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João Alexandre Barbosa (1975, p. 132) reforça esse entendimento ao reconhecer em “Alguns Toureiros”, até então, o “ponto máximo” de um aprendizado com e sobre a linguagem. Para o crítico, a poesia de Cabral desenvolve-se no sentido dessa lição: “para fazer ver a paisagem e a figura, a linguagem do poema tem de fazer-se

intensificadora, e não apenas nomeante, da experiência” (Ibidem, p. 132 – grifo

nosso). Ou, nas palavras de Angélica Soares (1978, p. 63), fazer “com que sua poesia se torne tanto mais original, quanto mais fizer compreender o conteúdo através da forma e a forma através do conteúdo, mantendo-os em vinculação recíproca”. Para tanto, o poeta precisa “traduzir” em linguagem o objeto que vê:

[...] o que o poeta aprende é tanto o virtuosismo de Manolete quanto o trabalho sobre a linguagem deflagrado para a sua comunicação. Na medida em que a tourada é um signo passível de decifração pelo poeta, deixa de ser uma experiência à parte de sua linguagem.

Ela é também uma “leitura” da realidade, cujos repertório e sintaxe compete ao poeta traduzir em termos de poema. “Lendo” a tourada, João Cabral aprende, pela linguagem do poema, a sua linguagem de precisão e anti- ilusionismo. (BARBOSA, 1975, p. 133)

Essa “ênfase no significante, nos mecanismos de articulação” do poema (PEIXOTO, 1983, p. 81), que coloca em evidência as relações entre a linguagem e o objeto, chama a atenção para o seu “objetivo”, indicada nos versos finais de “Diálogo”:

Até o dia em que essa lâmina, essa agudeza desperta, ache, no avesso do nada, o uso que as facas completa.73

Esse “uso” ou “função” João Alexandre Barbosa (Ibidem, p. 144-145) entende ser a “comunicação”, a “função representativa da palavra”, cujo sucesso depende da capacidade do poeta para calcular com precisão a maneira de dizer o que quer

dizer74. Para tanto, ele busca estabelecer “uma relação de semelhança entre a linguagem poética e os temas da poesia” (PEIXOTO, 1983, p. 113), ou, em suas

73

“Diálogo” (MELO NETO, 2008, p. 140).

74

Aqui parafraseamos o próprio Cabral, que em entrevista a Rubem Braga, em 1975, comentou: “[...] o escritor (e não só o escritor, qualquer artista) cria coisas que são o resultado de uma luta: de tensão entre o que quer dizer e a maneira de dizer”. (Cf. SENNA, 1980, p. 186)

próprias palavras, “Fazer com que a palavra leve / pese como a coisa que diga”75. Assim, se tomarmos “Alguns Toureiros” como exemplo, poderíamos dizer que as palavras ou imagens que constituem o poema denotam a mesma serenidade precisa e contida de Manolete; ou melhor, que o poeta as controla com a mesma calculada precisão, não permitindo a “explosão” conotativa de significados.

Para que ocorra essa “vinculação entre significante e significado” é preciso que “a significação do texto não esteja somente localizada no âmbito específico da Semântica mas que se transporte para o próprio tecido das relações na ordem Sintática” (BARBOSA, 1974, p. 138). Assim se constitui uma “poética da denotação”, reconhecida por João Alexandre Barbosa (Ibidem, p. 140) a partir de “Antiode”, quando a palavra “flor” perde seu “caráter meramente figurativo” para “existir [somente] enquanto palavra”:

Flor é a palavra flor, verso inscrito no verso, como as manhãs no tempo.76

Para o crítico, essa “dessacralização” da palavra, destituída da “dignidade de poética”77 estabelecida pela tradição e reduzida a mero signo linguístico impresso entre outros – palavra cujo significado não reside fora de si, mas na relação “sintática” que ela estabelece com as outras que constituem o mesmo verso, a mesma estrofe, o mesmo poema –, “mais tarde, virá a ser uma espécie de projeto permanente” na poesia de Cabral:

a liquidação das relações metafóricas pela inclusão, no verso, de uma desmontagem reflexiva de suas próprias tessituras “poéticas”. Projeto que já se encontra, como homenagem-louvor, por exemplo, no poema “Alguns Toureiros”, de Paisagens com Figuras [...] (BARBOSA, 1974, p. 140)

