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2 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA LEI MARIA DA PENHA E A CONFORMAÇÃO DO MINISTÉRIO

ACERCA DE SUA APLICABILIDADE NO CASO DE VIOLÊNCIA CONTRA TRANSGÊNEROS E

2 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA LEI MARIA DA PENHA E A CONFORMAÇÃO DO MINISTÉRIO

PÚBLICO

A Lei nº 11.340/2006 foi instituída após a punição do Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (caso nº

12.051/OEA), devido à negligência em instituir políticas públicas e mecanismos para erradicar ou coarctar a violência doméstica, a exemplo do que se deu com a farmacêutica bioquímica Maria da Penha Fernandes, casada por 23 anos com o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, o qual tentou assassiná-la em oportunidades distintas, por disparo de arma de fogo nas costas enquanto dormia, causando-lhe paraplegia, e depois por eletrocussão durante o banho.

Em vista disso, por manter o caso na impunidade por mais de quinze anos, sobreveio recomendação para agilizar a conclusão do processo contra o contumaz agressor, apurar os atrasos injustificados na investigação e responsabilização criminal, promover medidas administrativas, legislativas e judiciárias correspondentes, além de conceder uma reparação à vítima pela incúria estatal.

Uma das medidas que o governo brasileiro engendrou foi a remodelação do Código Penal, introduzindo o § 9º no artigo 129, intitulado violência doméstica, cominando uma punição de 03 meses a 03 anos de detenção.

A Constituição Federal, em seu artigo 127, consagrou que

“o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.” (BRASIL, 1988).

Na verdade, o Ministério Público na Constituição de 1988 recebeu uma conformação inédita e poderes alargados. Ganhou o desenho de instituição voltada à defesa dos interesses mais elevados da convivência social e política, não apenas perante o Judiciário, mas também na órbita administrativa (MENDES; BRANCO, 2014, p. 1.012).

A Lei nº 7.347/1985, denominada de “Lei da Ação Civil Pública”, estabeleceu que o Ministério Público poderá instaurar inquérito civil e celebrar termo de ajustamento de conduta com os investigados para fins de proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. No seu espectro jurídico, o inquérito civil é compreendido como um procedimento administrativo investigatório, instaurado sob a titularidade e presidência exclusiva do Ministério Público, com o escopo de amealhar elementos probatórios para propositura de ação

civil pública ou embasar a formalização de termo de ajustamento de conduta, contemplando obrigações reparadoras para defesa dos interesses metaindividuais.

Na órbita criminal, o Ministério Público detém o monopólio para deflagrar a ação penal pública quando presentes indícios suficientes de autoria e prova de materialidade delituosa, com o desiderato de punir as condutas lesivas aos bens jurídicos protegidos pelo ordenamento, consoante exegese do artigo 129, inciso I, da Magna Carta; artigo 46 do Código de Processo Penal; e artigo 100 do Código Penal.

Hodiernamente, a desenfreada violência urbana, a inoperância dos sistemas de segurança pública, o reinante sentimento de impunidade, o risco de desemprego, o receio de catástrofes naturais, o preconceito e o egoísmo intolerante nas relações humanas pulverizaram uma onda de medo na sociedade, o que se agrava pela gradativa perda de confiabilidade nas instituições estatais e nos mecanismos de controle social e natural, desencadeando-se em atmosfera de frustração, ressentimento e ceticismo generalizado.

Na ótica de Ulrich Beck, “com o advento da sociedade de risco, os conflitos de distribuição em relação aos “bens” (renda, empregos, seguro social), que constituíram o conflito básico da sociedade industrial clássica e conduziram às soluções tentadas nas instituições relevantes, são encobertos pelos conflitos de distribuições dos “malefícios” (BECK; GIDDENS; LASCH, 1997, p. 17).

À guisa de reflexão, no ano de 2017, o Brasil contabilizou 63.880 mortes violentas, constituindo o recorde de homicídios registrados do país, consoante dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O relatório aponta que foram 175 assassinatos por dia em tal ano, ou seja, sete por hora, figurando um aumento de 2,9% em relação a 2016 (ACAYABA; PAULO, 2018).

