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Um desenho é uma imagem

No documento Da semelhança no desenho (páginas 90-92)

Da sombra à figura

1- Um desenho é uma imagem

O que é um desenho? Um desenho é: um retrato de Ingres, uma colagem de Matisse, uma ponta de prata de Pissanelo, um dripping de Pollock, uma aguarela de Turner, um gesto de Picasso, um esquiço de Fragonard ou um borrão de Cozens. Também são desenhos: uma vinheta de Hergé, as flores frescas no iPad de Hockney, as formas geométricas num vaso grego, um cartoon num jornal, as linhas de Nazca no deserto do Perú, um esquema mecânico num códice de Leonardo, um ornamento numa iluminura medieval. São desenhos, ainda: uma ilustração de uma célula ao microscópio, um mapa topográfico, uma amostra com padrões de tecidos num catálogo ou um manual de instruções para montar um móvel. Agora, vamos complicar um pouco as coisas: uma gravura em Foz Côa e uma gravura de Rembrandt; uma tatuagem no braço e um desenho animado dum videojogo; um rabisco de uma criança feito na praia e um sofisticado desenho panorâmico de Stephen Wiltshire;14 um boneco obsceno pintado numa parede ou um desenho do chimpanzé Congo.15 Se tudo isto são desenhos, o que é que, afinal, é um desenho?

Vários desenhos estão aqui em jogo; várias dimensões estão aqui em confronto e nem todas se relacionam directamente ou em exclusivo com o domínio do desenho. Desde logo, o confronto entre o artístico e o não artístico: temos exemplos de desenhos que se manifestam na esfera da produção artística —

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Stephen Wiltshire é um artista com sindroma de savan (um distúrbio do espectro do autismo) conhecido pela sua prodigiosa memória fotográfica. Wiltshire tem a extraordinária capacidade de desenhar de memória extensos panoramas de paisagens citadinas apreendidas em poucos minutos por um voo de reconhecimento prévio. Pondo de lado algumas questões éticas que se poderão levantar (que implicam a faceta da exploração comercial ou um certo lado de exibição circense), este constitui um caso de estudo surpreendente de desenho de representação à vista de memória. Veja-se on-line: < http://www.stephenwiltshire.co.uk/index.aspx > acedido a 27/07/2011.

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Segundo a wikipédia, [veja-se on-line: < http://en.wikipedia.org/wiki/Congo_(chimpanzee) > acedido a 27/07/2011.] Congo (1954–1964) foi um chimpanzé que aprendeu a desenhar e pintar. Aos quatro anos já tinha feito 400 pinturas e desenhos. O seu estilo foi descrito como “impressionismo abstracto lírico”.

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ainda que por vezes, em alguns casos, as fronteiras sejam difíceis de precisar ou se sobreponham a outros domínios não necessariamente do estético — e temos, também, os que estão fora dessa esfera, como os exemplos de desenhos que estão ao serviço de várias disciplinas das ciências, da publicidade ou do entretenimento ou, simplesmente, senso comum quotidiano. Deste confronto podemos tipicamente distinguir características como as de “high and low culture”, ou se quisermos, da cultura erudita e da cultura de massas, mas também entre formas de produção cultural que distinguem a arte do artesanato, ou o estético do funcional (ou, numa versão mais simplista, a arte do design), ou ainda que põem em confronto valores culturais de ordem local ou global, e que implicam necessariamente a consideração de dimensões sociológicas, antropológicas ou históricas.

Num segundo plano de questões, deparamo-nos com o confronto entre aquilo que é do domínio da representação, por contraste com outras formas de referência: entre abstracção e figuração; entre representação figurativa e diagramática; ou ainda entre a intencionalidade ou a indeterminação na figuração. Finalmente, podemos ainda enumerar características que usualmente são convocadas a propósito do desenho: as questões de ordem técnica e de médium que usualmente a definem enquanto disciplina (tipicamente, são “trabalhos sobre papel”, mas não necessariamente); o carácter processual (se é um estudo, um croqui ou um trabalho acabado); ou a sua natureza intrínseca de manualidade, de grafia, que implicam um compromisso entre uma certa gestualidade e a forma de produção de marcas, conferindo-lhe um cunho autográfico ou qualquer coisa ao nível de uma certa “estilografia”.

Comecemos por advertir que, apesar deste já longo preâmbulo, não nos vamos ocupar com o problema concreto da definição do desenho. Simplesmente, consideremos o desenho como algo pertencente ao mesmo grupo de coisas que usualmente classificamos sob a designação genérica de imagem.

Usaremos “imagem” como termo neutro para classificar qualquer artefacto visual com propriedades pictóricas, gráficas ou icónicas produzido ou agenciado pelo homem, nele se incluindo objectos como pinturas, desenhos, gravuras, fotografias, fotogramas, mapas, ecografias, etc., independentemente do seu

35 médium, suporte ou do modo de produção e difusão. Assim, as imagens são coisas físicas concretas, produzidas artificialmente para funcionar enquanto objectos de representação, expressão, comunicação, informação, etc., distinguindo-se de outras categorias normalmente associadas ao termo como “imagem mental”, “imagem perceptiva”, “imagem retiniana”, ou imagem enquanto sinónimo de aparência, ilusão, semelhança ou mesmo ideia.

As imagens podem assumir diversas naturezas ou características: figurativas, abstractas, pictóricas, gráficas, fotográficas, diagramáticas, de produção manual ou mecânica, de uma só instância singular ou de reprodução múltipla, fixas ou em movimento. Restringiremos igualmente o seu uso ao domínio das imagens de natureza bidimensional, evitando agrupá-las com referências a imagens de outros domínios que convoquem a visualidade como a escultura, a arquitectura ou as artes do palco. Por último, convém distinguir um uso mais específico que a teoria óptica (e, por extensão, a geometria com a teoria da perspectiva e das sombras) dá ao termo “imagem”. Assim, sempre que nos referirmos a “projecções ópticas”, ou a “imagens projectadas”, ou a “imagens reais (projectadas)”, estamos a falar de fenómenos visuais (naturais ou produzidos) que podem servir de referência, de modelo, de objecto de representação ou inspiração, mas que se distinguem das imagens no sentido estrito que aqui lhes atribuímos, i.e., pinturas, desenhos, etc. Procuraremos ter sempre o cuidado de explicitar os dois usos distintos do termo.

No documento Da semelhança no desenho (páginas 90-92)