• Nenhum resultado encontrado

2 A PROTAGONISTA E O ENREDO

2.3 Antonio Dimas

Antonio Dimas vai pontuar dois momentos importantes da narrativa em Madame Pommery: o primeiro com relação ao enredo e o segundo com relação à protagonista. Num primeiro momento, Antonio Dimas afirma:

O que é Madame Pommery? Qual o destino que teve? Qual é a sua história? É a história de uma dona de bordel. A história de uma mulher de origens escusas, que não se sabe propriamente de onde veio.130 O pai era um judeu polaco, como diz o narrador. Um judeu polaco que se casou e se juntou com uma monja espanhola. Desse casamento nasceu Madame Pommery. Seu pai era domador de feras no circo e a mãe era monja aposentada ou retirada.131 Logo em seguida ao nascimento de Madame Pommery, a mãe se engraça com outro aventureiro, desaparece e larga a menina com o pai que não sabe, evidentemente, o que fazer com aquele trombolho. Depois de algum tempo, a menina muito bonita, o pai resolve vendê-la, segundo uma das regras do grupo a que pertencia e também porque encontrara respaldo na Bíblia. Não fora lá que ele tinha lido “Se desonrar alguém alguma virgem, lhe dará um dote e casará com ela. Se o pai da virgem quiser o casamento, pagará ao Pai tanto dinheiro quanto às virgens se costuma dar a título de dote”. (Ex. XXII,

128 Id. Ibid., 1956a, p. 114 -116, grifo nosso. 129

É interessante vermos como pensa um cronista da época: “As donas de pensões chiques, cabarés e outros antros onde a evanidade se berganha santamente por cédulas da Caixa de Conversão, desde o número mais insignificante ao mais alto, têm pelos “coronéis” uma extremada devoção. E eles, ótimos e ingênuos criaturaços, pagam tudo magnificamente, desde a natureza morta de certas fúfias madraças até o champagne feito numa travessa qualquer do Brás e vendido criminosamente sob a cumplicidade de um rótulo estrangeiro”. FLOREAL. op. cit., p. 39. Convém explicarmos, conforme as notas de Nelson Schapochnik que o termo evanidade é a junção de Eva mais vanidade e que a Caixa de Conversão era o plano da política do café com leite, ou seja, São Paulo e Minas Gerais uniram-se para a valorização do café, comprando, através de empréstimos a bancos americanos e ingleses, parte da produção, evitando com tal medida a diminuição do preço do produto no mercado interno e externo, mas aumentando os impostos.

130 Não acreditamos que Mme. Pommery não soubesse onde nasceu. Quem não sabe é o narrador Hilário Tácito

(entre Córdoba e Cracóvia). Mme. Pommery sabia tudo e muito bem!

131

Não é aposentada. Consuelo Sánchez bateu retirada do convento, juntamente com o lambe-feras, Ivã Pomerikowsky.

16,17)? Então, por que não ganhar dinheiro de forma honesta e ainda com o apoio da Bíblia?132

As duas perguntas efetuadas por Antonio Dimas esclarecem que o crítico tem a dimensão exata do enredo, afinal o discurso bíblico será permanentemente ironizado por Hilário Tácito. Mas o que mais chama a atenção é o sistema patriarcal, visto de maneira a ser desafiado. O primeiro momento da protagonista apontado por Antonio Dimas é na Europa e o primeiro desafio é não ser engolida e vendida como mercadoria pelo próprio pai. Podemos, ainda, reparar que Antonio Dimas parafraseia o romance, mas de maneira concisa, nos pontos fulcrais e mais que importantes. E continua:

A menina descobre o plano com certa antecedência e se pergunta: se é meu o que vai ser dado ou vendido, por que o dinheiro não fica pra mim? Então, ela se entrega, pega o dinheiro, some e larga o pai falando sozinho. Muito jovem, Ida Pomerikowsky percorre a Europa e vai dar os costados no porto de Marselha. Lá, ela se engraça comercialmente com um tripulante de navio e, vendendo-se, chega até o porto de Santos.133

Questão fundamental abordada por Antonio Dimas. Tudo pode ser vendido, até a própria filha? E com o apoio da Bíblia? Ora, estamos num sistema capitalista, mas a protagonista não é ingênua, em nenhum momento da narrativa, exceção feita quando é enganada por um coronel. Interessante contraponto. Não é enganada pelo pai, mas é enganada por um coronel: “- Também não me esquecerei de dizer que São Paulo é a cidade que possui a mais bela coleção de coronéis do mundo”.134 Não é à toa que Antonio Dimas vai captar com muita perspicácia o segundo momento importante da narrativa. Vejamos:

É o segundo momento da narrativa.

