• Nenhum resultado encontrado

4 MEIO AMBIENTE E A PROTEÇÃO DA FAUNA

4.4 DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO

4.4.1 Antropocentrismo alargado

Celso Antonio Pacheco Fiorillo vê no direito ambiental uma necessária orientação antropocêntrica, e entende que o direito ao meio ambiente é voltado para a satisfação das necessidades humanas, o que não impede que se proteja a vida em todas as suas formas, porque o homem é o único animal racional cabendo-lhe a preservação da própria espécie e de todas as outras, tendo em mira a manutenção da própria sadia qualidade de vida135. Celso Pacheco Fiorillo entende que a finalidade do art. 225, §1º, VII, da Constituição Federal, é a busca da proteção do homem e não do animal, porque fundada no sentimento humano; “a saúde psíquica do homem não lhe permite ver, em decorrência de práticas cruéis, um animal sofrendo”136.

A visão antropocêntrica, segundo José Roque Nunes Marques, permeia todo o ordenamento jurídico moderno, apresentando-se como uma característica dos principais instrumentos até mesmo em nível internacional, porque são fartas as referências ao fato do homem estar no centro das atenções dos programas de proteção ambiental. Na Constituição Federal brasileira, o autor aponta dois itens que evidenciam esta característica: o caput do art. 225, quando estabelece que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,

131 Ibidem, p. 26-27.

132 REISEWITZ, Lúcia. Direito ambiental e patrimônio cultural: direito à preservação da memória, ação e

identidade do povo brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 45-47.

133 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 7. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004, p. 62.

134 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 78-79 e 218-222. 135 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 15-17. 136 Ibidem, p. 107.

bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida; o artigo 1º, que estabelece como princípio da República, a dignidade da pessoa humana. Para José Marques, sem dúvida, o homem é o destinatário da norma ambiental137.

Parece ser de igual natureza a lição que se extrai das palavras de José Augusto Delgado ao referir que as reflexões assentadas têm demonstrado que o direito ambiental está vinculado a valores que se dirigem a proteger a unicidade da natureza em cujo contexto está inserida a vida humana e animal, ao mesmo tempo em que ressalta que a Constituição de 1988 sublima especialmente a proteção da dignidade humana, da cidadania e da saúde do homem. Para José Delgado, o direito ambiental há de defender idéias que valorizem a conscientização de que os recursos naturais, se não conservados, serão esgotados, dificultando a sobrevivência da raça humana, bem como que é necessário, na época contemporânea, que o Direito Constitucional atue em harmonia com as reivindicações dos movimentos ecológicos, cujo objetivo principal é defender a boa qualidade de vida da população138.

Nesta dimensão ética de aliança e solidariedade, o homem ainda permanece num papel central, por duas razões: porque a preservação do meio ambiente sempre dependerá da ação humana; e porque a tutela ambiental nunca poderá desprezar a garantia da dignidade da pessoa humana.

Lúcia Reisewitz afirma que no tocante à perspectiva ideológica é possível identificar mais de um caminho para justificar o fato de o direito se voltar para a tutela do meio ambiente e que esta escolha irá determinar o status a ele conferido, colocando-o como sujeito ou objeto das relações jurídicas e desencadeando a dualidade entre ecocentrismo e antropocentrismo139.

Para Reisewitz, uma das possíveis visões é a que coloca o meio ambiente e seus recursos como beneficiários das normas de direito ambiental, por terem valor intrínseco. Por esse prisma, é possível defender a idéia de que os animais teriam direito a não serem tratados com crueldade, com fundamento no art. 225, inciso VII, da Constituição. Para tornar possível este argumento seria preciso conferir aos elementos do meio ambiente personalidade jurídica, aptidão para adquirir e cumprir obrigações. Ela reconhece que é possível considerar que as coisas existem independentemente da visão que o ser humano tem sobre elas, mas em relação aos valores há distinção, vez que enquanto atribuídos pelo ser humano, estarão sempre ligados

137 MARQUES, José Roque Nunes. Direito ambiental: análise da exploração madeireira na Amazônia. São

Paulo: LTr, 1999, p 129-132.

138 DELGADO, José Augusto. Aspectos Constitucionais do Direito Ambiental. In: MARTINS, Ives Gandra da

Silva (Coord.). As vertentes do direito constitucional contemporâneo. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 197, 201 e 227.

139 REISEWITZ, Lúcia. Direito ambiental e patrimônio cultural: direito à preservação da memória, ação e

a um juízo humano. Assim, o valor intrínseco do meio ambiente é intrínseco ao valor que o ser humano lhe atribui140.

A outra corrente coloca o ser humano como único destinatário das normas de direito ambiental, e, portanto, como único sujeito desses direitos. Considera a proteção dos ambientes e seus recursos como objeto das relações jurídicas e cuja finalidade é a garantia de vida e da dignidade humana. Assim, o artigo constitucional que veda as práticas que submetam os animais à crueldade diz respeito a um direito humano de não conviver com elas, pois afetam- nos como seres sensíveis em relação ao sofrimento alheio. A preservação das florestas seria fundamentada na consciência de que dependemos do equilíbrio ecológico que elas propiciam. Este prisma apresenta duas importantes conseqüências: o meio ambiente é objeto das relações jurídicas e a preservação ambiental não deve ser considerada uma meta independente da qualidade de vida.

Lúcia Reisewitz critica o que poderia ser chamado de antropocentrismo exacerbado, ao dizer que o fato de reconhecermos que em uma realidade criada pelo ser humano é ele quem atribui valor a todas as coisas, não significa necessariamente que ele se colocará em um patamar de superioridade. Reisewitz entende que o antropocentrismo não determina a supremacia do ser humano em relação a todas as coisas, mas a igualdade de todos, impedindo que ele próprio seja tratado como coisa. Afirma que não é o antropocentrismo, mas talvez a lógica capitalista, ou o liberalismo, o predador da natureza e da cultura. Conclui que partir do ponto de vista antropocêntrico não significa autorização para degradar o ambiente, e sim valorizá-lo ao máximo, pois é fundamental para o equilíbrio da vida em todas as suas formas, sem fazê-lo em detrimento da preservação da vida humana141.

Embora negue a tensão entre antropocentrismo e ecocentrismo é possível dizer que Lúcia Reisewitz promove uma leitura de um antropocentrismo abrandado, que busca preservar toda a vida, sem prejuízo da garantia à dignidade humana.

É esta a noção que perpassa a lição de José Robson da Silva, para quem a dignidade da pessoa humana possui um núcleo antropológico, que não introduz uma ruptura, mas estabelece um mínimo de garantias para o objeto, na perspectiva de atender aos interesses e necessidades fundamentais da pessoa, vedando a prática de maus tratos, violência ou crueldade contra os animais142.

Deste modo não se rompe efetivamente com o nó antropocêntrico, pois a

140 Ibidem, p. 33. 141 Ibidem, p. 33-34.

142 SILVA, José Robson da. Paradigma biocêntrico: do patrimônio privado ao patrimônio ambiental. Rio de

medida do Direito são atos humanos, os destinatários da norma são os humanos, os vícios combatidos são vícios que extrapolam um sentimento médio de humanidade, cuja matriz, em grande parte, é a sociedade ocidental- judaica-cristã.143

Não é no caput do art. 225 da Constituição Federal144 que José Robson da Silva vê este novo paradigma, porque a palavra “todos” está a se referir aos humanos. Ele se revela no parágrafo primeiro, inciso sétimo, que protege a função ecológica da flora e da fauna, proíbe os atos que levem à extinção ou submetam animais à crueldade. Assim, existiria um direito da flora e fauna de não serem extintos; um direito a que na utilização não se realizem atos que comprometam sua função ecológica; e um direito de não sofrer tratamento cruel145.

Também Paulo Affonso Leme Machado entende haver esta dicotomia ao expressar

O caput do art. 225 é antropocêntrico. [...] A Declaração da Conferência do Rio de Janeiro/92 ratificou esse posicionamento ao colocar, no seu Princípio 1: “Os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento sustentável.

