão deste por intermédio do medo, do pânico, da
27
BARONIAN, J. B. Pa nor a ma de la littéra tur e fanta stique de langue frança ise. Paris : Éditions de la table ronde. 2000
28
angústia, sensações estas decorrentes desse mal-estar. Surge, então, no escritor, o desejo de
dar um testemunho dessa experiência. Em APM, esse testemunho se faz na representação do
encontro com o inconcebível e o inimaginável. Diferentes teóricos estudaram e buscaram a
teorização dessa noção.
Os diversos teóricos que abordaram o fantástico examinaram sua forma, sua “evolução”
enquanto gênero e sua relação com outros gêneros. O termo fantástico surgiu com Platão e
remetia a uma imagem de certa forma ambígua, pois o que se questionava era a realid ade do
seu objeto. Essa noção se chocava com a heterogeneidade do real e ia contra os limites da
simbolização. Para Platão, tudo o que tem forma é o reflexo de uma ideia.
Aristóteles toma outro caminho reflexivo e fala sobre o prazer que experimentamos na
representação do feio, do inominável, do inimaginável e associa esse prazer ao que sentimos
diante da tragédia face aos sofrimentos que incitam à piedade. Esse deslocamento permite uma
reflexão sobre o conceito de “feio” em arte. É justamente nessa imagem que reside o germe da
reflexão sobre o efeito de fantástico e de maravilhoso em literatura. O leitor se sente tocado ao
perceber que o que lhe parecia inimaginável lhe provoca uma sensação de prazer. A
descoberta dessa relação deu lugar a uma literatura que valoriza esses efeitos a que Bozzetto
deu o nome de “sentimento do fantástico”.
No estabelecimento de uma nova relação com a realidade, mas principalmente na
observação dos efeitos produzidos no leitor, os estudos, sobretudo os de Bozzetto, marca m
uma renovação na crítica não só em relação à presença do fantástico na literatura, mas
principalmente na percepção dessas mudanças. APM representa essa nova abordagem criativa
por subverter a ideia da existência de um novo fantástico.
Segundo Bessière, “não há uma linguagem fantástica por si só”. Para essa crítica, o autor
absolutamente original, o arbitrário.” 29
É a partir dessa noção que o fantástico em APM se
manifesta. O mundo que APM transcreve para seus textos é o do fantástico considerado
normal e cotidiano que, sob seu olhar, adquire nuanças originais e insólitas.
O gênero fantástico, mesmo tendo se modificado e atravessado diferentes épocas, te m
singularidades. Podemos dizer que APM tem uma perspectiva diferente e atualizada desse
gênero. Primeiramente, para evidenciarmos essa perspectiva, partimos da noção de
“impensável” da qual fala Bozzetto e os diversos efeitos que esse “impensável” produz nos
textos e, a partir dos textos, no leitor. Para Bozzetto, uma das condições para que exista o
“impensável” na narrativa é que exista o desejo de comunicar, através dos personagens, a
experiência do encontro com esse “impensável” e também a possibilidade de dar esse
testemunho. Esse crìtico diz também que o texto fantástico “consegue provocar a impressão -
talvez paranóica - na qual sentimos obscuramente que a realidade na qual vivemos, pensando
dominá-la, é, na verdade, manipulada por forças, ou “coisas” que existem, mas estão envoltas
em mistérios”.30
Ocorre que o inimaginável ou impensável, segundo Bozzetto, se assemelha
muito ao imaginário do maravilhoso em sua manifestação contemporânea que é identificado à
loucura, ao irracional, ao inconsciente ou à alucinação.
Os temas abordados nos textos que escolhemos comprovam nossa hipótese dessa
aproximação. Dentre inúmeras discussões sobre a noção de maravilhoso, a que nos interessará
no presente estudo é a noção de maravilhoso postulada pelos surrealistas. Veremos como essa
relação se estabelece na segunda seção desse capítulo quando trataremos do surrealismo e m
APM.