Santos é mero trampolim para se chegar a São Paulo. Em São Paulo fazia -se a América e Ida sabia disso. Cumpria -se a primeira etapa do objetivo. Depois de algum tempo em Santos, Ida instala -se em São Paulo com a ajuda de alguns homens135 e monta um bordel luxuosíssimo – o Paradis Retrouvé – com meia dúzia de meninas. Ao bordel, Ida confere uma feição escolar, onde as meninas são, ao mesmo tempo, alunas e professoras de amor. E são essas meninas, evidentemente, que vão ajudar Madame Pommery a se implantar na cidade.136

132

DIMAS, op. cit., 1983, p. 127

133 Id. Ibid., p. 127.

134 FLOREAL, op. cit., p. 41.

135 Mme. Pommery monta o bordel com a ajuda do coronel Pinto Gouveia. É este coronel quem promete a ela

DEZ contos de réis e lhe paga apenas SEIS por uma noitada. Mas é o bastante para ela montar o prostíbulo.

136

Podemos ver que a primeira preocupação do crítico no presente texto é exatamente com a protagonista e como esta consegue instalar-se em São Paulo. Embora fale inicialmente da importância de Monteiro Lobato, o que nos parece indiscutível, e aborde algumas questões sobre o romance, especialmente o silêncio da crítica, Antonio Dimas faz outra pergunta interessante:

Agora, qual a importância do romance?

De certa forma, num primeiro nível, é um romance que apanha um momento de transição bastante importante para a cidade de São Paulo.

São Paulo, como vocês sabem, é praticamente uma criação do século 20, ainda que tenha sido fundada em 1554. São Paulo só existe como cidade comercial, política e economicamente importante a partir de 1910, 1920, graças às imensas correntes imigratórias que lá se implantaram. Até então, era uma cidade caipira, pacata, provinciana.137 A cidade estava, portanto, vivendo uma fase de transição. E o que significa essa transição? Significa a montagem de novas estruturas sociais e econômicas. E isso fica muito claro no livro. É o momento em que o capital originado do café, do interior do Estado, das terras roxas distantes, deslocam-se para a cidade, dando início ao processo de industrialização. Ora, com o afluxo de dinheiro na cidade, novas exigências se criam, nova classe social começa a aparecer: a dos novos ricos, a dos endinheirados, cujas necessidades materiais haverão de ser outras, fatalmente. E essas necessidades incluem, é óbvio, divertimento. Diante dessa nova escola de exigências, por que não a instalação de um bordel luxuoso que permitisse aos coronéis, jejunos de sexo durante longas temporadas nas fazendas, viessem gastar suas fortunas nos braços de mulheres importadas?138

O crítico sempre opera fazendo questionamentos importantes e somente a partir daí vai se preocupar com o narrador. Isso demonstra muito bem a escala, a hierarquia de valores. Primeiro o enredo e a protagonista, depois as transformações da cidade e, por último, o narrador. É isto que o coloca em sintonia mais fina com o foco de nossa análise: a protagonista. A itinerância da mesma também é apresentada por Antonio Dimas, e esta itinerância tentamos relacionar a uma questão da picaresca clássica espanhola:

Ida viaja de porto a outro [sic] e atravessa o mar desconhecido em direção a uma terra inteiramente estranha. E a mutação se confirma no momento em que ela põe na cabeça – e o narrador aponta isso muito bem – que a sua função no Brasil era semelhante à de Pedro Alvares Cabral, isto é, a de descobrir novas terras e trazer novos padrões de comportamento. A missão de Madame Pommery é uma missão essencialmente apostólica e evangelizadora. E evangelização significa necessariamente peregrinação e andança. Curioso que essa andança se faça em nome de uma estabilidade futura.139

137 Daí o termo Botucúndia ou Botucuara utilizado por Hilário Tácito (natural da). 138

DIMAS, op. cit., 1983, p. 127-128.

