• Nenhum resultado encontrado

Livro (in)existente e embustes autorais

Em diversos contos dos livros Ficções e O Aleph, observamos uma série de livros citados de autores que a princípio são percebidos como desconhecidos. Os livros são mencionados em meio a comentários sobre algumas características que eles apresentam ou como citação que exemplifica algum ponto que está sendo discutido no momento, ou ainda alguns contos são a própria apresentação do livro ou dos livros de determinado autor. Um exemplo deste aspecto é o já mencionado conto “Exame da obra de Herbert Quain”.

Veremos que, apesar da naturalidade com que os livros aparecem, alguns nem sequer existem. Alguns, como o prefácio anuncia, não passaram pelo trabalho de produção e foram imaginados como já escritos, construindo reflexões a partir de livros inexistentes, porém imaginados.

O texto “O milagre secreto”, de Ficções, conta uma série de acontecimentos pelos quais passou Jaromir Hladik. Ele era de origem judaica, escritor do livro Vindicação da eternidade e do inconcluso Os inimigos, os quais são citados como obras reais, dando veracidade à vida do próprio escritor. Devido à sua origem e por uma série de trabalhos

considerados judaizantes, foi condenado à morte no dia dezenove de março de 1939, com a entrada do Terceiro Reich em Praga, sua cidade. Haveria dez dias até que a sentença fosse executada.

Hladik imagina sua morte de diversas maneiras, no tempo que lhe resta na cela onde espera. Imagina uma série de eventos que não gostaria que acontecessem na sua execução, e o faz porque acredita que pensá-los faz com que não aconteçam. Depois acredita de que por terem sido pensados irão acontecer. Nessa angústia passa o tempo que lhe resta. Sua obra inconclusa era a esperança de se redimir de todo o passado de escrita que o fazia se sentir arrependido. Sua iminente morte seria a impossibilidade de executar tal desejo. Na urgência do momento pede a Deus tempo para concluir tal tarefa.

Falou com Deus na escuridão. "Se de algum modo existo, se não sou uma de tuas repetições e erratas, existo como autor de Os Inimigos. Para levar a termo esse drama, que pode justificar-me e justificar-te, requeiro mais um ano. Outorga-me esses dias, Tu de Quem são os séculos e o tempo." Era a última noite, a mais atroz, mas dez minutos depois o sono o inundou como água escura. (BORGES, 2001, p. 164)

E Deus lhe concede o tempo. No instante que precede seu fim, ele percebe que o mundo físico para e sua mente continua para que termine sua história. Sua obra, é de fato finalizada, apesar de não existir, como também não existe o já citado Vindicação da eternidade, mencionado como um livro do autor e que dá certo aspecto de verossimilhança ao texto.

Diante dos vários autores reais citados por Borges, provando sua vasta leitura, os desconhecidos autores e livros aos quais faz referência acabam por se passar por reais, mas desconhecidos pelo leitor.

É curioso lembrar que o livro de Hladik, Vindicação da eternidade, é citado em uma nota do conto “Três versões de Judas”, também do Ficções, na qual é dito que o último capítulo do primeiro tomo é invocado no prólogo que o hebraísta Erik Erfjord faz para um livro. Ou seja, na nota de um outro conto do Ficções que discute outros livros talvez também ficcionais, o livro inexistente de Jaromir Hladik é citado, mais uma vez, como um livro real. Isso promove uma verossimilhança que indica para a existência de tal livro.

E ainda, outro fato curioso é que em “O jardim de veredas que se bifurcam”, um livro do capitão Liddell Hart é citado rapidamente e colocado como ponto de partida para a história que se desenvolve no conto. Porém, nesse caso o livro é real.

A construção ficcional, nos casos listados acima, dá-se por meio de livros reais e de livros inexistentes, com referências que se misturam no texto da mesma maneira, fazendo com que todo o processo de citação se pareça normal. Ou seja, há uma força na ficcionalização quando livros reais e falsos se misturam fazendo com que todos se pareçam reais, devido àqueles que existem de fato.

E acontece o mesmo com textos de autores ficcionais ou textos apócrifos que muitas vezes se misturam ao texto. Tal artifício aproveita a tradição comum de se fazer referências quando outro texto é citado para se colocar no lugar de textos já escritos e, por isso, de alguma maneira de textos que venceram o tempo, uma vez que são lembrados na ficção.