A “dessacralização” passa a “despoetização” no gesto de trabalhar a flor sem

perfumá-la e o poema sem poetizá-lo. João Alexandre Barbosa vê nessa estratégia

um “instrumento final de travo anti-retórico para um poema que beira a grandiloquência por seu próprio dispositivo temático” (Ibidem, p. 140-141). Quer

75

“Catecismo de Berceo” (MELO NETO, 2008, p. 359).

76

“Antiode” (MELO NETO, 2008, p. 77).

77

dizer, a construção do poema, que visa torná-lo preciso, eficaz sob uma perspectiva comunicativa, se dá pela contenção das propriedades simbólicas das palavras, a “liquidação das relações metafóricas”, o “despojamento” de seus “excessos” e “adornos”. Assim, a significação do texto, sua abertura ao mundo e a outros textos, estaria limitada pelo seu significado, sua articulação interna e específica78. Essa estratégia de contenção levaria o leitor, em último caso, a se ater à imagem oferecida pelo poema, excluindo do seu “campo de visão” outras aparências dessa mesma imagem, vinculadas por outros textos ou por suas próprias experiências. Então, o Manolete de “Alguns Toureiros” não seria o matador “poetizado”, aclamado pelos aficionados79 e cantado por artistas e poetas80; mas o Manolete “inscrito nos versos” e por eles limitado; tal qual o “semeador” também “despoetizado” em “A Cana dos Outros”, de Serial (1961):

Esse que andando planta os rebolos de cana nada é do Semeador que se sonetizou.81

Segundo João Alexandre Barbosa (1974, p. 141), o trecho citado exemplificaria “o modo pelo qual o poeta atinge ultrapassar os perigos de uma poética de afetividade regionalista que o perseguia ainda no texto Morte e Vida Severina”, publicado juntamente com Paisagens com Figuras e Uma Faca só Lâmina, em 1956. Não seria demais, então, pensarmos na “despoetização” também como uma estratégia de distanciamento do poeta em relação aos elementos da realidade com os quais escolhe trabalhar; um meio de evitar que “motivações pessoais” desviem o poeta do “trabalho em si mesmo”, da atenção aos “problemas formais”, deixando transparecer “sentimentos pessoais” sem lapidá-los em “modos gerais de sensibilidade afetiva”82,

78

João A. Barbosa, a partir de E. D. Hirsch, esclarece: “significado do poema, alvo da leitura, é, tautologicamente, o poema enquanto articulador dos espaços real e poético; significação do poema é o segmento da realidade que ele incorpora, aclara e intensifica através da nomeação linguística. Novamente, contudo, é preciso retornar e dizer: mas a incorporação e a intensificação se dão na medida mesma em que a articulação se realiza” (BARBOSA, 1974, p. 11-12).

79

Os entusiastas das corridas que assistem regularmente a elas. (Cf. MOZO, 1985, p. 240)

80

No segundo capítulo, indicamos algumas homenagens ao toureiro feitas por escritores e artistas plásticos.

81

“A Cana dos Outros” (MELO NETO, 2008, p. 267).

82

O seguinte comentário de João Alexandre Barbosa sobre Paisagens com Figuras – e totalmente aplicável a “Alguns Toureiros” – é esclarecedor: “O próprio teor didático que dirige a sua descrição não permite a transformação do objeto apreendido em correlato de projeções sentimentais [...]” (BARBOSA, 1975, p. 131).

o que recoloca mais uma vez em cena o “risco do fazer artístico”, representado na disciplina severa deste rigoroso ofício.