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3.2 O que o poema vê

3.2.1 Uma flor antiga

Como vimos anteriormente no primeiro capítulo, flor não é termo novo nessa poesia. Uma primeira e mais precisa definição a iguala ao sonho – “flor, / sonho fora do sono / e fora da noite” (MELO NETO, 2008, p. 49) – que, na visão do poeta, equivaleria ao poema:

[...] como a obra de arte, o sonho é uma coisa sobre a qual se pode exercer uma crítica. O sonho é como uma obra nossa. Uma obra nascida do sono, feita para nosso uso. O sonho é uma coisa que pode ser evocada, que se evoca. Cuja exploração fazemos através da memória. Um poema que nos comoverá todas as vezes que sobre nós mesmos exercermos um esforço de reconstituição. (MELO NETO, 2008, p. 666)286

Assim se estabelece a relação entre flor e poesia, à qual o poeta recorrerá várias vezes para se referir ao próprio ofício, como em Os três mal-amados, quando escreve que “a lucidez, [...] ela só, nos pode dar um modo novo e completo de ver uma flor, de ler um verso” (Ibidem, p. 40). Esse modo novo e lúcido de conceber (perceber, compreender e desenvolver) a poesia, até então ligada a uma dimensão onírica e imprevisível – basta lembrarmos que, na “Fábula de Anfion”, é o acaso que faz soar “o osso antigo / logo florescido / da flauta extinta” (Ibidem, p. 66, grifo nosso) – se dará efetivamente a partir da mineralização do poema, a substituição do vago e impreciso, ligado ao par flor/sonho, pela exatidão e a estabilidade sugeridas pela figura da pedra e sua condição mineral287, o que na prática significa a restrição da poesia à dimensão da linguagem, e o afastamento daquela de tudo o que é aparentemente alheio a esta:

285

Baseamos nossas definições nos conceitos definidos por Julio Pinto a partir da semiótica de Charles S. Peirce. (Cf. PINTO, 1995, p. 19-20, 24-27)

286

Há aqui uma importante afinidade entre a compreensão que Cabral tem do sonho e seus atributos plásticos e apolíneos tal como definidos por Nietzsche (2005; 2007). (Cf. Capítulo 1, p. 38).

287

Esse processo é definido na “Pequena Ode Mineral” (MELO NETO, 2008, p. 59): “Procura a ordem / que vês na pedra: / nada se gasta / mas permanece.”

É mineral o papel onde escrever o verso; o verso

que é possível não fazer. São minerais

as flores e as plantas, as frutas, os bichos

quando em estado de palavra. [...]

É mineral, por fim, qualquer livro:

que é mineral a palavra escrita, a fria natureza da palavra escrita.288

Estamos aqui diante daquelas palavras separadas de suas origens psíquicas – a interioridade do poeta – e transformadas em entidades funcionais e exteriores, úteis à construção do poema289. E é a condição mineral da página em branco em que o poema se inscreve, a lucidez de uma atenção que a ilumina e esteriliza como o sol de Anfion, que as contrapõe, diurnas, à vaga fluidez do sonho e da noite, “poço onde vai tombar a aérea flor” (Ibidem, p. 71), oposta à outra, terrestre, que brota “de um chão mineral” (Ibidem, p. 53):

Neste papel logo fenecem as roxas, mornas flores morais; todas as fluidas flores da pressa; todas as úmidas flores do sonho. (Espera, por isso, que a jovem manhã te venha revelar as flores da véspera.)290

Essa jovem e reveladora manhã – solar como se num deserto – é que permitirá, à poesia de Cabral, libertar a palavra flor da carga semântica acumulada por seu uso pela tradição poética291; mas, principalmente, desvinculá-la de um tipo de poesia

288

“Psicologia da Composição” (MELO NETO, 2008, p. 72).

289

Cf. PEIXOTO, 1983, p. 41.

290

“Psicologia da Composição” (MELO NETO, 2008, p. 70).

291

ligada à expressão de sentimentos pessoais e a valores oníricos, inconscientes e noturnos, passando a ser, depois de sua negação pela palavra fezes, reabilitada simplesmente como “a palavra flor, verso inscrito no verso” de “Antiode” (MELO NETO, 2008, p. 77). Estaríamos assim diante do progressivo abandono de um uso “meramente figurativo” da flor, que faz com que ela deixe de ser uma “ilustração retórica” para existir apenas como a fria e mineral palavra escrita292:

Deste modo, indagando por uma poética da denotação, quando os elementos são destruídos em sua opacidade e recebem o impacto de uma constante dessacralização, João Cabral apontava, desde então, para aquilo que, mais tarde, virá a ser uma espécie de projeto permanente em sua poesia: a liquidação das relações metafóricas pela inclusão, no verso, de uma desmontagem reflexiva de suas próprias tessituras “poéticas”. (BARBOSA, 1974, p. 140)

Essa “desmontagem reflexiva” da metáfora levará mais tarde ao que o próprio crítico classifica como ultranominalismo, quando as palavras serão definidas em função de sua articulação interna no próprio texto, não importando mais, para a significação, as “associações imagéticas”, mas apenas o “compromisso anterior entre o escritor e o acervo instrumental com que pode contar” (BARBOSA, 1974, p. 147-148). Esse estágio da poesia de Cabral só será plenamente atingido em A Educação pela Pedra (1966); entretanto, como vimos no primeiro capítulo, João A. Barbosa já traça seu percurso desde a despoetização empreendida em “Alguns Toureiros” contra os perigos da livre expressão subjetiva e da “afetividade regionalista”, delimitando o poema no espaço da linguagem, situada à parte do sujeito e do mundo.

Isso aproximaria nossa leitura de “Alguns Toureiros” de um paradoxo, se não concordássemos com o fato de que o poema configura antes uma dialética do que uma contradição293. Afinal, se por um lado podemos remeter o cultivo da flor ao universo tauromáquico, a partir das ideias de adorno, invenção e engenho vinculadas aos termos floreo e florearse294, e que ressaltam a dimensão artística do enfrentamento homem/touro (abertura do poema ao mundo, portanto); por outro podemos restringi-lo ao universo semântico da própria poesia cabralina (adesão mais efetiva à linguagem), constituindo assim uma referência à poética superada

292 Cf. BARBOSA, 1974, p. 140. 293 Cf. LIMA,1995, p. 229; MERQUIOR, 1997, p. 90-95, 127. 294 Cf. Capítulo 1, p. 23.

pelo rigor da “figura de lenha” de Manolete295, que por sua vez, além da figuração do matador que impressionou Cabral quando de sua chegada à Espanha, também seria, seguindo o movimento dessa dialética, uma autorreferência à poética

mineralizada a que o poeta almeja, algo como um Anfion bem-sucedido ou, no

extremo, o próprio deserto, ao qual o toureiro é efetivamente equiparado. E é nesse movimento dialético de abertura e recolhimento, como define José Guilherme Merquior (1997, p. 90-91), que por fim o poema se constitui, quando considerados todos os elementos colocados em ação.