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1 ASPECTOS DO FOTODOCUMENTARISMO MODERNO

1.2 FUNDAMENTOS DA FOTOGRAFIA DOCUMENTAL MODERNA

1.2.4 A ruptura da tradição moderna

1.2.4.1 Andujar: transição entre o moderno e o contemporâneo

Claudia Andujar será tratada aqui como uma das figuras, ao lado de Miguel Rio Branco e Mário Cravo Neto, cujo trabalho representa no Brasil uma espécie de interseção entre a fotografia documental moderna e a contemporânea. A temática de sua obra é humanista – a luta pela defesa dos índios yanomami –, mas o estilo mistura influências modernas (como a frontalidade de Walker Evans) e contemporâneas (como as imagens borradas de Robert Frank). É justamente nesse contexto que a fotógrafa aponta para uma “liberdade expressiva”, notada em distorções ópticas e borrões, que ressurge com novo vigor na década de 90 por meio de autores como Christian Cravo e Tiago Santana.

Na opinião de Laymert Santos (2005, p. 48), Andujar, que nasceu na Suíça, foi criada na Hungria e viveu nove anos nos Estados Unidos antes de chegar ao Brasil em 1955, produz fotografias alternando as estéticas moderna e contemporânea. De acordo com o autor, os modernos que influenciaram a fotógrafa foram Lewis Hine, Dorothea Lange e W. Eugene Smith, além de Evans. Do lado dos contemporâneos, ainda segundo Santos, fotógrafos como Frank contribuíram para “educar o olhar” de Andujar, que integrou o grupo de estrangeiros que atuaram na revista Realidade.27

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Integravam a equipe da Realidade (1966-1976) profissionais estrangeiros que se estabeleceram no país no final dos anos 50 e que “talvez sejam as últimas influências na criação de um olhar contemporâneo e absolutamente sintonizado com nossa identidade”. (FERNANDES JUNIOR, 2003, p. 152). Esses fotógrafos, além de Andujar, eram a inglesa Maureen Bisilliat e os americanos Lew Parrela, George Love e David Zingg. Mais tarde alguns deles, além de Andujar, passariam a se dedicar a projetos fotodocumentais mais autorais. Bisilliat, por exemplo, trouxe para a fotografia a possibilidade de entender a cultura brasileira a partir da literatura ao interpretar fotograficamente obras de escritores como Guimarães Rosa, João Cabral de Mello Neto e Jorge Amado.

De Evans, Hine, Lange e Smith é possível afirmar, de acordo com Santos (2005, p. 48), que Andujar recebeu o “rigor no enquadramento” para recortar com precisão “os pobres, os trabalhadores, as minorias, as crianças, os deserdados da terra e fazê-los emergir de sua existência anônima e obscura para entrar na imagem [com dignidade]”. Em Marcados28

(figuras 18 e 19), a fotógrafa adota enquadramento frontal nos retratos para cadastros de saúde dos yanomami. Os índios encaram a câmera e ocupam uma posição central no quadro. Boa parte das 82 fotografias que integram essa série dialoga diretamente com as imagens de Evans sobre agricultores atingidos pela Grande Depressão americana nos anos 30 (figura 9).

Figura 18: Marcados, Andujar, 1981 Figura 19: Marcados, Andujar, 1981 Fonte: ANDUJAR, 2009, p. 80 Fonte: ANDUJAR, 2009, p. 81

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O trabalho compreende uma série de retratos de índios yanomami com objetivo de fazer um levantamento da saúde dos grupos em contato com o branco. Como os yanomami não respondem a nome próprio, foi adotado o método consagrado desde o século XIX para a identificação dos chamados povos nativos: uma fotografia com um número preso ao corpo. Entre 1981 e 1983, a fotógrafa produziu centenas de retratos, na época usados nos cadastros de saúde dos yanomami. (SENRA, 2009, p. 127).