29
BESSIÈRE, I. Le r écit fantastique. La poétique de l’incertain. Paris: Larousse. 1974. p.13-14
30
Salah Stétié, no prefácio à coletânea Le musée noir, diz ser esta uma “coletânea de
contos estranhos, onde se misturam o barroco, o erotismo, o fantástico e a crueldade”. APM,
na apresentação dessa mesma coletânea, define para o leitor contos e novelas principalmente
pedindo que este fique atento em relação à presença, nesses contos, de um “além das
aparências”, e também que perceba como os espaços e situações criam uma “atmosfera”, um
clima propìcio à “transfiguração de fenômenos sensìveis”. Como bom surrealista, outra
característica de APM que abordaremos na segunda seção deste primeiro capítulo, ele insiste
sobre o resultado dessa associação:
Des lieux et certaines heures unissent, affrontent ou fortifient les
auréoles (ou zones d’illumination) propres aux divers matières. Par ces chocs, par ces combinaisons d’auréoles, naît ce que l’on a communément entendu sous le nom d’atmosphère: un climat propice à
la transfiguration des phénomènes sensibles.[…] De cet envahissement
de la réalité par le merveilleux qui surgit d’un pays très vaste, où le témoin, assez habile pour observer sans faire fuir par trop d’attention les
éléments fantasmatiques, pourra se promener avec fruit: il y verra
comment naissent avec les oeuvres d’art, les objets singuliers, et les
monstres autour de lui s’incarneront des soupirs que l’homme, aux
minutes orageuses de son existence, laisse descendre comme des bulles
values vers le peuple tiède et muet des animaux.31
APM faz alusão, neste trecho, à “atmosfera” que cria nos contos dessa coletânea. Essas
atmosferas são o que chamou de choque, que é o resultado das combinações de zonas de
iluminação. Esse resultado torna possíveis os fenômenos que pretende mostrar. O
maravilhoso, ao invadir a realidade, favorece o aparecimento de seres estranhos e singulares
que vão interagir com os personagens que vivenciam esse choque.
Roger Bozzetto deu o nome de “sentimento de fantástico” 32 aos efeitos surgidos a partir
de uma mudança na maneira de perceber a realidade. Os estudos tradicionais sobre o
31
MANDIARGUES, A.P. Le musée noir. Paris. Robert Laffont.1946. [Paris. Gallimard. 1974] p.12-13
32
fantástico o tratavam somente enquanto gênero e visavam, sobretudo, a compreender os
mecanismos do funcionamento da estrutura do texto. Esses estudos procuravam, muitas
vezes, estabelecer os limites entre o fantástico, o maravilhoso, o insólito e o estranho e, com
isso, delimitar essas fronteiras. Nas últimas décadas, críticos como Bozzetto passaram a tratar
o fantástico como “sentimento”. Trata-se do resultado de uma relação sensível e emocional
com o mundo e os efeitos que essa relação provoca no leitor. Esses efeitos são construídos ao
longo da narrativa, através de indícios que funcionam como sinais antecipadores e que criam,
no leitor, a expectativa do desfecho. Os efeitos de fantástico surgem também a partir da
descrição minuciosa da realidade aparentemente comum, mas que ao longo da narrativa vai se
revelando estranha. Essa abordagem confirma que o fantástico contemporâneo não persegue
mais fórmulas como as postuladas por Todorov 33, cuja obra foi um marco no estudo do
fantástico.
Todorov, no segundo capítulo de sua obra Introdução à literatura fantástica, ao fazer
um inventário sobre as principais características do gênero, diz que existe o fantástico quando
não podemos explicar os acontecimentos pelas leis naturais que conhecemos. A dúvida se
instaura quando devemos optar por uma das duas soluções possíveis: ou os acontecimentos
são explicados no final da narrativa pelas leis que conhecemos ou esses acontecimentos são
regidos por leis que desconhecemos. A partir da escolha de um dos caminhos, Todorov diz
estarmos entrando ou no estranho, que é quando são criados fatos a partir da imaginação
criadora ou no maravilhoso, quando o acontecimento não pode ser explicado de maneira
racional. Segundo Todorov, o estranho e o maravilhoso são vizinhos do fantástico. Castex e
Vax endossam essas teorizações. Nós rejeitamos essas distinções. Preferimos adotar a
33
perspectiva de Bozzetto que não vê mais separação possível entre essas noções. Segundo
Bozzetto:
O sentimento de fantástico descreve e torna sensível um tipo particular de relação com o mundo que se traduz como angústia ou medo. Os fenômenos ditos fantásticos constroem então, para explorá-lo, diversas modalidades dessa relação particular. Eles respondem pela emergência, em um mundo do cotidiano, de algo que não pode ser formulado conceitualmente e no qual um dos efeitos é sempre, para o leitor ou o espectador, uma sensação de falta, provocando um mal-estar, terror ou horror, ao mesmo tempo em que oferece um prazer certo que é, se m dúvida, o resultado de uma espécie de aproximação com o real: o prazer
de encontrar os limites da simbolização.34
A partir dessa postulação, esse crítico mostra de que forma os autores que criam esse
sentimento produzem esses efeitos. O texto fantástico passa a ser então, a partir dessa
formulação, não mais uma maneira de explicar a existência de seres bizarros. O fantástico é o
lugar onde sua presença surge e é, portanto, o lugar de sua exibição. Nesse espaço, há o
estabelecimento entre o fato narrado e o mundo da sensação “emocional” do leitor.
