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Verifica-se que as lides reportadas têm, em sua origem, a precariedade das condições dos presídios brasileiros e a sistemática violação dos direitos fundamentais dos indivíduos neles encarcerados. Observa-se, ainda, que o tema que perpassa as referidas ações é o descaso e a omissão do Poder Executivo em relação ao sistema prisional, com base na administração ineficiente e na ausência de investimentos nos estabelecimentos carcerários, tendo por resultado a barbárie aqui narrada.

Embora a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 mencione falhas nas políticas legislativas, o fato é que, no Brasil, conforme o exposto no capítulo anterior, leis que garantam direitos aos presos é o que não falta. O que falta é seus preceitos saírem do papel mediante ações a cargo do Executivo. Os direitos assegurados aos presos na Constituição Federal, na Lei de Execução Penal, na Lei do Fundo Penitenciário Nacional e nos inúmeros tratados ratificados pelo Brasil simplesmente não se concretizam em proteção efetiva daqueles que deveriam ser beneficiados. E os governantes pouco fazem para alterar a situação.

Em relação à ADPF, oportuno destacar o entendimento de Lenio Streck no sentido de que a tese do estado de coisas inconstitucional é demasiadamente abrangente

290 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 143.641. Impetrante: Defensoria Pública da

União. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. STF, 20 fev. 2018. p. 55-6. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143641final3pdfVoto.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2018.

291 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 2ª Tuma concede HC coletivo a gestantes e mães de filhos com

até doze anos presas preventivamente. Notícias STF, 20 fev. 2018. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=370152>. Acesso em: 9 jan. 2018.

e ambiciosa para ser convertida em medidas práticas292. De qualquer forma, trata-se de

ação cujo mérito ainda aguarda julgamento, razão pela qual optou-se pela adoção do RE 592.581/RS como paradigma para este estudo.

Cumpre referir, ainda, que no Brasil o orçamento público é de iniciativa do Poder Executivo (art. 165 da CF), que o elabora com base em seus planos de ação, cabendo ao Legislativo somente aprovar ou rejeitar a proposta. Aprova-se apenas uma verba geral para as despesas, sem a discriminação de gastos específicos, o que outorga uma significativa margem de discricionariedade ao administrador público – cuja omissão ou desvio ensejam o controle judicial. Estão primordialmente a cargo do Executivo, portanto, as decisões sobre a alocação dos recursos e as despesas do governo. Porém, no que concerne à administração do sistema prisional, a alocação dos recursos necessários não vem sendo feita, como conclui-se da gravidade da crise carcerária e do crescente déficit de vagas nos presídios.

No que diz respeito à atuação do Poder Judiciário, as notícias sobre o tema evidenciam que tem empreendido esforços, capitaneados pelo Conselho Nacional de Justiça, para combater o encarceramento e reduzir a superlotação das prisões. É o que demonstram, por exemplo, os mutirões carcerários, realizados desde agosto de 2008. A

iniciativa reúne juízes que percorrem os estados da Federação para analisar a situação processual das pessoas que cumprem pena, - revisando as prisões de presos definitivos e provisórios - além de inspecionar unidades carcerárias, com o objetivo de evitar irregularidades e garantir o cumprimento da Lei de Execução Penal. Segundo dados fornecidos pelo CNJ, até 2014 ao menos 400 mil processos de presos já haviam sido analisados, pelo menos 45 mil presos haviam sido libertados e mais de 80 mil benefícios concedidos, como progressão de pena, liberdade provisória, direito a trabalho externo, entre outros293. Somente no Estado do Paraná, entre 2011 e 2017 mais de 27 mil

292 STRECK, Lenio Luiz. Estado de coisas inconstitucional é uma forma de ativismo. Observatório

Constitucional, Consultor Jurídico, 24 out. 2015. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015- out-24/observatorio-constitucional-estado-coisas-inconstitucional-forma-ativismo>. Acesso em: 06 fev. 2018.

293 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Mutirão Carcerário. Brasília. Disponível em:

<http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/pj-mutirao-carcerario>. Acesso em: 14 abr. 2018.

benefícios foram concedidos em mutirões carcerários294, sendo que, atualmente, todos

os estados da Federação já foram visitados ao menos uma vez295.

