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2 DOCUMENTAL CONTEMPORÂNEO: TERRITÓRIO DE MUDANÇAS

2.1 CONTEXTO DO FOTODOCUMENTARISMO CONTEMPORÂNEO

2.1.2 O desenvolvimento de uma estilística

O segundo aspecto que distingue a fotografia documentária contemporânea da moderna passa pelo viés da estilística. Os fotógrafos contemporâneos estão mais preocupados com o desenvolvimento de um estilo do que em abordar temas sociais ou antropológicos, predominantemente característicos do caráter humanista dos modernos. Para os contemporâneos a temática é secundária, às vezes ela inclusive se perde na falta de legibilidade provocada pela intensificação de efeitos estéticos. Já o horizonte dos modernistas é a transparência do tema. Isso porém não impede que autores como Jean Manzon, José Medeiros, Pierre Verger e Sebastião Salgado imprimam uma marca pessoal às imagens que produzem.

Neste ponto, é recomendável dedicar atenção ao conceito de estilo e sua relação com a produção da geração mais recente de fotógrafos. Para isso, será tomada a definição oferecida por Gianni Carchia e Paolo D´Ângelo (1999), que apresenta as noções “coletiva” e “individual” de estilo, ambas associadas às artes figurativas. Interessa aqui destacar a idéia de identidade estilística “individual”, “aquela na qual é mais freqüente o uso avaliativo do termo estilo”:

[...] se fala de estilo para indicar os aspectos que caracterizam as obras de um autor, permitindo deste modo diferenciá-lo dos outros. [...] Dizer que determinado autor possui um estilo próprio significa reconhecer particular valor às suas obras (daqui também o uso absoluto do termo estilo como indicador de valor, “ter estilo”, ainda que a identidade de um procedimento ou de um produto não seja garantia do seu valor artístico). (CARCHIA e D´ÂNGELO, 1999, p. 118).

A partir deste conceito, é possível pensar que o desenvolvimento de uma estilística é primordial para o documentarista contemporâneo valorar sua obra a ponto de inseri-la no circuito artístico. O fotógrafo passa a ter necessidade de pesquisar formas pouco convencionais para criar um discurso visual expressivo que se destaque num mundo com imagens em excesso e de todo tipo – fotográfica, televisiva, fílmica, infográfica, pictórica, escultórica, cenográfica etc. Na opinião de Aumont (1993, p. 286), o poder significativo do estilo cabe num princípio simples: “um estilo será tanto mais expressivo quanto mais novo for.”

Para Fernandes Junior (2003, p. 181), cada vez mais os profissionais têm percebido que a fotografia integra o mundo das imagens em abundância e por isso procuram produzir obras que se destaquem da mesmice e carreguem “a centelha da transformação, capaz de estimular o leitor a refletir sobre aquilo que vê”. Ainda segundo Fernandes Junior (2000b, p. 11), “diante do amplo panorama da fotografia contemporânea, são poucos os artistas que se enveredam pelo árduo caminho da fotografia documental. Com tantas e diversas possibilidades de se expressar através da linguagem fotográfica, um trabalho centrado na referência do mundo visível, para se destacar, tem de ter um diferencial”.

Na opinião do fotógrafo Miguel Rio Branco (apud PERSICHETTI, 2000, p. 148), “há uma tentativa de transformação da linguagem fotográfica, […] uma vontade de desenvolver novas maneiras estéticas, mais ligadas às artes plásticas”. A preocupação dos documentaristas contemporâneos portanto é desenvolver um olhar “inovador” sintonizado com o contexto atual do circuito de museus e galerias de arte, onde a fotografia tem sido vista com freqüência. Gaelle Morel (2007) afirma que a produção fotográfica voltada para o campo das artes visuais implica uma estética particular apoiada em uma estilização das imagens. Definidos e reconhecidos pelo “olhar” que lançam sobre os acontecimentos do mundo, os autores usam marcas visuais “fortes e insistentes”. Morel informa que o trabalho desses artistas se caracteriza pela recorrência de efeitos formais como borrão, recusa à frontalidade, distorção óptica e cabeças, corpos e membros cortados e fragmentados pelo uso de enquadramentos pouco convencionais. “L‟affirmation de cette subjectivité est perçue pour ces photographes comme le moyen de distinguer leur production des clichés réalisés par les photojournalistes traditionnels”.(MOREL, 2007).7

Fotógrafos brasileiros estão conectados com essas tendências internacionais recentes e são influenciados por elas. Fernandes Junior (2000b, p. 12), ao analisar o ensaio Irredentos, de Christian Cravo, lista alguns dos conteúdos visuais recorrentes na produção atual: “[…] ângulos inusitados de visão; uso de objetivas que permitem vários e diferentes planos; áreas descontínuas que, postas em confronto na mesma cena, provocam procedimentos de leitura mais elaborados; assimetrias radicais na composição; valorização das sombras, raramente transparentes”.