Pode-se chamar “embustes autorais”19 tal movimento de jogo com a autoria de textos. E poderíamos defini-lo como outro importante artifício presente na ficção de Borges, uma vez que é recorrente e que se trata de uma construção fundamentada na simulação.

1.2.9. Labirintos

Há uma fascinação de Jorge Luis Borges por labirintos. Construídos a partir de vários materiais – por símbolos, por letras, pelo tempo, por espelhos, entre outros – e sempre fazendo personagens e leitores se perderem em meio aos diversos caminhos que, muitas vezes, pretendem levá-los à saída.

“O jardim de veredas que se bifurcam”, nome do conto e de uma parte do livro Ficções é também uma possível denominação de labirinto, pois o referido jardim é o próprio labirinto que representa um universo com uma série infinita de tempos que coabitam em uma rede abrangendo todas as possibilidades de acontecimentos. No caso desse conto, o labirinto é, ainda, a ficção que faz o leitor se perder diante da constante reformulação de expectativas para o desfecho da história, que muitas vezes se dá somente ao final da narrativa. O labirinto pode ser, assim, um conjunto de pistas falsas que levam o leitor para muitos outros caminhos diferentes daquele principal que é apresentado somente no último parágrafo do texto.

No conto “A morte e a bússola”, também de Ficções, o investigador Erik Lönnrot tenta desvendar o assassino que provocou uma série de mortes, que, a princípio, são consideradas inexplicáveis.

19

O primeiro assassinato ocorre às vésperas de um Congresso Talmúdico, e é o rabino Marcelo Yarmolinsky a primeira vítima. Lönnrot passa a investigar nos livros de estudos judaicos, com os quais a vítima trabalhava, para encontrar a motivação do crime, que ele acreditava tocar de alguma maneira em questões rabínicas. Os livros em que procura possíveis pistas começam a enredá-lo. Como um caminho falso no labirinto, os objetos de investigação começam a fazer com que ele comece a se perder nas pistas falsas.

Outros dois crimes foram seguidos de pistas que levassem o investigador à solução do mistério das mortes e comparecesse antes que o quarto crime fosse cometido. O que de fato acontece. Lönnrot apreende uma lógica entre os crimes cometidos, através das datas dos acontecimentos e dos locais onde as pessoas foram assassinadas, e prevê um quarto crime. Ele se dirige para o possível local do quarto crime.

As circunstâncias que cercam os três primeiros crimes enredam o investigador em um labirinto geográfico com, digamos, paredes construídas por uma lógica que ele acredita dominar, mas que acaba por fazê-lo se perder – o que na verdade, é um dos propósitos de todo labirinto. Ele caminhou por pistas que o levaram exatamente para a perdição.

O assassino Red Scharlach, que premeditou os crimes, na verdade, traçou uma rede para atrair o investigador, que aquele jurara de morte. O labirinto em que Lönnrot se perdeu é o próprio caminho para a sua morte. A lógica que o labirinto queria que o investigador formulasse era, também, o caminho para que ele se perdesse, para que Erik encontrasse a sua morte.

E antes que Scharlach efetivasse seu plano, o investigador, perdido no dédalo, fez considerações acerca do labirinto:

– Em seu labirinto sobram três linhas a mais – disse por fim. – Eu sei de um labirinto grego que é uma linha única, reta. Nessa linha perderam-se tantos filósofos que bem pode perder-se um mero detetive. Scharlach, quando em outro avatar você me der caça, finja (ou cometa) um crime em A, depois um segundo crime em B, a 8 quilômetros de A, depois um terceiro crime em C, a 4 quilômetros de A e de B, no meio do caminho entre os dois. Aguarde-me depois em D, a 2 quilômetros de A e de C, de novo no meio do caminho. Mate-me em D, como agora vai matar-me em Triste-le-Roy. (BORGES, 2001, p. 157)

A estrutura labiríntica e todas as suas implicações são frequentes na obra borgeana, por isso é comum que o leitor desavisado, às vezes, se sinta perdido diante da reformulação constante das expectativas de leitura. É possível dizer que o labirinto é um artifício caro ao autor, pois em diversos textos ele constrói uma rede narrativa que se assemelha ao “jardim de

veredas que se bifurcam”, fazendo com que o leitor tenha que se perder para encontrar algo, como acontece ao personagem da história. Além disso, em muitos textos, ele se dedica a pensar tal estrutura, a edificá-la com variantes ou mesmo fazer com que o leitor o perceba de perspectivas diferenciadas.