A noção de falta de que fala Bozzetto é explorada por APM nessas relações. Mas essa
falta é paradoxal, pois ao mesmo tempo em que provoca a sensação de angústia, proporciona
prazer. O prazer provocado pela leitura se dá quando o leitor percebe na narrativa o limite
tênue entre a criação e a realidade concreta. Tanto a angústia quanto o medo, provocados pela
sensação de horror, estão nos “limites da simbolização”, nos limites, portanto, dos sentidos,
que são também uma abertura para a relação sensível e emocional com o texto. O“sentimento
do fantástico”surge, então, da relação entre a angústia, o medo e o consequente mal-estar que
resulta dessa sensação de falta.
O fantástico em APM está ligado também ao que Bozzetto chamou de “horror
moderno”. Bozzetto, em seu livro Territoires des fantastiques, aprofunda e defende essa
34
noção. Para esse crìtico, o “horror moderno” existe nas narrativas contemporâneas
principalmente quando:
“a imagem do outro está presente e com uma carga emotiva tão grande
que sua representação parece chocar, como em um filme quando, sob o
efeito de zoom, uma imagem salta aos olhos”. 35
Para Bozzetto, essa imagem normalmente cotidiana é terrificante por traduzir a angústia
diante de coisas que conhecemos. Por esse motivo ficamos paralisados diante delas. A
angústia não implica sempre, e principalmente neste caso, em uma imagem monstruosa ou
agressiva do outro. O “impossìvel, mas, no entanto presente” é uma das fórmulas mais
adequadas para definir os diversos efeitos produzidos pelos textos fantásticos de “horror
moderno”. O leitor de APM, embora angustiado, aceita o que não é normalmente possível
aceitar. O narrador provoca no leitor o sentimento que vivencia.
Até o século XVIII, os motivos ou temas que terrificaram os leitores existiam em um
quadro simbólico claro: o do imaginário do sobrenatural. Um dos efeitos da revolução
industrial sobre as relações sociais e humanas foi a mudança de sua relação com a realidade.
Surge, nesse período, a separação entre o natural em oposição ao sobrenatural. A passagem
desse mundo natural, conhecido, ao outro sobrenatural, desconhecido, mostrava a hesitação
entre a razão, fundamentada pelo conhecimento do mundo, e os sentidos. O fantástico é, nas
palavras de Louis Vax, a oscilação entre “o real e o possìvel” 36. Nos contos que estudamos, o
elemento contraditório em relação a uma das características mais discutidas entre os teóricos
do fantástico é a ausência de hesitação com o objetivo de criar “efeitos de fantástico”.
35
BOZZETTO,R. Ter r itories des fantastiques. Aix-en-Provence: Université de Provence. p. 57 (trad. nossa)
36
Ao teorizar sobre a literatura fantástica, Roger Caillois definiu e tomou para si, em “Au
coeur du fantastique” 37, o modelo cronológico. Segundo ele, a imaginação está
primeiramente ligada ao maravilhoso. Como as crenças foram substituídas pela razão, o
fantástico presenciou um retorno do irracional impensável. A ficção científica seria uma
forma híbrida da razão e do imaginário. O maravilhoso e o fantástico continuam a existir na
contemporaneidade juntamente com a ficção científica. É o que faz o caráter dialético deste
gênero. Este autor propõe a distinção entre fantástico institucional, que é aquele em que as
obras têm como único objetivo surpreender, e outro fantástico, a que chamou de autêntico,
que engloba também o maravilhoso, mas que não pode ser definido. Roger Caillois também
falou sobre a noção do que chamou de “expressão de estranheza” noção esta que se opõe à de
fantástico, mas que não pode ser facilmente definida.
