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Antecedentes justificativos

No documento Da semelhança no desenho (páginas 62-66)

A origem do trabalho que aqui apresentamos nasce da convergência de três linhas condutoras — (i), (ii) e (iii) — que, de alguma forma, explicam e consolidam a escolha e o desenvolvimento do tema apresentado.

(i) A primeira, de carácter mais geral e pessoal, relaciona-se com uma motivação natural e um interesse particular pelo tema da representação nas imagens. Interesse pelos vários sistemas de representação de culturas, épocas, locais ou autores distintos; o modo como o problema da representação se confunde com o da expressão; a forma como as imagens nos seus múltiplos domínios são apresentadas — desde os registos da arte aos da ciência, do erudito ao popular, e os pressupostos técnicos, formais e conceptuais que estão subjacentes a essa construção; imagens, que foram sempre um motivo da nossa atenção e interrogação. Como se essa realidade das imagens povoasse um permanente gabinete de curiosidades imaginário. Nesta arqueologia pelas formas de representação estranhas e imprevistas, nesta colecção de imagens de origens não necessariamente artísticas, neste cruzamento de diferentes sistemas visuais, neste lado ecuménico, enciclopédico e pluralista da figuração, encontramos sempre matéria de fascínio e de investigação, quer na prática artística, quer na actividade docente. E é particularmente notório que, do confronto destas múltiplas formas de representação visual, a questão da semelhança parece colocar-se sempre como um princípio variável e relativo a uma cultura, a um período, a um lugar ou, até mesmo, a um artista determinado.

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(ii) A segunda linha condutora, sendo uma consequência da primeira, relaciona-se com a continuidade e desenvolvimento do nosso trabalho académico, e advém de uma interrogação dominante que para nós permanece em aberto: haverá, afinal, princípios unificadores da representação visual que acomodem a infindável variedade e relatividade pela qual as imagens dão conta das múltiplas

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realidades que podemos considerar? Haverá, afinal, um critério último, inevitável, natural para a representação? Será a semelhança esse critério natural? O problema aqui em questão, que convoca o debate entre o que há de natural e de convencional nas representações, esteve na génese da nossa especialização no domínio da Representação Pictórica, desenvolvida no âmbito da nossa investigação realizada para a dissertação de Mestrado. A investigação foi desenvolvida no campo da Filosofia da Arte e da Teoria da Imagem, tendo como horizonte conceptual o trabalho do filósofo Nelson Goodman.3 O trabalho abordou as relações entre a realidade das imagens, a representação pictórica e o realismo visual.4 O que então pudemos constatar é que, do ponto de vista do funcionamento referencial, as imagens representam, genericamente, devido a uma convenção. Ou seja, nos seus variados domínios, as imagens decorrem sempre de sistemas ou construções humanas que estabelecem por conveniência tácita, por códigos culturais, por normativos ou por dispositivos de exibição num dado quadro de referência, a sua realidade simbólica, a sua linguagem visual, determinando consequentemente a sua estrutura referencial — (nesta imagem, reconheço esta ou aquela figura, que representa isto ou aquilo, porque identifico uma convenção que permite estabelecer referência à coisa representada). A imagem é, antes de mais, um símbolo e, como tal, refere por convenção. A singularidade deste princípio reside no facto de prescindir da visão tradicional herdeira dos modelos baseados na imitação, na qual a representação pictórica é explicada basicamente como consequência natural de uma relação de semelhança

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Apesar de Goodman tratar do problema das imagens a propósito da representação pictórica no âmbito da sua teoria geral dos símbolos, intimamente ligada à sua epistemologia construtivista, pensamos que sistematizou os elementos suficientes para o desenvolvimento daquilo que poderíamos designar como princípios para uma teoria da imagem. Esses princípios podem ser subsumidos a partir da sua obra principal, Languages of Art, mas também em Ways of

Worldmaking e noutros textos mais específicos. Propomos a seguinte selecção: Goodman 1968,

1970, 1978, 1982 e 1988.

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Marcelino 2003 [Representação e Realismo — Um Estudo sobre a Natureza da Imagem na

Obra de Nelson Goodman]. Na investigação que então conduzimos, tivémos a preocupação de

analisar de forma neutra muitos exemplos pictóricos que se aproximam e que se diferenciam: imagens da arte, da ciência e do quotidiano; de representações e de diagramas; figurativas ou abstractas; imagens dos mais distintos media, períodos históricos ou domínios, precisamente para dar conta das várias características relativas e variáveis que o universo das imagens convoca.

7 entre imagem e objecto.

Efectivamente, admitir apenas a semelhança como critério absoluto, ou pelo menos como argumento principal, pode conduzir-nos a muitos embaraços lógicos que inviabilizariam uma explicação coerente e completa do universo das representações visuais. Como Goodman refere, do ponto de vista filosófico a semelhança levanta muitos embaraços, ao ponto de se constatar que não é condição nem necessária nem suficiente para a representação. Por outro lado, conduz-nos ao equívoco recorrente de confundir a representação pictórica e o realismo pictórico na mesma questão, ao estabelecer uma graduação de realismo ou de naturalismo equivalente a uma graduação de semelhança para ordenar imagens abstractas num pólo e imagens hiper-naturalistas no pólo oposto. Por outro lado ainda, o argumento da semelhança está invariavelmente na base de algumas dicotomias que tendem a tornar-se artificiais, como as de figurativo/abstracto, imitação/construção ou natural/artificial, e que acabam por condicionar ou confundir a reflexão em torno das noções de imagem e de representação.