O Brasil ainda ocupa o 5º lugar no ranking mundial de feminicídios, com uma taxa de 4,8 homicídios de mulheres num grupo de 100 mil habitantes, conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), apresentado pela Organização das Nações Unidas (ONU, 2016). De acordo com o escólio de Maria Helena

Sleutjes (2001, p. 192), a pós-modernidade na reflexão de Martin Heidegger, filósofo alemão e autor de importantes obras como “Sein Zeit” (Ser e Tempo, 1927), “Holzwege” (Sendas Perdidas, 1950) e

“Unterwegs zur Sprache” (Um Caminho para a Linguagem, 1960), descortinou um fenômeno de quebra de valores, desaparecimento de linhas de orientação guiadas pela razão, destronamento da ciência, desfazimento de mitos e disfarces, pressentindo que o ser humano tem apenas a angustiante ambição de não sucumbir, e arremata:

Heidegger tenta demonstrar a grande inversão de valores do mundo moderno no que se refere ao conceito de sujeito e objeto, pois o homem passa a ser produto de seu próprio produto, estando em vias de se anular. Segundo o filósofo, na busca desenfreada de auto-asseguramento, o homem reduz toda a grandeza, diminui toda a profundidade, e foge da vitalidade criadora. O poder crescente da automação e do progresso implica uma crescente desumanidade. O homem só poderá se refazer dos malefícios da pós-modernidade ou melhor superá-los quando tomar consciência da própria alienação de sua essência, porém procurando sair de sua perdição está construindo uma trilha em qualquer sentido.

(SLEUTJES, 2001, p. 192).

Na mesma trilha, Zygmunt Bauman (2008, p. 74-75) argumenta que, em tempos líquidos modernos, o medo e o mal são irmãos siameses, ou dois atributos de uma só experiência, traduzindo aquele ao que se vê e ouve, enquanto este ao que se sente. Esclarece que se criou um código para catalogar o que é crime e uma lista de mandamentos para definição dos pecados, porém a filosofia ainda não conseguiu decifrar a amplitude da presença do “mal”

na humanidade, pelo simples fato de ser “ininteligível, inefável e inexplicável”. Acrescenta que as relações humanas tendem a ser cada vez menos permeadas por zonas de tranquilidade, certeza e regozijo espiritual. Cônscio das instabilidades da era contemporânea, o renomado sociólogo polonês, falecido em janeiro de 2017, aos 91 anos, adverte que:

Os rastros deixados por essa busca por segurança parecem, contudo, um cemitério de esperanças destruídas e

expectativas frustradas, e o caminho à frente está salpicado de relacionamentos frágeis e superficiais. O chão não está mais firme à medida que caminhamos, parece mais lodoso e inadequado para nos assentarmos sobre ele. Estimula os caminhantes a correr, e os corredores a aumentar a velocidade. As parcerias não se fortalecem, os medos não se dissipam. Tampouco a suspeita de um mal que espera pacientemente a sua chance. (BAUMAN, 2008, p. 94).

A rotineira violência doméstica e familiar infligida à mulher retrata uma das facetas do “mal” e da crise na sociedade contemporânea, que derrui os pilares das declarações de direitos humanos e da Constituição Federal, os quais erigiram a igualdade de direitos e de obrigações entre homens e mulheres, impondo a repressão estatal e de garantir a assistência e a proteção aos integrantes da família, conforme se extrai dos artigos 4º, inciso II;

5º, inciso I; e 226, § 8º, todos da Magna Carta.

Ancorado em tais arcabouços jurídicos e devido às pressões sociais vindicando um sistema de justiça criminal que priorize a prevenção e repressão da violência no recôndito do lar, o legislador ordinário criou a Lei nº 11.340/2006, comumente tratada de Lei Maria da Penha, estatuindo que a violência doméstica e familiar contra a mulher decorre de qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, seja no âmbito da unidade doméstica, da família ou de qualquer relação íntima de afeto, independentemente de orientação sexual (artigo 5º).

