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8. ANEXOS

8.8. ANEXO VIII Entrevista com o Embaixador Adhemar Bahadiam

FIGUEIREDO, Janaína; “O impasse é de difícil solução”. O Globo, Rio de Janeiro, 05 abr. 2004e. Caderno de Economia, p.15.

BUENOS AIRES. Chegou a hora da verdade para os negociadores da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Após dez anos de discussões, o futuro do acordo está hoje nas mãos de dois blocos: o Mercosul, que exige acesso ao mercado dos Estados Unidos para produtos agrícolas, e o G-14, grupo liderado pelos EUA, que pede regras que iriam além das já consolidas na Organização Mundial de Comércio (OMC), nas áreas de serviços, compras governamentais, investimentos e propriedade industrial. "Estamos num impasse de difícil solução", admitiu o co-presidente das negociações, o embaixador brasileiro Adhemar Bahadian, em entrevista exclusiva ao GLOBO.

A Alca começou a ser negociada em dezembro de 1994, e hoje o acordo parece mais distante do que nunca.

ADHEMAR BAHADIAN: A Alca surgiu como iniciativa dos EUA e deve ser analisada do ponto de vista da política externa comercial americana, que está bem estruturada e depende do Congresso. Para os EUA, a expansão de suas empresas em outros mercados é uma diretriz que permeia toda a negociação do país. Também é importante entender que um dos braços centrais da Alca são as negociações de acesso a mercados, nas quais buscamos aumentar nosso acesso ao mercado americano reduzindo e eliminando tarifas. O problema é que isso não interessa aos EUA. O que importa aos americanos é a criação de regras que sejam mais favoráveis a suas empresas, garantindo-lhes uma posição mais confortável nos países do continente. São regras que vão além das já negociadas na OMC, principalmente nas áreas de investimentos, propriedade industrial, compras

governamentais e serviços.

O Mercosul não admite modificar suas regras?

BAHADIAN: Não queremos aceitar regras além das já consolidadas na OMC, que teriam um impacto negativo na política industrial de um país como o Brasil. Por exemplo, a política de propriedade industrial, que protege patentes, entrou na OMC na Rodada Uruguai (1986-1994) por influência das grandes potências. Na sua origem, era dado a um inventor um monopólio por meio de patente, limitado no tempo, sempre defendendo que a sociedade fosse beneficiada pela fabricação de um determinado produto. Quando a questão entrou na OMC, perdeu-se a ênfase no benefício social. Um país acusado de não cumprir uma regra de propriedade industrial pode ser punido na sua capacidade de exportação. Na Alca, os países mais desenvolvidos querem regras mais rígidas e

favoráveis ao capital e não necessariamente ao trabalho. O Brasil não pode aceitar isso. O clima é de muita tensão...

BAHADIAN: Existem dois pólos: acesso a mercados contra criação de regras. Nas ofertas do G-14 vemos que os produtos que mais nos interessam, sobretudo em agricultura, só entrariam no processo de liberalização comercial num prazo superior a dez anos. Mas as regras devem ser modificadas já...

BAHADIAN: Aí entra o desequilíbrio. A estratégia dos EUA era dizer: "vocês deveriam fazer a Alca porque terão acesso ao nosso mercado". Durante algum tempo predominou essa ilusão. Mas quando Celso Amorim assumiu o Ministério das Relações Exteriores, perguntamos aos americanos se estavam dispostos a negociar acesso a mercados, e na reunião de Trinidad e Tobago (outubro de 2003) o governo americano admitiu que não poderá negociar o fim dos subsídios às exportações e à produção agrícola, nem regras antidumping, que são de extrema importância para nós. Por isso, propusemos o respeito às sensibilidades de cada país, base do acordo fechado no encontro de ministros em Miami, de novembro de 2003.

Por que fracassou a estratégia iniciada em Miami?

BAHADIAN: Porque surgiu um fundamentalismo negociador. Os americanos e canadenses disseram que, não havendo regras em compras governamentais e investimentos, não havia interesse em negociar acesso a mercados. Esse foi o impasse de Puebla (fevereiro de 2004), quando os países que integram o G-14 afirmaram que teriam de reduzir suas ofertas porque o Mercosul teoricamente estava reduzindo sua proposta sobre regras. A jogada do Mercosul foi propor três rodadas imediatas de acesso a mercados e melhorar sua oferta em bens industriais, agrícolas e serviços. Mostramos disposição para negociar uma maior abertura em setores como finanças e telecomunicações. Essa argumentação provocou uma crise no G-14, que teve de calar a boca porque fizemos uma oferta sobre serviços.

O G-14 está tentando impedir o acordo?

BAHADIAN: Acho que eles não podem assumir o que foi acertado em Miami. Primeiro porque a política externa americana tem interesses claros, como a proteção da

propriedade industrial. Segundo, porque a maioria dos países do continente, com exceção do Mercosul, tem acordos com os EUA nos quais as regras sobre propriedade industrial são mais rígidas do que as que seriam obtidas na Alca. Estes acordos são como um Papai Noel de shopping: são magrinhos e carregam caixas de presentes vazias. Se os EUA aceitassem as demandas do Mercosul teriam de baixar o nível dos acordos já assinados ou enfrentar as queixas dos parceiros.

Qual é o estado atual da Alca?

BAHADIAN: Estamos num impasse de difícil solução. Para avançar nas negociações temos de respeitar Miami e realizar rodadas de acesso a mercados.

A Alca proposta pelos EUA é assimétrica?

BAHADIAN: Sim, porque não nos dá acesso real ao mercado americano de produtos agrícolas e propõe uma ampliação de regras que são difíceis para países como o Brasil.

Assim não interessa. Nos últimos meses, tornamos mais clara a negociação e mostramos que não há nada de ideológico na posição brasileira.

A bola está do lado dos americanos...

BAHADIAN: A bola está do lado do G-14. O Mercosul fez propostas que viabilizariam Miami. E do lado do G-14 o que recebemos foram propostas mais rígidas.

O senhor se sente frustrado?

BAHADIAN: Não, sinto-me satisfeito porque conseguimos tornar o jogo mais claro. O que parecia ser uma grande perspectiva não é mais. Nós não destruímos a Alca, fizemos uma proposta que tem base e se mostrou uma postura que preserva os interesses das partes. O problema é que um dia nos dizem que a casa é de palha e no outro, que é de cimento. Agora chegou a hora da verdade. Não sei qual será a resposta dos americanos, mas num ano eleitoral eles deverão decidir o que é melhor para seus interesses.