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O controle de constitucionalidade, à luz do que afirmado, é, pois, uma das mais sérias garantias constitucionais, sem o que não se torna possível a mantença da superioridade da norma constitucional, dentre a gama de normas jurídicas existentes no sistema de direito positivo.519 É pela contínua verificação da conformidade das normas infraconstitucionais, em relação à produção estatuída nas normas constitucionais, que se reforça a supremacia constitucional e renova a força normativa da Constituição, que se atualiza na aplicação pela Jurisdição Constitucional.

O controle de constitucionalidade deita raízes na doutrina de Edward Coke que, no início do século XVII (1610), já afirmava a existência de um controle dos atos advindos do Órgão Legislativo.520 No célebre caso Bonham (Bonham’s Case – The

519

FIÚZA, Ricardo Arnaldo Malheiros. O controle de constitucionalidade das leis. Revista de informação legislativa, Brasília, ano 31, n. 123, p. 237-248, jul.-set. 1994. p. 238.

520

Adhemar Ferreira Maciel rememora que no Reino de Aragão (atual Espanha), ainda no século XIII, podia-se vislumbrar “um arremedo de jurisdição constitucional”, denominada Consistorio, presidida por um Justitia Mayor, que se encarregava “de controlar as leis do reino”. (MACIEL, Adhemar Ferreira. O acaso, John Marshall e o controle de constitucionalidade. Revista de informação legislativa, Brasília: Senado Federal, ano 43, n. 172, p. 37-44, out.-dez., 2006. pp. 38-39.)

College os Physicians vs. Dr. Thomas Bonham), o juiz Coke admitiu a correção e a

limitação da legislação vigente, consoante preceitos jurídicos consagrados pelo

common law, dando azo à construção da judicial review.521

Tido como dos mais famosos casos e dos mais famosos votos do Sir Edward Coke, parecia não se conceber, à data do julgamento, a proporção que tomaria e a influência que teria nas gerações futuras.522 Para Cappelletti e Adams, todavia, o exemplo anacrônico do Caso Bonham foi “a sport in British constitutional history”523

, porquanto, na Revolução Gloriosa de 1688, que se seguiu, a inspiração adveio das teorias de John Locke e não do próprio Coke, vez que os juízes não gozavam de confiança no período, de modo que, o Legislativo, e não o Judiciário, era feito superior e seu poder não se encontrava limitado.524

Em todo caso, importa ter presente que o referencial histórico consagrou, a seu tempo, que um ato do parlamento, contrário ao common right e à razão, ou repugnante, ou impossível de ser executado, será controlado pelo common law e julgado “nulo”.525

521 Cf. COKE, Edward. Dr. Bonham’s Case. In: ______. The selected writings and speeches of Sir

Edward Coke edited by Steve Sheppard. Indianapolis: Liberty Fund, 2003. Part Eight of the Reports, pp. 264-286. Na doutrina brasileira, cf. ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. pp. 834-839. JEVEAUX, Geovany Cardoso. Teorias do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2015. pp. 212-214. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. pp. 911-913.

522 A referência é colhida da nota do Editor Steve Shepard, em COKE, Edward. Dr. Bonham’s Case.

In: ______. The selected writings and speeches of Sir Edward Coke edited by Steve Sheppard. Indianapolis: Liberty Fund, 2003. Part Eight of the Reports, pp. 264-286. p. 264.

523

CAPPELLETTI, Mauro; ADAMS, John Clarke. Judicial review of legislation: european antecedents and adaptations. Harvard Law Review, vol. 79, n. 6, p. 1207-1224, abr. 1966. Disponível em <<http://www.jstor.org/stable/1339202>>. Acesso em: 20 mar. 2018. p. 1211.

524 No original: “Dr Bonham's Case, however, was a sport in British constitutional history. The theories

of Locke, rather than those of Coke, inspired the Glorious Revolution of 1688. Judges were not always to be trusted in seventeenth century England. The Star Chamber was still fresh in men's minds, and the newly revived writ of habeas corpus had become effective through parliamentary, not judicial action. Parliament, rather than the judiciary, was made supreme, and nothing was permitted to limit its power.” (CAPPELLETTI, Mauro; ADAMS, John Clarke. Judicial review of legislation: european antecedents and adaptations. Harvard Law Review, vol. 79, n. 6, p. 1207- 1224, abr. 1966. Disponível em <<http://www.jstor.org/stable/1339202>>. Acesso em: 20 mar. 2018. p. 1211.). No texto, os autores também aludem aos reflexos da Revolução e da supremacia do Parlamento nas colônias britânicas.

525 COKE, Edward. Dr. Bonham’s Case. In: ______. The selected writings and speeches of Sir

Edward Coke edited by Steve Sheppard. Indianapolis: Liberty Fund, 2003. Part Eight of the Reports, pp. 264-286. p. 275. Cf. CAPPELLETTI, Mauro; ADAMS, John Clarke. Judicial review of legislation: european antecedents and adaptations. Harvard Law Review, vol. 79, n. 6, p. 1207- 1224, abr. 1966. Disponível em <<http://www.jstor.org/stable/1339202>>. Acesso em: 20 mar. 2018. p. 1211.

Conquanto não seja o intuito fazer maiores digressões sobre o caso julgado pela

Court of Common Pleas, na Inglaterra, mas tão-só referenciá-lo historicamente como

antecedente do controle de constitucionalidade, Bonham’s Case tornou-se verdadeiro divisor de águas ao superar um caso ainda mais remoto, Caso Jenkins, que veio a ser notabilizado como Jenkins Doctrine.

Roger Jenkins, médico, havia se recusado a se submeter à autoridade do College of

Physicians (Colégio de Médicos), o qual, pela promulgação do Act of Parliament de

1540, no reinado de Henrique VII, embora não possuísse vínculo com qualquer universidade, detinha amplos poderes entre os quais de determinar a prisão daqueles que praticassem medicina ou fizessem mau uso dela, pelo tempo que o próprio Colégio considerasse oportuno.

Determinada sua prisão, Jenkins impetrou Habeas Corpus no Tribunal (Court of

Common Pleas), com escopo de obter sua liberdade. A decisão, tomada pelo Chief Justice Popham, foi favorável ao Colégio de Médicos, tendo se assentado, de um

lado, que este tinha competência para determinar prisão de infratores e, de outro, que não cabia aos tribunais decidir sobre a liberdade, mas apenas apreciar as formalidades da decisão do Colégio. Assim, o Tribunal respaldou a autoridade do Colégio de Médicos, que veio a ser impugnada novamente no Bonham’s Case.526 Thomas Bonham era médico, formado pela Universidade de Cambridge, tendo começado a trabalhar em Londres, em 1606. Submetido a exame pelo Colégio de Médicos, a quem incumbia a concessão de licença para o exercício da medicina em Londres, não foi qualificado. Todavia, Bonham continuou o exercício profissional, tendo sido condenado ao pagamento de multa e determinada a imediata interrupção de seus atendimentos. Tendo resistido às ordens do Colégio, foi preso.527

Alegando falsa prisão (false imprisonment) pelo Colégio de Médicos, Bonham processou os censores médicos e os auxiliares que efetuaram o cárcere. O Presidente da Court of Common Pleas, Edward Coke, proferiu voto, acompanhado pela maioria do Tribunal, em favor de Bonham.

526

ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 835.

527 COKE, Edward. Dr. Bonham’s Case. In: ______. The selected writings and speeches of Sir

Edward Coke edited by Steve Sheppard. Indianapolis: Liberty Fund, 2003. Part Eight of the Reports, pp. 264-286. p. 264.

Bonham defendia que o Act of Parliament de 1540 pretendia prevenir práticas medicinais incorretas, realizadas por impostores, mas não se dirigia àqueles formados pelas Universidades, como ele próprio, estando, portanto, isento das determinações do Colégio.528

Entre outros fundamentos529, Edward Coke distinguiu duas cláusulas do Act of

Parliament de 1540, uma que tratava do exercício da medicina sem licença (uma

espécie de infração administrativa) e outra que dizia respeito ao exercício incorreto (infração penal), sendo que somente esta poderia ser apenada com pena de prisão.530 Além disso, e o que mais interessa a esse estudo, afirmou Coke que o

common law controla os Acts provenientes do parlamento, podendo determinar sua

“nulidade”, o que já podia ser observado em outros precedentes da Corte.531

Segundo esses precedentes, algumas leis são elaboradas contra o direito, contra o

common law532, e não podem ser colocadas em execução.533

528

JEVEAUX, Geovany Cardoso. Teorias do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: GZ Editora,

2015. p. 213. Nota Georges Abboud que Bonham defendia seu ponto de vista com base “no

espírito da lei” (ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 836.)

529

A decisão ganha foros de importância, sobretudo no direito sancionatório, por estabelecer que os procedimentos devem ser escritos, e não apenas orais, que as previsões de prisão devem ser lidas de forma estrita, a fim de evitar, ao máximo, a perda de liberdade, deve haver proporcionalidade entre infrações e penas. (COKE, Edward. Dr. Bonham’s Case. In: ______. The selected writings and speeches of Sir Edward Coke edited by Steve Sheppard. Indianapolis: Liberty Fund, 2003. Part Eight of the Reports, pp. 264-286. pp. 264, 273 ss.) Sobre outros argumentos, cf. JEVEAUX, Geovany Cardoso. Teorias do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2015. p. 213.

530 COKE, Edward. Dr. Bonham’s Case. In: ______. The selected writings and speeches of Sir

Edward Coke edited by Steve Sheppard. Indianapolis: Liberty Fund, 2003. Part Eight of the Reports, pp. 264-286. pp. 274-275.

531 COKE, Edward. Dr. Bonham’s Case. In: ______. The selected writings and speeches of Sir

Edward Coke edited by Steve Sheppard. Indianapolis: Liberty Fund, 2003. Part Eight of the

Reports, pp. 264-286. p. 275-277. Refere-se aos Thomas Tregor’s Case upon the Satute of West

and Artic’s Super Chartas, Strowd’s Case e Carter and Ringstead. Cf. JEVEAUX, Geovany Cardoso. Teorias do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2015. p. 213; SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. pp. 912-913.

532

Chama à atenção a passagem sobre a impossibilidade de ser juiz e parte no mesmo processo, garantia que se pode dizer conquistada na tradição do common law. (COKE, Edward. Dr. Bonham’s Case. In: ______. The selected writings and speeches of Sir Edward Coke edited by Steve Sheppard. Indianapolis: Liberty Fund, 2003. Part Eight of the Reports, pp. 264-286. p. 283.)

A observação não escapa a Georges Abboud, para quem, conforme referência do Bonham’s Case,

“ao Judiciário caberia exercer o controle dos demais atos do poder público que fossem violadores dos direitos fundamentais historicamente assegurados aos cidadãos, ainda que parte desses atos estivesse em consonância com a legislação vigente, mas em confronto com a historicidade (common law).” (ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 839.)

533

No original: "[...] Some Statutes are made against Common Law and right, which those who made them, would not put them in execution [...] and because it shall be against right and reason, the Common Law shall adjudge the said Act of Parliament as to that point void" (COKE, Edward. Dr.

Enxerga-se aí “um germe do controle de constitucionalidade das leis”534

, na medida em que Edward Coke “admite a correção e a limitação da legislação vigente com fundamento em preceitos jurídicos consagrados historicamente pelo common

law”535. Assim, fica o legado do controle das prerrogativas do Parlamento quando em confronto com a Constituição. Em que pese a existência de interpretação controversa de Bonham’s Case, conforme noticia Nicola Matteucci, a adoção da máxima da possibilidade do controle dos atos legislativos, e mesmo do executivo, redundará na construção, mais que doutrinária, do controle de constitucionalidade pelo Órgão Judiciário.536

Mauro Cappelletti apresenta, todavia, o que ele denomina de “paradoxal fenômeno” quanto ao frutos do Caso Bonham para o judicial review of legislation e para o

supremacy of the judiciary. Explica ele que as colônias britânicas possuíam “Cartas”,

as quais podem ser consideradas as primeiras Constituições das Colônias, “seja porque vinculatórias para a legislação colonial, seja porque regulavam as estruturas jurídicas fundamentais das próprias Colônias”. Essas “Constituições” dispunham sobre a possibilidade de as Colônias aprovarem suas próprias leis, desde que fossem “razoáveis” e “não contrárias às leis do Reino da Inglaterra” e, por conseguinte, “não contrárias à vontade suprema do Parlamento inglês”. O fato curioso (“paradoxal fenômeno”) reside em que, muito embora a reafirmação da supremacia da lei inglesa sobre os atos praticados pelas colônias, o Privy Council do

Bonham’s Case. In: ______. The selected writings and speeches of Sir Edward Coke edited by Steve Sheppard. Indianapolis: Liberty Fund, 2003. Part Eight of the Reports, pp. 264-286. pp. 275- 276.)