Outrossim, dedicou o capítulo III exclusivo ao Ministério Público, determinando-lhe o enfrentamento, tanto em causas cíveis ou criminais, quando se confrontar com casos de violência doméstica e familiar, podendo requisitar força policial e serviços de saúde, educação, assistência social e segurança, além de fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de vulnerabilidade, cadastrando, ainda, os casos em sistema próprio, conforme se infere dos artigos 25 e 26 da Lei nº 11.340/2006.Gize-se, ainda, que os crimes de violência doméstica e familiar contra mulheres não permitem a aplicação das medidas despenalizadoras da composição civil, transação penal e suspensão

condicional do processo, independentemente da cominação abstrata da reprimenda, constantes na Lei nº 9.099/1995.

Em que pese o ajuizamento de diversas denúncias pelo Ministério Público para punição de agressores e feminicidas, inclusive precedidas de representação por prisão preventiva e de medidas protetivas de urgência, e de estímulo ao engajamento de gestores para implantação de políticas públicas prioritárias, máxime redes de atendimento multidisciplinar especializadas nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde em prol da mulher, com espeque nos artigos 20 a 24 e 29 a 32, todos do indigitado diploma legal, o resultado do combate à violência doméstica e familiar ainda é bastante insatisfatório, conforme se extrai do quadro abaixo do Conselho Nacional de Justiça:

Quadro 1 – Monitoramento da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do

Conselho Nacional de Justiça

Fonte: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020.

Depreende-se, portanto, que os esforços interinstitucionais não impediram o recrudescimento dos alarmantes índices de violência contra mulheres, tanto que o relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada (IPEA) intitulado “O Poder Judiciário no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres” (2019, p. 13) consigna que:

No que se refere especificamente ao Poder Judiciário, embora existam investimentos na capacitação dos atores jurídicos e demais profissionais, na estruturação dos equipamentos e na implantação das equipes multiprofissionais, há poucas evidências da efetividade da política judiciária de enfrentamento à violência doméstica e familiar no que tange mais diretamente ao tratamento dispensado às mulheres, seja com relação ao processamento dos feitos, seja no que concerne ao atendimento de suas demandas e necessidades.

Não bastasse isso, o Brasil ainda lidera o topo do ranking dos países com mais homicídios perpetrados contra travestis e transexuais. Com efeito,

O número de assassinatos em 2019 foi menor em relação aos últimos dois anos. Em 2017, foram 179, ante 163 em 2018. Entretanto, Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra e autora do dossiê, pondera que, apesar da queda dos números, não há diminuição efetiva da violência.

Apenas de 1º a 24 de janeiro de 2020, por exemplo, houve um aumento de 180% no número de homicídios em relação ao ano anterior. (REDAÇÃO RBA, 2020).

Sendo assim, impende maior articulação e empenho de todos para suplantar o arraigado sentimento machista de subjugação feminina e de coisificação de seu corpo, inclusive a superar a infundada crença de que a violência contra a mulher prescinde da interferência de agentes externos quando perpetrada em abstruso ambiente doméstico, a pretexto de constituir ingerência na intimidade e privacidade do casal, o que apenas contribui para dominação masculina e que, não raro, culmina na silenciosa morte de muitas vítimas indefesas.

A Lei Maria da Penha priorizou coibir a violência direcionada contra a mulher, aqui compreendida como pessoa do sexo

feminino numa acepção biológica, mesmo se envolta numa relação homoafetiva. De rigor, descarta-se a aplicação em favor de homem, ainda que vitimizado pelo cônjuge ou companheiro numa relação homoafetiva no ambiente doméstico, porquanto o artigo 1º da Lei nº 11.340/2006 deixa entrever mecanismos protetivos apenas à mulher, em razão de presumida vulnerabilidade ou hipossuficiência frente ao agressor.

3 A DIVERGÊNCIA SOBRE A POSSIBILIDADE DE

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