Dentro do CNJ, o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário também desenvolve projetos de recuperação dos presos, incluindo o Programa Começar de Novo, que “administra, em nível nacional, oportunidades de estudo, capacitação profissional e trabalho para detentos, egressos do sistema carcer|rio, cumpridores de penas alternativas e adolescentes em conflito com a lei”296.

Além disso, em fevereiro de 15, foi lançado o projeto “ udiência de ustódia”, que consiste na garantia da rápida apresentação do preso a um juiz nos casos de prisão em flagrante, para que se analise prontamente, em audiência, a legalidade, a necessidade e a adequação da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. O juiz pode também avaliar se o preso foi sujeito a tortura ou maus-tratos na detenção, entre outras irregularidades297. As audiências de custódia

encontram previsão em tratados assinados pelo Brasil, nomeadamente o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos. Com esse projeto, as audiências passaram a ser adotadas em vários estados do país, mesmo antes de se tornarem obrigatórias por determinação do Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 347298.

Não se questiona a importância de mudanças em políticas legislativas e na orientação jurisprudencial, tampouco o fato de que ainda se fazem necessários avanços na forma de atuação dos membros de ambos os Poderes diante da situação das prisões brasileiras. O que se afirma, contudo, é que tais ações se mostram insuficientes diante da omissão do Poder Executivo, a cargo de quem está a responsabilidade por buscar soluções imediatas para a grave situação em que se encontram os estabelecimentos prisionais, e a quem falta motivação política para fazê-lo.

294 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Mutirões carcerários beneficiam 27,6 mil no Paraná. CNJ, 6

fev. 2017. Disponível em: <http://cnj.jus.br/noticias/judiciario/84323-mutiroes-carcerarios- beneficiam-27-6-mil-no-parana>. Acesso em: 10 fev. 2018.

295 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Mutirão Carcerário. Brasília. Disponível em:

<http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/pj-mutirao-carcerario>. Acesso em: 14 abr. 2018.

296 Ibid.

297 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Audiência de Custódia. Brasília. Disponível em:

<http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia>. Acesso em: 14 abr. 2018.

298 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. AM pode economizar 27 milhões por ano com audiências, diz

Lewandowski. CNJ, 7 ago. 2015. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/80108-am- pode-economizar-r-27-milhoes-por-ano-com-audiencias-diz-lewandowski>. Acesso em: 22 mar. 2018.

Diante dessa inércia da administração pública no enfrentamento da crise prisional, resta ao Judiciário, quando provocado, a tarefa de propor as medidas emergenciais necessárias para combater a consequente transgressão de direitos fundamentais. No entanto - e aqui reside a verdadeira controvérsia - é necessário verificar em que medida podem os tribunais intervir em esfera de atuação tipicamente reservada ao Poder Executivo, com a finalidade de assegurar o cumprimento dos direitos fundamentais arrolados na Constituição Federal.

Nesse diapasão, os pleitos judiciais que visam a implementação de medidas concretas para o melhoramento, a reforma ou a construção de presídios são os que melhor consubstanciam a discussão aqui proposta. É o que se verifica no Recurso Extraordinário nº 592.581, em cujo julgamento o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento, que agora passa a ser observado pelas instâncias judiciais inferiores, de que podem os juízes e os tribunais determinar ao Poder Executivo a promoção de medidas e a execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais, com o objetivo de assegurar a efetivação da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais dos presos.

Dentre os vários argumentos que fundamentam as críticas à interferência judicial na administração do sistema prisional, os principais são no sentido de que a efetivação dos direitos a prestações estatais não pode ser exigida judicialmente, de que indisponibilidade de recursos constitui verdadeiro limite fático à concretização de tais direitos e de que a imposição judicial de condutas tipicamente reservadas à esfera de discricionariedade administrativa configura hipótese de ativismo judicial, carecendo de legitimidade democrática e configurando afronta ao princípio da separação de poderes. Nos capítulos que seguem, pretende-se contribuir para o debate de tais questões, à luz da controvérsia trazida à baila no Recurso Extraordinário nº 592.581/RS.

5 A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS A PRESTAÇÕES DOS PRESOS E A GARANTIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL