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Romance picaresco ou neopicaresco? Algumas semelhanças

3 A QUESTÃO DA PICARESCA EM MADAME POMMERY

3.1 Romance picaresco ou neopicaresco? Algumas semelhanças

Para verificarmos em que medida a obra de Toledo Malta é um romance neopícaro, achamos por bem partir, inicialmente, da análise de Mario González em A saga do anti-herói256, em que este analisa três obras fundadoras dos romances espanhóis picarescos: o Lazarilho de Tormes, o Guzmán de Alfarache e El Buscón. Nosso objetivo é ver em que medida Madame Pommery pode ser lida como uma obra neopícara. Podemos iniciar a discussão a partir do seguinte fragmento crítico:

O pragmatismo de Madame Pommery é, sem dúvida, digno do pragmatismo dos grandes pícaros, que só visam ao proveito próprio, lesando freqüentemente terceiros. Se o pícaro degrada suas próprias origens, desqualificando os próprios pais, convém lembrar que os pais da protagonista já são desqualificados; todavia, Madame Pommery não pensa duas vezes para enganar e renegar o pai, partindo em busca de novos horizontes, como partem os pícaros clássicos. [...] Em vista das considerações acerca da personagem Madame Pommery, conclui-se que é a partir de sua configuração – marcada por uma parafernália de atributos excessivos, de elementos caracterizadores de uma perspicácia ímpar – que o narrador promove uma visão satírica da sociedade paulistana de então, pois nela integra a neo-pícara [sic] Pommery, valendo-se tanto da subversão quanto da aceitação dos recursos consagrados por aquela sociedade. 257

O primeiro texto, Lazarilho de Tormes258, já demonstra que muitas semelhanças podem ser estabelecidas. A primeira delas, e talvez a mais importante, é o início da vida de ambos os protagonistas. Se Lázaro nasce pobre, à beira do rio Tormes, perto de Salama nca, e é filho de um moleiro que morre numa expedição militar e de uma mãe que, viúva, junta-se a um ladrão, Mme. Pommery nasce em trânsito e é filha de um cigano e uma noviça que fugiu do convento. Se Lázaro é entregue a um cego e sua saga é passar por diversos amos: cego – clérigo – frade de mercê – buleiro – mestre de pintor de pandeiros – capelão – arcipreste, Mme. Pommery também passará por muitas mãos. Vê-se, aqui, um interessante contraste entre trabalho e mercadoria.

256 GONZÁLEZ, op. cit., 1994. 257 FERREIRA, op. cit., p. 50-51. 258

Cf. Mario González a primeira tradução do Lazarillo feita no Brasil foi feita em 1939, recriação livre de Antônio Lages. Nesta dissertação trabalhamos com edição bilíngüe, tradução de Pedro Câncio da Silva e prefácio de Mario Go nzález. Op. cit. Vide nota de número 179.

A semelhança da vida de Lázaro com o início da vida de Mme. Pommery é muito grande. Esta também tem pais totalmente avessos a qualquer padrão de boa conduta, passa fome em São Paulo, quando não havia um único cliente a lhe pagar um “filé com ervilhas”. 259

Força e manha são características de ambos os personagens, que lutam para sobreviver num meio hostil:

A sociedade, para o autor de Lazarilho de Tormes, se divide em dois grupos: los que heredaron nobles estados e los que, siéndoles (la Fortuna) contraria, con fuerza y maña remando salieron a buen puerto. O texto quer desmascarar os primeiros para exaltar os segundos, dentre os quais se encontra o próprio Lázaro. Em princípio, pareceria tratar-se de uma rejeição da nobreza de sangue e de um elogio da mentalidade burguesa; no entanto, isso ficará desmentido pela atitude de Lázaro no fim. Remar, para Lázaro, não será trabalhar, nem especular, mas arrimarse a los buenos, como vira sua mãe fazer [...] e como ele próprio faria [...] depois.260

É instigante o final do romance Lazarilho de Tormes pois, se não tão rico quanto a protagonista Mme. Pommery, Lázaro tem toda a comodidade de um burguês: “Pois, nesse tempo, estava eu na minha prosperidade e no auge de toda a boa fortuna”.261 Diferente dos romances de cavalaria andante, o princípio é o de derrubar os mitos de heroicidade. À genealogia nobre dos romances de cavalaria, temos a antigenealogia de Lázaro. Em Madame Pommery há a mesma antigenealogia, presente nos pais da protagonista, que são o protótipo de pais desviados de qualquer conduta moral dentro dos padrões, num jogo lúdico de ambigüidades: pai lambe-feras que iça as tranças da noviça Consuelo Sánchez. Estas semelhanças antigenealógicas são fundamentais entre os textos. Ambos os protagonistas, também, são filhos de pais desonrados perante à sociedade, e acabam por se contraporem a uma sociedade baseada no conceito de honra. O protagonista Lázaro compra roupa velha e

259 A situação inicial de Mme. Pommery tem muitas semelhanças com as peripécias de um pícaro. Em História

da la vida del Buscon a situação de miserabilidade dos personagens é flagrante: “Amaneció el Señor, y pusímonos todos en arma. Ya estaba yo tan hallado con ellos como si todos fuéramos hermanos, que esta felicidad y aparente dulzura se halla siempre en las cosas malas. Era de ver a uno ponerse la camisa de doce veces, dividida en doce trapos, diciendo una oración a cada uno, como sacerdote que se viste; a cuál se le perdía una pierna en los callejones de las calzas, y la venía a hallar adonde menos convenía, asomada; otro pedía guía para ponerse el jubón, y en media hora no se podía averiguar con él”. Tradução nossa: “Descansou o Senhor e nos pusemos em sentido. Já estava tão acostumado com eles que todos eram como se fôssemos irmãos, que esta felicidade e aparente doçura existe sempre em coisas más. Era de ver um pôr-se a camisa doze vezes; dividida em doze trapos, dizendo uma oração a cada um, como sacerdote que se veste; o qual se perdia uma perna nos cueiros das calças, a encontrava donde menos convinha; outro pedia ajuda para pôr o gibão e, em meia hora, não se podia averiguar com ele”. Ver QUEVEDO, Francisco de. História de la vida del Buscón. Buenos Aires: Espasa-Calpe Argentina, 1944, p. 92.

260 GONZÁLEZ, op. cit., 1994, p. 111. 261

Lazarilho de Tormes, op. cit., p. 105. É parecido com o final da obra de Toledo Malta, em que a protagonista ganha fama e fortuna.

uma espada, apresentando-se em “traje de homem de bem”, mostrando a aparência de quem passou muita fome e agora se integra à sociedade.

A sátira social do Lazarilho, apontada por González a partir da crítica ao clero, num desfile de amos-clérigos, numa hierarquia eclesiástica e num crescente grau de corrupção deles, não é muito diferente do grau de corrupção no país dos coronéis, doutores e bacharéis que é São Paulo (Botucúndia) no início do século XX. Conforme González, o clero não é senão o segmento apontado como dominante numa sociedade de pícaros. Há, sem dúvida, uma inversão de valores no Lazarilho muito parecida com Madame Pommery.262

A segunda obra analisada por González é Guzmán de Alfarache , de Mateo Alemán. Guzmán, a exemplo de Lázaro, também mostra sua antigenealogia, experiências e aventuras. Depois que morre o pai e a família vê-se arruinada, roubar é a sina do protagonista. Aqui temos o pícaro ladrão: roubar, ser preso; ser preso, roubar. Roubar parentes, comerciantes e outros. Mas, também, ser roubado é sina, como se fosse a influência do meio sobre o protagonista: um meio corrupto e hostil. Um longo itinerário, uma saga. Também aqui a análise de González nos mostra semelhanças com Madame Pommery, uma vez que há muitas digressões e narrações secundárias (fábula, anedotas, divisas, canções etc.):

Por outro lado, se a narração da história de Guzmán pode seguir esses roteiros, ao longo dessa narração se intercalam: as narrações secundárias – novelas curtas, contos, fábulas e exemplos – e as digressões, sendo que entre elas há as principais – as de autocrítica e de crítica social – e as secundárias, quais sejam, os ensinamentos, as sentenças, os comentários e as definições.263

Dois delitos comuns estão presentes tanto no Lazarilho quanto no Guzmán: roubar e consentir com o adultério da mulher. Mas Guzmán diversificará as variantes do roubo:

Cabe aqui salientar que Guzmán, dentro de sua opção pela picardia, avança no grau das transgressões às normas de conduta social vigentes, até ingressar claramente na delinqüência. Lázaro ficara fora desse universo, limitando-se às picardias necessárias para sobreviver, até conseguir integrar-se no universo corrupto que antes vira de baixo para cima. No entanto, é importante levar em conta que Lázaro já pratica os dois delitos que marcarão Guzmán: roubar e beneficiar-se do adultério da própria mulher. Guzmán multiplicará as transgressões de Lázaro e as diversificará; será pródigo em

262 Vários aspectos, além da antigenealogia, da trapaça, do embuste, da encenação etc., tornam Mme. Pommery,

em parte, neopícara numa sociedade patriarcal de coronéis, doutores, jornalistas, advogados, chefes de almoxarife e outros.

