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3 A LEGISLAÇÃO CONCORRENCIAL DA ÁFRICA DO SUL

3.1 ANTES DO COMPETITION ACT: O APARTHEID E SUAS RAÍZES

A despeito de o apartheid ser lembrado como um sistema isolado e de políticas próprias, Legassick o considera como período após as guerras coloniais entre ingleses e os estados sul-africanos sob controle de fazendeiros africâneres177, os

177 “Africâner” se refere ao um dos grupos étnicos da África do Sul, os descendentes dos holandeses que colonizaram a região nos séculos XVII e XVIII com a Companhia Holandesa das Índias Orientais. Possuem como língua primária o Afrikaans, que combina etimológica e sintaticamente a língua holandesa com africanas, portuguesa e inglesa. Os primeiros britânicos ocuparam a Cidade do Cabo durante as Guerras Napoleônicas, sendo referidos atualmente como “brancos anglófonos”. “Coloured” é o nome dado aos cidadãos que se consideram mestiços. Os “negros”, ou “africanos”, a despeito de terem diferenças entre si quanto às origens de seus respectivos grupos indígenas (dentre eles Zulu,

Xhosa, Sotho, etc.) atualmente se consideram como uma única unidade étnica. Finalmente, refere-se

como “indianos” os descendentes de escravos trazidos das regiões da Índia e de Bangladesh pelos colonizadores holandeses.

chamados “boers”, (daí o nome de Guerras Boer) e a Primeira Guerra Mundial178. A

vitória britânica assentou a predominância dos brancos anglófonos nas classes mais altas, em termos econômicos. Africâneres ficaram conhecidos como “poor whites” ou brancos pobres179.

Ademais, pode se dizer que a segregação se tornou manobra para a manutenção de um sistema traçado pelos ingleses, buscando a permanência da mão de obra negra barata nos diversos setores, especialmente a mineração180. O império

britânico estipulou uma política para os “nativos”, criando a SANAC (South African Native Affairs Commission, ou Comissão Sul-Africana de Questões Nativas, em tradução livre) que advogava a “ocupação racialmente exclusiva de áreas separadas, e a política de representação de negros e brancos por meios separados”181.

A partir de 1910, a população branca iniciou uma tomada da administração da então União da África do Sul, até o completo controle, tirando das mãos do império qualquer poder de decisão sobre as questões internas182.

A população não-branca, no entanto, não se submeteu total e desorganizadamente às políticas públicas. Surgiram diversas associações, muitas delas fundadas pelos poucos indivíduos desses grupos que se encontravam na classe média, geralmente educados no exterior: a Organização Política Africana (APO, em inglês), o Congresso Indiano Sul-Africano (SAIC), o Congresso Nacional Nativo Sul- Africano (mais tarde conhecido como Congresso Nacional Africano, ou ANC), que questionavam as medidas do governo e proviam voz às populações oprimidas - em especial a última organização.

Após a participação nas duas Guerras Mundiais, a África do Sul foi ganhando, paulatinamente, autocontrole econômico e político. A ruptura com o Império Britânico foi definitiva com a ascensão ao poder do Partido Nacional em 1948 e sua proclamação da república – assim como do sistema apartheid.

Como documenta Thompson, o apartheid (“separação”, em Afrikaans) foi um período de medidas políticas para assegurar a dominação branca nos espaços

178 LEGASSICK, Martin. British Hegemony And The Origins Of Segregation In South Africa, 1901–14. In: BEINART, William; DUBROW, Saul. Segregation And Apartheid In Twentieth-Century South Africa. Taylor & Francis e-Library, 2003. Pág. 44.

179 THOMPSON, Leonard. A history of South Africa. 3a edição. New Haven: Yale University Press, 2000. Págs. 156.

180 LEGASSICK, Op. cit., pág. 46 181 LEGASSICK, Op. cit., pág. 47

públicos e privados após a eleição do Partido Nacional em 1948, particularmente durante o mandato do primeiro-ministro africâner Hendrick Fresch Verwoerd, considerado o principal maestro das medidas no período. Não só sul-africanos negros foram destituídos de quaisquer cargos políticos que tivessem, como marginalizados na educação e expulsos de suas terras e restringidos a áreas específicas do território nacional – as townships, nas áreas urbanas, e as Homelands, nas áreas rurais - para o controle da população branca sobre a agricultura. O autor descreve:

O governo [...] "Africanerizou" cada instituição estatal, recomendando africâner para alto assim como baixas posições no serviço civil, exército, polícia, e companhias estatais. Associações profissionais médicas e legais, também, submeteram-se cada vez mais ao controle africâner. O governo também auxiliou africâneres em diminuir a diferença econômica entre eles e os brancos anglófonos. Direcionou negócios oficiais a bancos africâneres e adquiriu contratos proprietários expressivos para africâneres. Empresários africâneres investiram em bancos étnicos, casas de investimento, companhias de seguro e editoras. Em 1976, entrepeneurs africâneres haviam obtido um firme ponto de apoio em mineração, na manufatura, no comércio e nas finanças - todos antes reservados aos ingleses. Enquanto em 1946 a média da renda de um africâner era 47 porcento da de um anglófono, em 1976 ela havia crescido para 71 porcento e continuou a crescer dali para frente.183

A população respondeu ao governo com violenta resistência, marcando a história da África do Sul com sangue, suor e lágrimas. À parte das principais vítimas das medidas - os negros - parcelas da população branca, particularmente cristã184,

emergiram como críticas ao apartheid. A série de demonstrações na township de Soweto, a chamada “revolta de Soweto”, em junho de 1976, realizada por estudantes contra as imposições educativas do governo – que resultou na morte, oficialmente, de 176 protestantes -, tornou-se um símbolo da resistência ao apartheid185.

183 THOMPSON, Op. cit., pág. 188 184 THOMPSON, Op. cit., pág. 205.

185 The June 16 Soweto Youth Uprising. South African History Online. Cape Town, 05/2013.

Disponível em < https://www.sahistory.org.za/topic/june-16-soweto-youth-uprising >. Acesso em 17 de maio de 2019.

A princípio o País viveu um breve período de incrível ventura econômica e tinha o apoio da maioria da população africâner186. No entanto, seu sistema não se

sustentou a longo prazo.

O início da crise do regime teve início a partir de 1978, por motivos de naturezas política, social e econômica. A prosperidade econômica começou a esfriar e a economia sofria com o êxodo da mão de obra intelectual branca; a população negra crescia e se tornou deveras maior que a branca; o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos aboliu o discurso racista político naquele país, deixando a África do Sul em descompasso com o resto do mundo em matéria de estrutura social; a nova configuração da sociedade branca (não mais predominantemente rural, como era na época da ascensão do Partido Nacional) e seus desdobramentos dentro do próprio governo levou a cismas dentro de uma camada uma vez uníssona; altos índices inflacionários; e a falta de apoio dos países fronteiriços, agora repúblicas independentes e negras187 são alguns dos motivos da perda de força do apartheid

visionado por Verwoerd.

Em 1983, fundou-se a Frente Democrática Unida (“United Democratic Front” ou UDF, em tradução livre), resultante da associação de milhares de representantes de diversas raças, com o objetivo de coordenar uma oposição interna ao apartheid. Os anos 80 foram ocupados por manifestações, greves, protestos e confrontos. Muitos dos que participavam da UDF apoiavam o então banido ANC e seu líder cativo Nelson Mandela como presidente prospectivo188.

O governo declarou estado de emergência em julho de 1985 a fim de retomar o controle interno diante da crescente insurreição. O alvo principal foram as townships africanas, isto é, os locais de segregação urbana da população negra, em que se deu um ínterim de violência nunca vista, com prisões, torturas e assassinatos pelas Forças Armadas sul-africanas.

Em 1989, com derrotas dentro e fora do País – o governo havia tentado dominar territórios de nações vizinhas – o governo do apartheid estava quebrado. A interdependência da população branca e negra era evidente e era hora de iniciar negociações com o ANC. Reuniões deste com Africâneres estavam sendo realizadas,

186 THOMPSON, A history of South Africa, pág. 188-189. 187 THOMPSON, Op. cit., pág. 221-223.

secretamente, desde a metade da década de 80189, e em 1990 o governo encerrou o

estado de emergência e aboliu as leis remanescentes do apartheid e Nelson Mandela declarou que a resistência negra se desarmaria190. Formou-se a Convenção para uma

África do Sul Democrática (Convention for a Democratic South Africa, CODESA, em tradução livre), que iniciou a redação de uma nova Constituição em 1991, mas por dissidências entre o establishment e a ANC, foi encerrada no ano seguinte191. Com o

recomeço das negociações, uma Constituição provisória foi estabelecida até a conclusão da nova, em 1996192.

Foram acordadas eleições democráticas em 1994, que tomaram quatro dias. O Partido Nacional se tornou um partido multirracial e seu atual líder, Frederik Willem de Klerk, tentou angariar votos brancos e de coloureds, porém, graças à articulação rápida e organizada, Nelson Mandela, representando o ANC, foi eleito presidente da África do Sul com 62,65% dos votos193.

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