A obra L'introdution à la littérature fantastique38, de Tzvetan Todorov, um dos grandes
teóricos do estruturalismo, continua sendo um dos principais e obrigatórios estudos para a
compreensão desse gênero. Esse crítico propõe uma análise estrutural dos textos fantásticos.
Segundo ele, "existem relações necessárias e não arbitrárias entre as partes constitutivas de
um texto fantástico [...]” 39. Esse tipo de texto segue, então, regras de combinações estruturais,
e essas regras se confirmam na escolha dos espaços pelos quais gravitam os personagens: nem
o homem nem a mulher suportam mais o mundo que conhecem e no qual transitam. Vivenciar
outros mundos faz parte da experiência do conhecimento e, para que isso aconteça, é preciso
desbravar o desconhecido.
37
CAILLOIS, R. Cohér ences aventureuses. Coll. Idées. Paris : Gallimard. 1976. p.72-73
38
TODOROV, T. Introduction à la littératur e fanta stique. Paris: Éditions du Seuil. 1970.
39
Todorov tomou como modelo para o estudo desse gênero a topografia, com suas noções
de “campos” e “limites”. Como já dissemos, este teórico sinaliza a hesitação do leitor diante
dos fatos apresentados para que o fantástico exista. Esse leitor, ao se identificar com o
personagem central, recusa nesse momento qualquer identificação alegórica ou poética com o
maravilhoso. Esse maravilhoso teria uma fronteira comum com o estranho. Desta relação
surge o “fantástico estranho” e o “fantástico maravilhoso”. Na fronteira entre o realismo e o
maravilhoso, teríamos o fantástico reduzido a seus efeitos de ambiguidade. Nesse momento, o
leitor pode viver a mesma experiência e assistir à sucessão de imagens insólitas que assim se
revelam a partir da relação que estabelecem com a realidade. Mais tarde, Todorov reconheceu
serem os gêneros dinâmicos, dentre eles, o fantástico, principalmente pelas modificações que
pode observar em sua evolução desde sua formulação. Os temas e estruturas dos textos
fantásticos evoluíram e, ao invés de estarem associados a figuras clássicas como a do
morto-vivo, ou a figuras sobrenaturais, estão agora ligados a diversas modalizações que autorizam
uma “suspensão de credulidade” e não às fórmulas que definiu em sua obra Introduction à la
littérature fantastique.
A dificuldade em definir um gênero envolve diferentes tipos de questões dentre as
quais, que os textos são manifestações que refletem o contexto social, literário e histórico de
sua época. Por esse motivo, podemos pensar em Théophile Gautier como “fantástico
romântico” ou em Maupassant como “fantástico realista”. Da mesma forma, temos como
hipótese da evolução do fantástico, os textos de APM como “fantástico surrealista”.
Explicitaremos melhor esta abordagem de seus contos na terceira seção deste capítulo.
Há, nos autores fantásticos, a necessidade de criar efeitos novos segundo sua vivência
temporal ou cultural. Percebemos, no entanto, existir uma lógica dos gêneros quando os
Para Charles Nodier, que tratou do fantástico em seu artigo “Du fantastique en
littérature” (1830), o fantástico é um gênero que se confunde com o maravilhoso. Mas nesse
fantástico há também a noção de mistério ligado ao indizível, ao não representável. Na época
de Nodier ainda não existia uma diferenciação entre o adjetivo e o substantivo “fantástico” e,
consequentemente, não havia ainda a percepção desse efeito do fantástico. Mas esse autor
distingue, mesmo assim, o que é maravilhoso do que não é. Seu ensaio é uma tentativa de
pensar no que resultou a crise no imaginário e na sociedade da época. Ele se interessou muito
pelo fenômeno do sonho, não só como elemento que favorecia a ficção, mas também como
um aspecto da vida psíquica que o interessava. Nodier articula suas ideias em torno dos
“sonhos e pesadelos”, o que nos permite fazer uma analogia com os textos surrealistas que
valorizavam, sobretudo, a função onírica na literatura. Há também, em sua concepção de
criação literária, a oposição entre o estado de vigília, onde há a presença da razão, o estado de
sono e, em seguida, do sonho. No segundo prefácio de sua obra Contes, Nodier afirma que “o
sono é não somente o estado mais poderoso, mas o mais lúcido do pensamento” 40 .
Segundo alguns teóricos e historiadores do fantástico, dos quais destacamos Bozzetto
que dedicou a ele um artigo intitulado “Nodier et la théorie du fantastique” 41
, esse autor foi o
que mais explorou o sonho em seus contos, não necessariamente contos fantásticos, mas
principalmente os contos onde estavam presentes os deslocamentos. Em APM, podemos
afirmar que a noção mais poderosa está mais próxima da de alucinação que pode se confundir
com a de pesadelo, como veremos mais adiante. Observamos também que o espaço
40
CASTEX, P.-G. Paris: Garnier. 1961. p. 39 (trad.nossa)
41
imaginário da literatura fantástica é mais heterogêneo e mais múltiplo do que as recorrentes
definições que o gênero deixa imaginar.
Nossa hipótese é de que o gênero fantástico adquire novas formulações com APM:
estamos diante “do fantástico moderno” que, nas palavras de Bozzetto, é o mesmo que “terror
moderno”. Sob a influência da crítica recente, sobretudo com Bozzetto, tendemos a interpretar
o fantástico não mais como um discurso que se fecha sobre si mesmo, com efeitos mais do
que previsíveis e que tenta eliminar a originalidade de uma criação livre, mas como um
discurso que amplia seus efeitos. Dentro dessa perspectiva, é possível acompanhar a evolução
de um gênero pela evolução de seus temas. Isso permite à literatura assumir outra forma de
dar a ver o que está oculto pelas instâncias do imaginário. Os temas fantásticos do passado
desembocaram na figura moderna que expressa um fantástico particular que verificamos em
APM. Nos textos fantásticos de APM, podemos perceber a sugestão da existência de leis
escondidas, mas que não são nunca reveladas. O sentido dessas leis não busca ser
compreendido e sua coerência reside no desejo de criar no leitor um mal-estar, uma sensação
de desconforto e de angústia.
Segundo Bozzetto42, o sentimento de fantástico está frequentemente ligado à angústia e
ao medo e um dos efeitos que essas sensações provocam no leitor é o estabelecimento de um
jogo de “pressentimentos”, elemento fortemente explorado por APM que utiliza para isso, o
que Bozzetto denominou “operadores de confusão” 43. Esses elementos autorizam uma
espécie de “suspensão de incredulidade”, e permitem, graças a esse pacto, que a leitura não
encontre obstáculos, apesar da presença de elementos irracionais na narrativa.
42
BOZZETTO, R. 2001. Ter ritoir es des fantastiques. Aix-en-Provence : Université de Provence. 1998. pp. 73-74
43
Passamos agora ao estudo dos contos de nosso corpus. Nos cinco contos que
analisamos, os pressentimentos são um elemento recorrente. No conto “Les pierreuses”, o
protagonista Pascal Bénin percebe sinais vagamente indefinidos de maus presságios ao
retornar para casa após encontrar uma pedra. O pressentimento do protagonista da morte
eminente, sua ou não, é associado ao M que esse vê desenhado por pássaros (corvos) que
sobrevoam o céu:
Des corbeaux s’envolèrent à quelques mètres du promeneur, inoffensif, évidemment, puisqu’il n’avait pas d’arme à feu. Leurs ailes, sur le ciel
gris, dessinaient en noir des M très ouverts, qui sont, au rebours du W
d’evviva, l’écriture abrégée d’à mort.44
Esse procedimento é muito usado por APM e permite que o leitor, ao prosseguir na
leitura, tenha inquietações, que é um dos efeitos que procura provocar, e se prepare para o
possível desfecho trágico. No momento em que Pascal abre a pedra que havia encontrado e
guardado e se depara com as três bailarinas minúsculas dentro dela, há uma tentativa, por
parte do leitor, de associar esse fato inusitado a um presságio e pressentir, ele também, algo de
surpreendente no desfecho:
Trois petits êtres rouges se trouvaient au fond d’une demi-sphère, qui étaient des femmes ou des jeunes filles, jolies comme les plus ravissantes ou les plus agaçantes de celles qui se montrent sur les scènes
des cabarets, mais d’une taille un peu au-dessous des plus courtes
allumettes-cires.45
Neste momento, tanto o personagem quanto o leitor, como que estabelecendo um pact o
de leitura, aceitam esse aparecimento inusitado. Há então uma mudança de perspectiva de
credulidade que implica na “suspensão de incredulidade” que, nesse conto implica em uma
44
MANDIARGUES,A.P. Les pierreuses. Feu de bra ise. Paris. Grasset. coll. "Les cahiers verts". 1959 [coll. "Les cahiers rouges". Paris. Grasset. 1984]
45
ausência de surpresa. Para o leitor, o fato de o personagem ver com naturalidade a existência
de três bailarinas dentro de uma pedra estabelece uma distância entre a realida de e a ficção,
devido, principalmente, a essa ausência de surpresa. Para Pascal Bénin, esse acontecimento é,
aparentemente, natural. APM instaura uma lei cuja existência o leitor desconhece e, com isso,
consegue interferir na realidade. Para APM, a realidade precisa de outros olhos para se fazer
ver. Ela se esconde para os olhos do leitor e se mostra pelos olhos do narrador. Essa realidade
não surpreende o protagonista justamente por este saber de sua existência, ao contrário do
leitor. É retomada então, nesse ponto, a noção de “impensável”, à qual já aludimos. Essa
noção atua por existir uma realidade envolta em mistérios e pelo fato de haver um relato dela
por um protagonista que a vivenciou.
