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2 O DIREITO À EDUCAÇÃO DE CRIANÇAS DE ZERO A TRÊS ANOS

2.1 Antecedentes históricos e legais: avanços e desafios

As crianças, por séculos, ficaram exclusivamente sob a responsabilidade familiar. Era na família e no convívio com as pessoas que os filhos aprendiam a cultura e os costumes familiares e da comunidade em que estavam inseridos. Entretanto, devido à alta taxa de mortalidade infantil, em razão de moléstias acometidas – muitas vezes dentro das próprias famílias –, além do grande número de abandono de crianças, tornou-se necessário pensar em outros espaços de cuidado para elas.

Kuhlmann (2011. p. 87) esclarece que “[...] creche não era defendida de forma generalizada, pois trazia a tona conflitos, tais como a defesa da atribuição de responsabilidade primordial a mãe na educação da primeira infância [...]”

A creche para as crianças de zero a três anos foi vista como muito mais do que um aperfeiçoamento da Casa dos Expostos, que recebiam as crianças abandonadas; pelo contrário foi apresentada em oposição ou oposição a estas, para que as mães não abandonassem suas crianças. (KUHLMANN, 2011, p. 78).

Com o início do processo de industrialização no Brasil e a ampliação de oferta no mercado de trabalho para as mulheres, em meio a lutas e reinvindicações de melhores condições de trabalho e da necessidade de instituições que pudessem educar e cuidar das crianças, foram criados espaços educativos. Inicialmente essas instituições tinham um caráter assistencialista e o objetivo principal era garantir o cuidado e a proteção às crianças, na falta das mães e das famílias. Não havia exigência de profissionais especializados para esse serviço principalmente pelo fato das suas atribuições serem substitutivas daquelas que a própria mãe pudesse realizar.

Na medida em que a industrialização do país foi crescendo, a demanda de locais apropriados para atender a primeira infância também foi aumentando, pois cada vez mais mulheres adentravam ao mundo do trabalho. A partir da década de 60 do século passado, houve aumento de ofertas desse serviço de Educação Infantil. Esse período foi marcado por uma educação compensatória, uma vez que procurava sanar, não somente a falta dos cuidados e afetos da mãe, como também a falta de estímulos e experiências culturais.

No início, a preocupação com os supostos efeitos negativos da separação entre mãe e criança pequena levou a um questionamento da creche centrado principalmente nos aspectos afetivos do desenvolvimento infantil. Em um segundo momento, sob efeito das teorias da privação cultural a partir da década de 1960, houve um deslocamento do foco para o desenvolvimento cognitivo da criança, visando ao seu aproveitamento futuro na escola primária. (BRASIL, 2006b. p. 21).

Enquanto as instituições públicas atendiam as crianças de famílias mais pobres, como estratégia básica das políticas assistenciais, as famílias mais ricas eram atraídas pelo termo pedagógico das propostas das escolas privadas buscando, assim, para seus filhos, um desenvolvimento cognitivo e um preparo para o ensino básico. Até os dias de hoje o termo “creche” está relacionado ao atendimento de crianças das famílias pobres da população. Dificilmente uma instituição privada faz uso desse termo para representar o serviço oferecido para crianças de zero a três anos.

O aumento da procura por instituições de educação infantil e a necessidade de escolas públicas para atender as famílias fez com que as creches e pré-escolas fossem regulamentadas possibilitando que a mãe trabalhadora colocasse seu filho em um

ambiente educativo onde poderia receber os estímulos necessários para o seu desenvolvimento, independente da classe social.

Patto (1981, p. 38) contribui com essa discussão ao relatar que, “[...] as creches foram criadas principalmente para resolver a necessidade do sistema de exploração da mão-de-obra feminina [...]”. Assim, as mães poderiam estar tranquilas ao se dedicarem durante o dia aos trabalhos, enquanto seus filhos estariam na creche. Campos (2013, p. 30) esclarece que “em um primeiro momento, a creche era defendida como um direito das mulheres trabalhadoras; logo em seguida, as organizações sociais constituídas com a volta da democracia passam a se preocupar com a qualidade dos serviços, trazendo a criança para o primeiro plano”.