139

A partir daí, o crítico aborda outras questões importantes da narrativa: os três pilares de nossa formação (um coronel, um doutor e um bacharel) e o Justiniano Sacramento. A visão da protagonista, alertando o leitor e o crítico para não terem uma visão judicativa, é muito interessante por colocar a mulher dentro de um universo patriarcal e machista, como modelo de sucesso empresarial:

Como se pode perceber neste esboço de análise, Ida Pommery jamais poderá ser tida como leviana. Se prostituição, até então, era tido como leviandade, neste romance rompe-se a tradição. Ida é calculista e profissional. Aliás, isso ela já o demonstrara quando de seu desvirginamento. Ela é uma mulher extremamente diferente, na medida em que é uma prostituta que desrespeita a tradição profissional. Não se trata de mulher perdida que deve ser redimida a todo custo como queriam os românticos, tipo Lucíola. Nem aquela mulher que refocilava na lama, mulher abjeta que merecia, graças à tolerância, condescendência e magnanimidade de um coração masculino imenso, ser tirada daquela situação. Muito menos aquela mulher fim de século que arrastava os homens à perdição e à luxúria.

O que incomoda neste romance é o fato de Ida Pommery mostrar-se um ser humano sujeito a todas as incoerências do ser humano. Ela é mulher de capacidade organizatória e empresarial afiada. Tão afiada que derruba um capitalista com o seu primeiro namorado. Desse modo, ela se converte em ameaça não apenas à família constituída, enquanto prostituta, mas também ao orgulho machista que se arroga o direito exclusivo de gerir empresas. Num meio extremamente masculinizado, Madame Pommery é uma cabeça empresarial.140

Walter Benjamin aponta para a inclusão, como veremos, da mulher no século XIX na Europa dentro do processo produtivo, no interior das fábricas. A protagonista sai dos bordéis europeus e cabarés e entra no Brasil disposta a modernizar as relações sociais, os costumes, o casamento e, principalmente, o sistema capitalista. A industrialização de São Paulo, assim como a modernidade em Paris apontada por Walter Benjamin, passa pelo prostíbulo Au Paradis Retrouvé. A boêmia necessita desse lazer para melhorar o sistema de produção, da mais-valia:

A errância de Madame Pommery em busca de uma fixação no solo alia -se à necessidade exagerada de se colocar uma norma na boêmia que, por natureza e por vocação, é uma atividade desregrada, na medida em que a boêmia não pode conhecer regras de comportamento. Madame Pommery profissionaliza o vício, inaugura normas de comportamento, instala padrões de freqüência ao bordel, instaura preços, tabelas rigorosas e adota uma forma empresarial de exploração do sexo. São esses elementos mesclados e aninhados dentro de uma mulher que, de certa forma, incomodam. Numa cidade que se

140

industrializa e moderniza sua produção nada mais natural que se ponham as moças na linha... de produção.141

Da mesma maneira como escreve o excurso acima, Antonio Dimas o retomará algum tempo depois, com a mesma pertinência comum quando trata da protagonista:

Olímpica e indiferente ao estigma culposo que ronda sua profissão, Ida assimila, incorpora e emprega métodos operacionais em seu reduto, métodos que visam otimizar sua rentabilidade, invadindo, portanto, o mundo masculino na medida em que dele empresta e copia estratégias de gerenciamento e de marketing. E, ao fundir essa frieza comercial com uma calorosa capacidade de sedução, a proprietária do “Paradis retrouvé” confunde seus freqüentadores, até então habituados a encarar o bordel apenas como espaço necessário de lazer e de suspensão do corre-corre cotidiano e nunca como instrumento de lucro...alheio. Ida é ameaça dupla: à segurança da mulher burguesa, resguardada pelo matrimônio ou que por ele palpita, e ao orgulho machista que se arroga o direito exclusivo de gerir empresas. Capitã de indústria ela também, Ida Pomerikowsky recusa a milenar penumbra da sua marginalidade e bate o pé pelo direito de emparelhar sua ousadia empresarial à dos industriais sôfregos ou à dos fazendeiros de “range-rede”.

Mais que um simples puteiro, local onde deságua a suposta superioridade masculina, a casa de Madame Pommery inverte as expectativas, fazendo de indivíduos fátuos e arrogantes meras cornucópias de fácil alcance, inteiramente submissos à libido. O que até então sempre fora considerado apenas da perspectiva masculina como espaço preferencial do prazer sofre agora rotação. De arapuca para mulheres, o prostíbulo passa a alçapão de homens, que nele caem para deleite, engrandecimento e enriquecimento das funcionárias. Nas mãos de sua proprietária aninha-se o poder, antes vaidoso de refrear e de controlar a dependência total das mulheres em relação ao dinheiro que se aufere com a prostituição. E para alcançar esse privilégio fica bem claro que não é necessária muita sagacidade. Basta articula r um plano simples e eficaz, sempre movido a álcool, que, naquela usina de prazer, substitui o óleo e movimenta suas engrenagens.142