7 “A afirmação desta subjetividade é percebida por esses fotógrafos como o meio de distinguir sua

Esse repertório de formas e procedimentos compatível com uma estética contemporânea geralmente produz um estranhamento que desperta a atenção do espectador, que no entanto às vezes é privado do reconhecimento imediato do tema. A produção de Santana, recheada de imagens ambíguas, é exemplar desse aspecto, pois parece tocar mais o receptor pelo eco que encontra em sua cultura visual que pela emoção trazida pelo assunto. Em depoimento à crítica de fotografia Simonetta Persichetti (2000, p. 178), o fotógrafo relata que houve momentos em que achava sua obra “plástica demais, quase gráfica”. Isso o incomodava “porque a estética parecia querer prevalecer sobre a emoção, sobre o conteúdo”.

Muitas vezes, na fotografia documental contemporânea, a intensificação dos artifícios plásticos é tão intensa que há dispersão do tema pela forma. A temática passa a ser um instrumento para um exercício estético que deixa em segundo plano a referência ao real. Gilles Saussier condena o ato de sobrepor “efeitos estilísticos” ao testemunho fotográfico, uma característica histórica do documental. “Dans ces photographies, ce n‟est pas tant le monde que l‟on apprend à connaître que le style des auteurs que l‟on cherche à reconnaître”. (SAUSSIER, 2001, apud POIVERT, 2002, p. 59).8 Ao refletir um olhar pessoal, particular,

uma visão do mundo com a personalidade do fotógrafo, o estilo contribui para demarcar a chamada “fotografia autoral”, que pressupõe o desenvolvimento de uma assinatura. Com a palavra, Michel Poivert (2002, p. 56):

Ce que certains appellent aujourd‟hui le “documentarisme d‟auteur” procède en effet de cette tradition où le reporter non seulement cherche à se distinguer de l‟économie de la communication, mais cherche aussi et surtout une forme de reconnaissance au sein du champ photographique […]. Pour se faire reconnaître, il faut donc avoir un “regard” et produire un certain nombre d‟effets reconnaissables, bref avoir un style.9

O desenvolvimento de uma estilística contemporânea logo parece colocar em xeque juízos estéticos consolidados na fotografia documental moderna, como a transparência temática. Para Sontag (2004, p. 152), está falida a posição que avalia uma boa fotografia por meio de

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“Nestas fotografias, não é tanto o mundo que vamos aprender a conhecer, mas o estilo dos autores que vamos procurar reconhecer”. (Tradução nossa).

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Isso que hoje alguns chamam de “documentarismo de autor” procede da tradição onde o repórter não apenas procura se distinguir da economia da comunicação, mas procura também e sobretudo uma forma de reconhecimento no seio do campo fotográfico. […] Para se fazer reconhecer, é preciso portanto ter um “olhar” e produzir um certo número de efeitos identificáveis, enfim ter um estilo. (Tradução nossa).

normas como clareza do tema, luz impecável, habilidade de composição e precisão de foco. Esses aspectos deram lugar a “uma posição muito mais inclusiva, com critérios que deslocam o centro de juízo da foto individual, tida como um objeto acabado, para a foto vista como um exemplo de „visão fotográfica‟”.

O que a autora chama de “visão fotográfica” inclui “fotos anônimas, não posadas, toscamente iluminadas, compostas de forma assimétrica, antes desdenhadas por sua falta de composição”. “A nova posição almeja liberar a fotografia, como arte, dos padrões opressivos da perfeição técnica; liberar a fotografia da beleza, também. Abre a possibilidade de um gesto global, em que nenhum tema (ou ausência de tema), nenhuma técnica (ou ausência de técnica) desqualifica a fotografia”. (SONTAG, 2004, p. 153).

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