A partir da Constituição Federal de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996 a educação foi assegurada por lei, tendo sido reconhecidos o dever do Estado e o direito da criança de zero a seis anos de ser atendida em creches e pré-escolas, passando, a partir daí, a ser de responsabilidade da Educação Infantil desenvolver um trabalho prioritariamente educacional. Assim, a concepção de Educação vincula-se “[...] aos direitos da criança que é atendida e não aos direitos da mãe que trabalha ou da família necessitada.” (CAMPOS; ROSEMBERG; FERREIRA, 1993, p. 107).

Dessa forma, de acordo com Secretaria Nacional da Mulher Trabalhadora da Central Única dos Trabalhadores (SNMT/CUT, 2011, p. 29), “[...] a luta pela creche pública agrega quatro dimensões complementares: a garantia dos direitos da criança, a autonomia das mulheres, a defesa da educação pública, gratuita e de qualidade para todos os níveis de ensino e a garantia de direitos dos trabalhadores em educação [...]”

Em 1990, foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, (BRASIL, 2010), que dispõe sobre a proteção à criança e ao adolescente garantindo-lhes todos os direitos fundamentais à sobrevivência e desenvolvimento integral. O documento também define a família, a sociedade, o poder público como entes responsáveis a cumprir obrigatoriamente a garantia desses direitos.

A Lei (Lei nº 8.069/90) estabelece em seu Art. 58, que “[...] no processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação

e o acesso às fontes de cultura.” (BRASIL, 2010. p. 42). Destaco a seguir alguns outros trechos significativos para as discussões aqui propostas. O Capítulo IV, Art. 53, chama à responsabilidade as famílias para participar do processo educativo esclarecendo em parágrafo único que “É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais.” E assegura que a criança tenha. “I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – direito de ser respeitado por seus educadores; [...] V – acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência.” e no Art. 54, no item IV, estabelece que seja dever do Estado assegurar “[...] atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade.” (BRASIL, 2010, p. 40-41).

Posteriormente, em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN, Lei nº 9.394/96) reafirmou no Art. 3º, princípios primordiais que já haviam sido regulamentados pela Constituição Federal. Dentre eles, destacam-se:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;

III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância;

VII - valorização do profissional da educação escolar;

VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino;

IX - garantia de padrão de qualidade; (BRASIL, 1996, p.1).

No que se refere à Educação Infantil, a LDBEN/96 trouxe uma grande conquista, definindo-a como primeira etapa da Educação Básica e obrigatória para crianças a partir dos quatro anos, deixando sob a responsabilidade das creches, o atendimento de crianças do zero aos três anos e para as pré-escolas o atendimento das de quatro aos cinco anos. O Art. 11 estabelece que caiba, prioritariamente, ao município:

Oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino. (BRASIL, 1996. p. 5).

O Art. 12 esclarece sobre as necessidades de cada estabelecimento de ensino elaborar e executar a sua proposta pedagógica, considerando a especificidade do contexto

no qual a instituição está inserida, bem como de acordo com as normas e diretrizes do seu sistema educacional. No inciso VI, desse mesmo artigo, é destacada a importância da articulação das famílias e da comunidade com a escola para criar processos de integração entre elas. (BRASIL, 1996. p. 5).

A LDBEN/96 nos artigos13 e 14 determina que as instituições definam normas para uma gestão democrática garantindo como princípios “[...] a participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e a participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.” (BRASIL, 1996, p. 6).

Em 2001, foi aprovado o Plano Nacional de Educação o qual apresentou alguns objetivos a serem percorridos durante os anos de 2001 a 2010 mantendo e fortalecendo os princípios da gestão democrática e participativa e da qualidade do serviço educacional oferecido nas escolas. Em sua primeira meta, dedicada à Educação Infantil, valorizou a importância de um trabalho de qualidade com crianças de zero a seis anos, pois:

[...] descuidar desse período significa desperdiçar um imenso potencial humano. Ao contrário, atendê-la com profissionais especializados capazes de fazer a mediação entre o que a criança já conhece e o que pode conhecer significa investir no desenvolvimento humano de forma inusitada. (BRASIL, 2001, p. 31).

