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la como um produto desta. O que tentamos realizar foi a aproximação teórica, ou como está na tese citada, definir uma relação entre as obras dos dois escritores que passe por apontar “ideias que se cruzam, mas não se fundem.[...] Vozes que são retomadas e amplificadas, trazidas para o novo contexto histórico em que cada um deles se encontra.” (ARAÚJO, 2009, p. 182). Podemos até afirmar que Bernardo Carvalho conhece bem a obra de Jorge Luis Borges59, porém qualquer afirmação para além disso é temerária e pouco produtiva. O interessante é refletir sobre a maneira como as obras dialogam.

Concluímos que, de fato, há um diálogo entre as obras quando refletimos sobre: a utilização dos artifícios na ficção, e de como estes são imprescindíveis à criação artística; e a percepção que se tem acerca da realidade e do seu caráter não-natural. A aproximação entre as obras dos dois autores se dá, também, na tentativa de promover reflexões que vão além do âmbito da tradição literária, chegando até a pensar sobre a postura que possuem ao acessar a realidade diante dos olhos. Parece haver, ainda, na obra dos dois um ideal teórico que aponta para a não-naturalização no processo de construção de perspectivas da realidade. Ou seja, a ficção deles dilui a fronteira entre a realidade e a ficção, evidenciando a artificialidade na edificação de ambas, e mostrando, além disso, que o próprio acesso a essas realidades também se dá por meio da construção de narrativas que interpretam aquilo que se vê.

É partindo desse diálogo que há entre os dois autores que voltamos a formular um conceito aos artifícios. É preciso retomar do ponto em que os artifícios utilizados são caracterizados por promoverem um embaralhamento, uma simulação – há um movimento de “maquiar” a realidade para que pareça outra – entre realidades. Aliás, o jogo proposto pela simulação de uma condição se dá, também, entre as muitas realidades ficcionais, mas talvez o objetivo seja sempre o de jogar com a realidade física e a ficcional. A utilização de gêneros textuais que costumam ser vistos como mais comprometidos com a verdade realiza, em última análise, um embaralhamento, uma dissolução entre as fronteiras da realidade e da ficção.

Poderíamos dizer até que os artifícios enganam por meio de armadilhas elaboradas para provar que as realidades existentes são construídas; para questionar o caráter de natural que passa a integrar certas construções; bem como, para exigir um processo de argumentação sobre conceitos e perspectivas com lógicas que não se sustentam mais, mas que continuam a

59 Na primeira edição do livro O mundo fora dos eixos, há um índice onomástico no qual vemos a grande

variedade de autores lidos e citados por Bernardo Carvalho. Borges é o autor mais citado do volume. Pelas páginas que indicam onde há qualquer referência ao autor, Borges foi citado dez vezes em diferentes crônicas e em duas resenhas de livros.

existir devido à repetição sem questionamento. É uma construção que finge ser outra coisa com o objetivo de mostrar que aquilo que está a ser simulado foi, igualmente, construído.

Observamos, assim, uma estética do artifício presente na obra de Bernardo Carvalho. Toda a carga negativa atrelada ao sentido comumente atribuído ao artifício é revertida em sua obra no sentido de exaltar as possibilidades de criação. Os artifícios deixam de ser vistos como construções “mentirosas” e falsas, segundo o ideal platônico e o senso comum que persiste, e passam a figurar como a possibilidade de melhorar as construções. O produto da imaginação pode ter sido gerado por meio de uma lógica construída que supere a lógica existente. Na obra literária de Carvalho, como na estética do artifício pensada por Rosset60, há a consciência do factício marcando qualquer existência e a constatação animadora da possibilidade de aprimorar os processos construtivos.

É importante considerar que esses artifícios não estão sempre, e tão bem, encobertos. É possível reconhecê-los, por vezes, quando as engrenagens da ficção se tornam um pouco – às vezes, muito – expostas, exibindo o processo pelo qual a construção está se efetivando.

Tomando o elogio à maquiagem feito pelo poeta francês Charles Baudelaire61, e a imagem que o acompanha, poderíamos refletir que a maquiagem produz, sim, efeitos fascinantes em um rosto que utiliza de tais artifícios, potencializando, assim, a sua beleza, mas não nos é vedado saber sobre seu uso, “pouco importa que a astúcia e o artifício sejam conhecidos por todos, se o sucesso é certo e o efeito sempre irresistível” (BAUDELAIRE, 1992, p. 118). A imagem do produto, com sua beleza potencializada, não nos nega, ou nos esconde completamente a utilização dos artifícios. A maquiagem é um artifício que pode ser, em parte, comparado aos artifícios ficcionais carvalhianos que potencializam a ficção no sentido de dar força ao seu processo criativo e a toda sua capacidade argumentativa e questionadora.

E, algumas vezes, observamos que o processo artificial que marca a construção ficcional até chega a ser explicado.

Aquela altura dos acontecimentos, depois de meses lidando com papéis de arquivos, livros e anotações de gente que não existia, eu precisava ver um rosto, nem que fosse como antídoto à obsessão sem fundo e sem fim que me impedia de começar a escrever o meu suposto romance (o que eu havia dito a muita gente), que me deixava paralisado, com o medo de que a realidade seria sempre muito mais terrível e surpreendente do que eu podia imaginar e que só se revelaria quando já fosse tarde, com a pesquisa

60 Cf. ROSSET, 1989, “Estética do artifício”, p. 87-121.

terminada e o livro publicado. Porque agora eu já estava disposto a fazer dela realmente uma ficção. Era o que me restava, à falta de outra coisa. O meu maior pesadelo era imaginar os sobrinhos de Quain aparecendo da noite para o dia, gente que sempre esteve debaixo dos meus olhos sem que eu nunca a tivesse visto, para me entregar de bandeja a solução de toda a história, o motivo real do suicídio, o óbvio que faria do meu livro um artifício risível. (CARVALHO, 2002, p. 157)

É evidente que o elemento que simula não quer, de fato, transformar-se no objeto que o inspira. Como vimos, o processo de construção artificial, muitas vezes, é aparente. O artifício chega a ser explicado em alguns momentos. Os artifícios ficcionais que constroem a narrativa simulam outra condição para questioná-la, para refletir sobre aquilo que adquiriu a condição de natural.

A fórmula “baseado em fatos reais” que parece aproximar ou afastar – quando ausente – as obras artísticas do público parece perder um pouco de sua força diante, por exemplo, de romances que misturam a realidade com a ficção. Talvez, poderíamos chamar de instigante esse movimento que a literatura carvalhiana promove através da construção literária cuja poética está centrada nos artifícios.

REFERÊNCIAS