Nos parágrafos do art. 225 equilibra-se o antropocentrismo com o biocentrismo (nos §§ 4º e 5º e nos incisos I, II, III e VII do § 1º), havendo a preocupação de harmonizar e integrar seres humanos e biota.146

Paulo de Bessa Antunes compreende que o direito ambiental rompe com a doutrina jurídica que tem por base o sujeito de direito, reconhecendo algum status jurídico a animais e a ecossistemas, fazendo possível a defesa imediata de formas de vida não humana, e mediatamente assegurando aos seres humanos o desfrute do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Reconhecem-se direitos próprios da natureza, conforme os inc. I, II e VII do art. 225 da Constituição Federal, independentemente do valor que possa ter para o ser humano, negando concepções passadas, pelas quais o homem subjugava a natureza. “A evolução desejável é que o Ser Humano possa se conceber como uma parte da natureza e que depende do todo para sua sobrevivência”.147

Mostra-se a necessidade de uma posição compromissória, pela qual se deveria reconhecer que a humanidade não pode ser considerada como o centro da biosfera, ponto de convergência do reconhecimento e respeito pelo standard de moralidade baseado na pessoa humana, devendo-se permitir a inclusão da natureza, a partir do reconhecimento de que também possui uma existência moral relevante, atribuindo-lhe um valor intrínseco,

143 Ibidem, p. 130.

144 Em verdade o autor diz que na Constituição percebe-se um pêndulo entre os paradigmas antropocêntrico e

biocêntrico.

145 SILVA, op.cit., p. 208.

146 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 12. ed. São Paulo, Malheiros, 2004, p. 110. 147 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 7. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004, p. 25 e 27-28.

independente das necessidades humanas, e tampouco vinculada a uma ética utilitarista148. Analisando os termos do art. 225, CF, afirma Carolina Medeiros Bahia que a ordem constitucional brasileira filiou-se à perspectiva antropocêntrica alargada, vez que constitui a opção ética acolhida pelo sistema jurídico brasileiro, tendo em vista a concepção de desenvolvimento humano sustentável, que tenta compatibilizar a proteção ambiental com as facetas econômica, social, política e cultural do desenvolvimento humano, sendo imperativo que a proteção ambiental guarde sempre a dimensão da garantia da dignidade da pessoa humana e da sadia qualidade de vida149.

Esse antropocentrismo alargado não se confunde com o antropocentrismo clássico que considera o ambiente como coisa a ser saqueada. Ele estabelece um paradigma que rompe com o centralismo jurídico em torno do homem e define uma preocupação plural, que o põe na teia da vida150.

Patryck de Araújo Ayala considera que uma nova arquitetura constitucional dos direitos fundamentais leva em consideração propostas conciliatórias fundadas em pluralismos morais, nas quais a dignidade da pessoa humana e as necessidades ecológicas são os valores de definição do objetivo central dos direitos, qual seja a proteção da vida humana151.

Nestes termos é que afirma:

O objetivo de promoção do bem-estar do homem passa a compartilhar seu espaço no sistema jurídico, com o bem-estar de todas as formas de vida, em um modelo moral conciliatório, que atribui valor jurídico à proteção dos sistemas ecológicos.152

A afirmação de um direito fundamental ao meio ambiente e, sobretudo, o reconhecimento de uma identidade particular ao bem ambiental desafiam a clássica configuração unitária de justificação destes direitos, mas, mesmo que consolide uma “independência axiológica da natureza”, encontram-se baseados na proteção do principio da dignidade da pessoa humana 153.

148 AYALA, Patryck de Araújo. O princípio da precaução e a proteção jurídica da fauna na constituição

brasileira. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, ano 10, n. 39, jul./set. 2005, p. 153.

149 BAHIA, Carolina Medeiros. Princípio da proporcionalidade nas manifestações culturais e na proteção da

fauna. Curitiba: Juruá, 2006, p. 113.

150 SILVA, José Robson da. Paradigma biocêntrico: do patrimônio privado ao patrimônio ambiental. Rio de

Janeiro: Renovar, 2002, p. 202-205.

151 AYALA, op,cit., p. 152. 152 Ibidem, loc.cit.

5 A TÉCNICA DA PONDERAÇÃO NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ENTRE