Considerando o direito de todas as crianças e de pais e responsáveis trabalhadores a colocarem seus filhos em escolas de Educação Infantil, o Plano apresentou como objetivo a ampliação de ofertas de vagas para atender maior número de crianças de famílias de baixa renda, sujeitas à exclusão. Entretanto, deixou claro que “[...] é preciso evitar uma educação pobre para crianças pobres e a redução da qualidade à medida que se democratiza o acesso.” (BRASIL, 2001, p. 33).

Abordou a necessidade de superação das dicotomias historicamente presentes na Educação Infantil esclarecendo que educação e cuidados constituem um todo indivisível, da mesma forma que se compreende o desenvolvimento da criança na sua totalidade, de forma integral.

Em 2014, a lei do novo Plano Nacional de Educação (PNE, Lei Nº 13.005, de 24 de junho de 2014) é aprovada e, no que se refere à Educação Infantil, tem como meta 1 “Universalizar, até 2016, o atendimento escolar da população de 4 e 5 anos, e ampliar,

até 2020, a oferta de educação infantil de forma a atender a 50% da população de até 3 anos até o final da vigência deste PNE.” (BRASIL, 2014, p. 9).

Campos (2013) esclarece que algumas medidas favoreceram a inclusão das creches no setor educacional como:

O financiamento público, previsto no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb; os programas de formação continuada; a inclusão da creche nos programas federais de merenda, de distribuição de material pedagógico e de livros infantis. (CAMPOS, 2013, p. 31).

O FUNDEB17 passou a vigorar desde 2007 e se estenderá até o ano de 2020.

Em substituição ao FUNDEF que teve vigência de 1997 a 2006, o FUNDEB descentraliza os recursos federais destinados a Educação, desde a creche ao ensino médio. De acordo com Faria (2009)18 “Um dos argumentos usados pelos gestores públicos para justificar a não ampliação da educação infantil em seus municípios é a falta de recursos.” Essa questão era mais presente anteriormente ao FUNDEB, entretanto a autora esclarece que a luta pela ampliação dos recursos é uma luta geral e constante da Educação, pois os gestores apontam que os recursos não são suficientes para ampliação da oferta de vagas necessárias.

Em Santo André, na rede municipal, observa-se que as creches não atendem a totalidade de inscritos para as turmas de zero a três anos, apesar dos esforços da SE para construção de novas creches. A falta de atendimento em creche gera listas de espera infindáveis e muitas insatisfações por parte das famílias, fato que repercute em aumento de liminares, ou seja, as famílias na busca de seus direitos conseguem a matrícula por meios judiciais. Dessa forma, as famílias sem uma saída mais justa, matriculam seus filhos mesmo não tendo vagas disponíveis, causando superlotação nas turmas, sobrecarga de trabalho para as(os) professoras(es), falta de qualidade do serviço oferecido e falta de segurança para os bebês.

17 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&id=12327:fundeb-

apresentacao&Itemid=669. Acesso em: 21 ago. 2015.

18 FARIA, Ana Lucia Goulart de. Entrevista concedida ao programa “Salto para o futuro, 2009”. Educação de crianças em creches: outros olhares sobre a Educação de crianças em creches. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ob3QcgXYHeU. Acesso em: 19 ago. 2015.

Na Creche Prisma, a ampliação do número de salas de berçários foi uma resposta encontrada pela gestão para atender a demanda de procura de matrícula para bebês de zero a um ano e seis meses. Entretanto, apesar dos três berçários, em 2015, as salas estão acima da capacidade de atendimento e na lista de espera encontram-se 60 crianças aguardando matrícula.

É notória a necessidade de ampliação da oferta de vagas para o atendimento de crianças de zero a três anos em creches, uma vez que o serviço público da educação é um bem comum, e sendo assim, é para todos. Entretanto a preocupação volta-se não só para a garantia do direito de acesso à instituição pública de ensino, mas principalmente para a qualidade do trabalho realizado. Nesse sentido alguns documentos do MEC foram publicados e divulgados para as redes municipais de ensino como apoio à efetivação das legislações trazendo diretrizes e critérios de qualidade para o atendimento na Educação Infantil, dos quais alguns serão analisados a seguir.

2.2 Políticas e concepções de Educação Infantil numa perspectiva nacional e