Em outra novela, “Le diamant” 46, a protagonista Sarah, ao tentar examinar um
diamante, “entra” dentro dele através de um microscópio, como consequência de uma queda:
Comme elle usait des trois lentilles, et que la puissance
d’agrandissement ne différait pas beaucoup de celle d’un microscope
(jouet), le moindre mouvement brouillait l’image, et Sarah devait avec
une main très ferme tenir la loupe à toucher presque l’objet du côté inférieur, de l’autre à frôler ses longs cils.
[...] ses pieds glissèrent sur le parquet et sa tête tomba sur la table; alors
elle eut l’impression que la lupe lui entrait dans l’oeil, et elle perdit
(probablement) connaissance.
Tout de suite, elle la reprit. Elle se vit enfermée dans une sorte de cellule aux parois transparentes, construite en forme de polyèdre régulier. [...] Il lui fallut quelque temps, quelque expérience du lieu et quelque effort de réflexion, pour apercevoir et puis pour admettre le fait
singulièrement incroyable, qui était qu’elle se trouvait captive à l’intérieur du diamant, dans lequel sa chute l’avait précipitée.47
46
MANDIARGUES, A. P. Feu de br aise. Paris: coll. “Les cahiers verts”. 1959. [coll. “Les cahiers rouges”. Paris: Grasset.1984]
47
Nesses trechos, percebemos o caráter aleatório dos acontecimentos e a distância que
separa a realidade da visão que a antecipa. Ao leitor é permitido aceitar os elementos
irracionais da narrativa. O diamante, onde Sarah passa a se encontrar a partir da metade da
narrativa, é um lugar onde existe uma “atmosfera” que propicia a mudança de perspectiva:
Sarah é agora uma mulher minúscula, nua, dentro de uma pedra preciosa. Neste momento, há
o encontro com o maravilhoso e o leitor acompanha essas mudanças no espaço narrativo e
“entra” também no espaço da perda de consciência, como a protagonista. Esse trecho nos diz
que o segredo da literatura fantástica é:
esta atitude em apreender imediatamente o leitor e o conduzir
naturalmente consigo até o clima do sobrenatural.48
Nesse conto, a forma que APM encontrou para levar o leitor a acompanhar a chegada
do estranho na narrativa foi propor um itinerário onde a protagonista deveria seguir alguns
rituais. O leitor é então transformado em voyeur ao acompanhar a protagonista como se
estivesse à espreita.
No conto “Le pain rouge” 49, o protagonista Pluto Jedediah conta sua aventura dentro
de um pão, deitado na cama em um quarto de hotel:
- Que les cornes viennent aux chiens, pensai-je en me réveillant sur un
lit d’hôtel borgne, si je me rappelle pour le pied de quelle créature
encore me voilà tout nu dans ces draps sales!50
48
MANDIARGUES, AP. Preface à BEALU, Marcel. L’araignée d’eau. Paris: Poche club. Belfond. 1964. p.9. cette aptitude à saisir tout de suite le lecteur et à le mener tout naturellement avec soi jusque dans le climat du surnaturel. (trad. nossa)
49
cf. Anexo p. 169
50