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variantes do roubo, como o estelionato, a falsa mendicância ou o jogo trapaceiro e se tornará um verdadeiro rufião da própria mulher.264

A conversão religiosa de Guzmán é apontada por González como mais uma trapaça e uma forma de ser aceito pelo segmento dominante da sociedade265, muito parecido com o presságio de casamento em Madame Pommery, em que a protagonista venceu, casando-se. A mesma zombaria ao cristianismo: “Em síntese, Guzmán tem muito mais de zombaria do cristianismo na boca de quem, dizendo-se arrependido, vira delator, pratica a vingança, ignora na sua narrativa os dogmas cristãos da redenção e da providência, persiste numa relação homossexual que a Igreja condenaria [...]”.266 Se Lázaro se casa com a criada do Arcipreste e integra-se à sociedade, Guzmán será um “[...] converso que delata, ou seja, que aceita cumprir o dever de denunciar para colaborar com a preservação do império desses princípios”.267 Casar e tornar-se uma mulher conspícua é integrar-se à sociedade da época para Mme. Pommery. Se em Guzmán a falsa conversão religiosa é mais um embuste para delatar os companheiros, em Madame Pommery não é muito diferente. Casar-se, para a protagonista, não será com qualquer um. Ela sabe escolher, e entra para o Electro Club da época, a nata aristocrática. Integra-se à sociedade por ter dinheiro. Possivelmente, temos a sátira social de uma sociedade hipócrita que não se vende por pouco, mas se vende.

A terceira obra analisada por González foi escrita por Francisco de Quevedo Y Villegas com o título em espanhol El Buscón: “El Buscón se insere no gênero picaresco de maneira claramente intencional. De certo modo, pode ser visto como uma síntese da duas obras anteriormente analisadas”268. A história de El Buscón é própria de um pícaro: trapaças, roubo, suborno etc. Pablos, o protagonista, também possui a mesma antigenealogia: filho de barbeiro ladrão e de uma cristã-nova, bruxa e alcoviteira.

264 Id. Ibid., p. 145-146.

265 Muito embora as épocas sejam bastante distintas, quando Guzmán converte-se ao cristianismo para livrar-se

da galé, isto é sinal de aprendizagem. Ou mesmo quanto Lazarilho de Tormes silencia diante da traição da mulher: “Y, así, me casé con ella, y hasta agora no estoy arrependido, porque, allende de ser buena hija y diligente servicial, tengo en mi señor arcipreste todo favor y ayuda. Y siempre en el ãno le da, en veces, al pie de una carga de trigo: por las Pascuas, su carne; y cuando el par de los bodigos, las calzas viejas que deja. Y hízonos alquilar una casilla par de la suya; los domingos y fiestas casi todas las comíamos en su casa”. Tradução: “Assim, casei com ela e até hoje não estou arrependido, porque, além de ser ela boa moça e diligente serviçal, recebo do meu senhor, o arcipreste, todo o favor e auxílio. E sempre no ano lhe dá, em várias vezes, perto de uma carga de trigo; pela Páscoa, sua carne e, por ocasião da oferenda dos pães, as calças velhas que deixa de usar. E fez-nos alugar uma casinha perto da sua; aos domingos e em quase todos os dias de festa comíamos em sua casa”. Lazarilho de Tormes, op. cit., p. 102. Uma boa malandragem. Sobreviver bem, eis a questão.

266 GONZÁLES, op. cit., p.173. Madame Pommery pode ser lida como uma sátira social e com muita ironia à

Igreja Católica Romana, através da personagem Justiniano Sacramento.

267 Id. Ibid., p. 172-173. 268

Id. Ibid., p. 188. Cf. González a última tradução em português é de 1959, em que El Buscón foi traduzido como O Gatuno.

Para Quevedo o mundo, fora a aristocracia, “pertence aos que fingem ser decentes sem sê-lo; aos que fingem à margem de toda lei e aos que são naturalmente maus, isto é, judeus e mouriscos”.269 Visão mais que preconceituosa de Quevedo, mas compreensível, advinda de um aristocrata na Espanha da época. Percorrendo a análise de González é importante entendermos o que seja, para este, a definição de romance picaresco:

Feitas essas colocações, achamos possível tentar encontrar nesse intertexto, que constitui o núcleo da picaresca clássica espanhola, os elementos necessários para uma definição adequada que permita estabelecer o grau de relação que com ele possa guardar outro texto remoto ou próximo.

Assim, com base nesse intertexto, para nós, um romance picaresco será: a pseudo-autobiografia de um anti-herói, definido como marginal à sociedade, o qual narra suas aventuras, que, por sua vez, são a síntese crítica de um processo de tentativa de ascensão social pela trapaça e representam uma sátira da sociedade contemporânea do pícaro, seu protagonista.270