Também é possível afirmar que Andujar herdou das gerações que a precederam o comprometimento de tornar sua atividade engajada na luta pela melhoria da qualidade de vida das classes menos favorecidas. Isso fica evidente quando deixa a equipe da Realidade – revista pela qual conheceu a Amazônia ao viajar por seis meses produzindo fotografias para um número especial que foi às bancas em 1971 – “para se dedicar a um trabalho autoral mais aprofundado, que requer tempo, envolvimento e imersão total no assunto”.29

Já a zona de confluência de Andujar com a fotografia documental de Frank se reflete na “visão subjetiva” e na “liberdade expressiva” presentes nas séries sobre os rituais xamânicos e as caçadas dos índios na floresta amazônica. Na opinião de Brandão e Machado (2005, p. 171), a plasticidade existente em alguns momentos na obra da fotógrafa antecipou, “de modo visionário”, conceitos e estéticas notados de forma mais recorrente na fotografia contemporânea brasileira apenas a partir da década de 90.

Baseada nos relatos dos yanomami acerca de “encontros com os espíritos” proporcionados pelo pó alucinógeno yãkõana e inspirada no ambiente onde acontecem os rituais, quase sempre banhado por uma luz fraca, a fotógrafa criou uma estética original para interpretar imageticamente as cerimônias de transcendência xamânica. Nesses rituais, os pajés dizem “morrer” e entram num estado de transe visionário durante o qual “fazem descer” os espíritos com os quais se identificam, imitando as coreografias e cantos de cada um conforme a ordem de sua chamada na pajelança (figura 20). Brandão e Machado discorrem sobre as estratégias que permitiram a Andujar “revelar o mundo invisível que há por trás do visível”.

Na combinação de recursos técnicos tradicionais com estratégias pessoais, uma de suas principais idéias foi a substituição de equipamentos de flash pela distribuição de lampiões de querosene no interior da oca. Com isso, a imagem exibe uma espécie de “deslocamento” dos elementos à volta do índio, sugerindo a migração de sua consciência: focados em primeiro plano,

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Andujar obteve uma bolsa da Fundação Guggenheim e outra da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) para levar adiante seu interesse pelos yanomami, que havia conhecido durante sua atuação na Realidade. Passou longos períodos nas aldeias e manteve uma íntima convivência com os índios. Ao final de 1976, com outros estudiosos e antropólogos estrangeiros, foi enquadrada na Lei de Segurança Nacional e forçada a deixar a região. A proibição terminou em 1978. Nessa época, ela reafirmou sua luta à causa indígena ao participar da fundação da Comissão pela Criação do Parque Yanomami e coordenar o projeto de demarcação das terras indígenas. Andujar voltaria várias vezes às aldeias para permanecer por períodos mais curtos e registrar os efeitos do contato do índio com o homem branco. Nos anos 80 e 90, milhares de garimpeiros invadiram a região para explorar jazidas minerais. No entanto, a luta de Andujar, na qual suas fotografias tiveram papel decisivo, foi recompensada quando o governo finalmente demarcou em 1991 as terras dos 12 mil yanomami que vivem no Brasil.

os indivíduos parecem flutuar sobre um fundo de luzes pulsantes, em trabalhos que configuram uma verdadeira “proeza do olhar” na mimese de seu tema. Visão e percepção encontram-se de tal modo sintonizadas com seu objeto que os resultados, obtidos unicamente pelo processo tradicional de revelação em laboratório, constituem por si só um exemplo acabado de construção pictórica. (BRANDÃO e MACHADO, 2005, pp. 172, 173).

Figura 20: sem título, Andujar, sem data Fonte: ANDUJAR, 1998, p. 82

Figura 21: sem título, Andujar, sem data Fonte: ANDUJAR, 1998, p. 45

A produção de Andujar que registra as caçadas yanomami na selva amazônica também apresenta conteúdo visual pouco comum para a década de 70. Nessa série, da qual a figura 21 é exemplar, o cenário de fundo formado pela vegetação da floresta aparece borrado – em

Elevator (figura 17), Frank utiliza o efeito de arrastamento, mas para atribuir aspecto informe

às pessoas. O resultado, tanto em Andujar quanto em Frank, é a instabilidade da imagem. Em vez da informação objetiva exigida pela fotografia documental moderna, ambos apostam em imagens de caráter evocativo da experiência de uma caçada yanomami e da ascensorista que vê seus passageiros numa transitoriedade ininterrupta. A capacidade de certas imagens trazerem ao leitor a lembrança de uma experiência mesmo através da precariedade da informação será discutida, com auxílio de Gombrich (1982), na primeira parte do segundo capítulo desta dissertação.

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