534

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 912.

535

ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. p. 838.

536 “Il Coke è famoso nella storia del costituzionalismo, perchéq uesta rivendicazione della superiorità

del common law, sia sulla prerogativa del Re che sul potere del Parlamento, non resta una mera enunciazione dottrinale.Infatti egle ha difeso, anche a costo di violenti scontri con il Re, la funzione delle Corti giudiziare, quella di limitare e di controllare le prerogative riconosciute al Re dalla Costituzione; e, insieme, ha anche intuito che spetta sempre alle Corti giudiziarie il compito di rendere nulla e priva de effetto una legge, o, per usare la terminologia inglese, un Atto del Parlamento, qualora sia in contrasto con la Costituzione. [...] L'esatta interpretazione del Bonham's Case à ancora assai controversa; tuttavia quando inglesi o americani riprenderanno questa massima, vi leggeranno il moderno il giudizio o il controllo di constituzionalità della legge.” (MATTEUCCI, Nicola. Breve storia del costituzionalismo. Brescia: Morcelliana, 2010. pp. 58-59.)

Rei decidiu que “as leis coloniais deviam ser aplicadas pelos juízes das Colônias só

se elas não estivessem em contraste com as leis do Reino”.537

Nas palavras de Cappelletti, eis porque, então, “o princípio inglês da incontrolada supremacia do poder legislativo tenha podido contribuir, antes de ser um obstáculo, para a formação, na América [...] do oposto sistema”538

, qual seja de que as leis do Parlamento são sujeitas a um controle de validade por todos os juízes.539

Consigna Geovany Jeveaux como segundo antecedente540 a decisão tomada pela Northampton County Court, de Virgínia, em 1766, ao declarar inconstitucional a Lei dos Selos (Stamp Act), de 1765, o que ficou conhecido como Stamp Act Case.541 A frustrada tentativa de arrecadação com a taxação de produtos importados pela colônia, por meio do Sugar Act, levou a Coroa britânica e o Parlamento inglês a editarem o Stamp Act, que previa uma espécie de tributo interno, incidente sobre papéis de jornais e atos oficiais, o que desagradou aos colonos. No caso em questão, por entender que o Stamp Act não podia se referir à colônia, sob o fundamento do no taxation without representation, expressamente previsto na Declaração de Direitos de 1689, a Corte o considerou inconstitucional.542

537

CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Fabris, 1984. pp. 60-61 passim. São exemplos trazidos por Cappelletti: Wintrop vs Lechmere (1727) e Philips vs Savage (1737).

538

CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Fabris, 1984. p. 62.

539

Tenha-se em conta que o Estado absolutista, com um Rei soberano, foi incorporado por um Parlamento que se punha superior a tudo e a todos, com reflexo direto nas colônias, por exemplo. A afirmação de que a colônia deve ser subordinada à Coroa e de que o Parlamento possui poder e autoridade para emanar leis que vincule as colônias era precisamente a noção trazida do momento anterior, e que, agora, alijava, inclusive, os juízes de repudiar os atos, ainda que confrontados com o common law ou com a Constituição. Nesse sentido, cf. MATTEUCCI, Nicola. Breve storia del costituzionalismo. Brescia: Morcelliana, 2010. pp. 66-67. Cf., ainda, GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. La constitución como norma y el tribunal constitucional. Madrid: Editorial Civitas, 1994. pp. 50-55.

540

Nicola Matteucci anota a influência do Bonham’s Case em uma decisão de 1761, nos Estados

Unidos, em que James Otis questionara o Writs of Assistance que autorizava busca domiciliares para tornar efetivas as medidas alfandegárias baixadas pela Coroa inglesa com anuência do Parlamento. Consignara-se na decisão que uma lei contrária à Constituição e à igualdade natural é nula, cabendo ao judiciário fazê-la cair em desuso; a função do common law é de controlar os atos do Parlamento. Matteucci confirma que a objeção a um poder supremo e arbitrário não é caso isolado nos Estados Unidos; o que, ainda, viria a repercutir, inclusive, no Stamp Act Case. (MATTEUCCI, Nicola. Breve storia del costituzionalismo. Brescia: Morcelliana, 2010. pp. 67-68.)

541

JEVEAUX, Geovany Cardoso. Teorias do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2015. pp. 214-215.