E, no entanto, por muito persuasivos que sejam os argumentos contra a semelhança, a semelhança parece um espectro irremediavelmente presente sempre que nos confrontamos com uma imagem. Isto é verdade tanto para as imagens que representam, como para aquelas que são abstractas ou que não compreendemos. A figuração, — i.e., a fixação de um repertório dinâmico e variável de formas e sinais visuais que nos permitem fazer referência às coisas do mundo ou, digamos, a capacidade de reconhecermos figuras que descrevem, enunciam, informam ou (en)formam a realidade — parece ser uma necessidade quase compulsiva da nossa natureza de percipiente e uma consequência do nosso pensamento visual que não se conforma com os vazios, que procura preencher as lacunas, que tende sempre a encontrar alguma forma de ajustamento e significação na informação visual que nos chega à retina e ao córtex visual, a qual processamos com vista a atribuir-lhe continuamente um qualquer sentido. Não há olhar inocente. Gombrich fala incessantemente da parte do espectador, da sua cultura, de como as expectativas e experiência deste desempenham um papel determinante na interpretação da representação pictórica. Mas quando se fala em espectador significa que se está a relativizar a questão um contexto cultural, aos sistemas

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simbólicos, às “versões-de-mundo", como lhes chama Goodman. E significa, portanto, que os juízos de semelhança são fatalmente variáveis e relativizáveis a esse contexto. Na verdade, todo o discurso em torno das imagens está minado por este espectro da semelhança: este desenho parece isto... faz-me lembrar aquilo... está feito à imagem e semelhança de... é tal e qual... compara... são iguais... é uma imitação... há muitas diferenças... é uma cópia fiel... é um simulacro... tem uma vaga parecença... possui uma aspecto credível... uma aparência... aquela nuvem é uma ovelha... aquela ovelha é um clone... isto não é um cachimbo... é uma ilusão... é um quadro realista... é baseado numa história verídica... qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência... é um retrato vívido e rigoroso... é uma reprodução natural... é uma construção artificial... não se parece com Gertrude Stein... há-de parecer-se.

Sabemos que as relações de semelhança estão intimamente ligadas com os níveis de familiaridade, com as convenções vigentes, com os costumes representacionais de uma cultura, período ou local. Neste sentido, os critérios de iconocidade e as relações de semelhança das representações podem ser entendidas como consequência do hábito de certas práticas representacionais e da padronização de sistemas que acabaram por se implantar generalizadamente. Apesar de sabermos que a terra anda à volta do sol, continuamos a dizer que o sol se põe. Da mesma forma, provavelmente diremos que uma fotografia de Gertrude Stein se parece mais com ela do que a pintura que dela fez Picasso. Não estamos com isto a referir qualquer prevalência do senso comum, mas, tão só, a sublinhar a relatividade dos juízos de semelhança a um “ponto de vista” ou, se quisermos, a uma “versão-de-mundo”. Ou, tal como Goodman refere, “a semelhança, longe de ser uma fonte e critério constante e independente da prática representacional é em certo grau um produto dessa prática”.5 A semelhança é, portanto, medida em função do sistema vigente e os juízos de parecença são irremediavelmente condicionados pelo padrão habitual da nossa “visão do mundo”.

5 Goodman fala do grau de semelhança e de ilusão como eventual critério para o realismo pictórico. Cfr. Goodman 1968, p. 39.

9 Uma questão

Existe, contudo, quanto a nós, uma questão não completamente resolvida, um paradoxo em aberto que advém da seguinte constatação: se de facto a representação assenta em critérios que se fundam apenas em dispositivos convencionais, e não também em razões naturais, porque é que certas convenções acabam por prevalecer sobre outras? Será que certas convenções são, digamos, mais naturais que outras? Porque é que certas práticas representacionais se enraizaram profundamente enquanto modelo vigente de uma certa tipologia da visualidade? Porque é que determinados sistemas vingaram como vigentes? Para dar um exemplo prosaico, porque é que um retrato cubista não serve como imagem para um Bilhete de Identidade? Porque é que o modelo óptico das imagens em perspectiva, cuja matriz se encontra subjacente à tipologia da imagem fotográfica, se tornou no sistema padrão vigente? Porque é que esse modelo óptico, presente no cinema, na televisão, no material impresso e electrónico, acabaram por se impor de forma intrincada e generalizada, à escala planetária, nas nossas práticas de ver e representar a realidade? Nomeadamente, nas práticas que implicam credibilidade, verosimilhança ou aceitabilidade. Porque é que esse modelo, ainda que convencional, mas assente no primado da reflexibilidade, da reprodução mimética da natureza — assente, no fundo, num princípio de semelhança — continua a impor-se enquanto dispositivo referencial nos códigos de representação?

No documento Da semelhança no desenho (páginas 62-66)