542

Para mais comentários sobre Stamp Act Case, cf. JEVEAUX, Geovany Cardoso. Teorias do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2015. pp. 214-215. A noção histórica do momento, a partir da Revolução Gloriosa e da influência do Stamp Act Case nas colônias inglesas

Nesse contexto, não é de se admirar que, com a independência alcançada pelas Colônias inglesas e substituição das “Cartas” pela Constituição, entendida como Lei Fundamental, passasse a se considerar, como no passado, a nulidade e não aplicabilidade de leis contrárias às novas Constituições.543

Com efeito, importante contributo para o controle de constitucionalidade deu-se com a coletânea de artigos publicada por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, sob a alcunha de Philo-Publius, em jornal de grande circulação em Nova York no século XVIII, posteriormente compendiada na obra “O Federalista” (Federalist

papers – The Federalist).544 Nesta, os autores exortam a necessidade de uma judicatura federal, inamovível, imparcial, imune a desmandos políticos ocasionais e resistente, numa República, às usurpações e tiranias do corpo legislativo.545 É o Judiciário, de todas as frações do Poder, aquela que menos conta com meios para atacar a Constituição546, conclusão à qual chegará Hans Kelsen, posteriormente, ao defender quem deve ser o guardião da Constituição, muito embora alheio às estruturas das funções do Poder.547

Em “O Federalista”, encontra-se que as restrições impostas às autoridades legislativas somente podem ser mantidas por meio de tribunais de justiça, “cujo dever é declarar nulo todos os atos manifestamente contrários aos termos da Constituição”, sem o que tornaria sem sentido qualquer reserva de direitos encartados nesta. Ademais, seria contraintuitivo dimensionar uma legislatura sem contenções, passível de substituir, pela própria vontade, a vontade do povo. Desse modo, incumbe aos juízes “determinar o sentido da Constituição, assim como de todos os outros atos do corpo legislativo”, pelo que os tribunais “devem ser considerados como os baluartes de uma Constituição limitada contra as usurpações

até a independência estadunidense, cf. MATTEUCCI, Nicola. Breve storia del costituzionalismo. Brescia: Morcelliana, 2010. pp. 60-75.

543

CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Fabris, 1984. p. 62.

544

HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Belo Horizonte: Líder, 2003. Sobre os autores, os desacordos entre eles e os impactos no direito estadunidense, cf. BURT, Robert A. Constitución y conflito. Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos Aires, 2000. pp. 78-118. Cf., ainda, JEVEAUX, Geovany Cardoso. Teorias do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2015. pp. 215-217.

545

HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Belo Horizonte: Líder, 2003. pp. 457-458.

546

HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Belo Horizonte: Líder, 2003. p. 458.

547

KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. pp. 240, 245 e 276, principalmente.

do corpo legislativo”, do que não se segue haja uma superioridade do órgão judicante em face do legislativo.548

Ainda, o texto enaltece a extensão da judicatura federal, acreditada pela Convenção de Filadélfia de 1787, para submeter atos dos estados aos artigos da União549, a existência de um tribunal de Suprema Jurisdição e a Constituição como base de interpretação das leis.550

Decorrem da obra referida bases para um controle de constitucionalidade das leis (judicial review of legislation) exercida por todos os juízes, em geral, de forma típica, que se tornará mais evidente num dos casos mais famosos na temática e tantas vezes referido: Marbury vs Madison, datado de 1803.551

Enfeixam-se, aqui, o fenômeno da inconstitucionalidade, trabalhado no capítulo anterior, a exigência de um controle de constitucionalidade decorrente de uma Constituição rígida, que favorece a anotação de uma supremacia da Constituição, bem assim de um órgão cuja função precípua seja constituir as inconstitucionalidades e solvê-las, sob pena de desvirtuamento da norma superior a todas as demais.

John Adams, após ser derrotado por Thomas Jefferson nas eleições presidenciais de 1800, nos Estados Unidos, conseguiu aprovar no Congresso leis de organização do Judiciário federal, a fim de que os federalistas mantivessem sua influência mesmo após a ascensão republicana. Entre as providências criadas na lei, destacava-se a autorização para o Presidente nomear juízes de paz. No último dia de seu governo, John Adams assinou o ato de investidura (comissions) de Willian Marbury, ficando John Marshall encarregado de entregá-lo ao nomeado. Por sua