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3. LIBERALISMO E ESCRAVIDÃO NAS CARTAS DE ERASMO

3.3 AS CARTAS DE ERASMO

3.3.3 AO MARQUÊS DE OLINDA; AO VISCONDE DE ITABORAHY

A carta endereçada ao Marquês de Olinda (ALENCAR, 2009, p.243-254), então presidente do conselho e ministro dos negócios do Império, inicia com a objetiva epígrafe: “vou te interrogar e tu me instruirás”42 (ALENCAR, 2009, p.243), e se dirige ao marquês com toda a reverência que o romantismo da última fase lhe permite. Olinda teve participação no processo de independência, havia sido regente e ministro. Era uma figura respeitável no cenário político brasileiro. Formado em Coimbra, fazia parte de um grupo ao qual Alencar acreditava estar tempo demais no

42 Não pudemos deixar de notar o erro, indicado pelo revisor, da epígrafe. Pois bem... A epígrafe, em latim, refere ao livro de Jó 33-3 como “Cinge, como um valente, os teus lombos, vou te interrogar e tu me instruirás”. O revisor, prontamente, corrige a referência, que está na verdade em Jó 38-3. Mas, se entendermos a epígrafe como mais uma das armadilhas de Alencar, a referência dada por ele (incorreta, no caso) mostra, em Jó 33-3, uma resposta ao versículo anterior ou mesmo um indicativo para a continuidade da leitura da epígrafe, onde se vê: “As minhas razões sairão da sinceridade do meu coração, e a pura ciência dos meus lábios”. Que é o apregoado pelo missivista desde as primeiras cartas ao Imperador. Ele, como o arauto da verdade. Mas, se quisermos acreditar no radicalismo e perversidade do Alencar, seguiremos até Jó 33-33, onde se lê: “... escuta-me tu; cala-te, e ensinar-te-ei a sabedoria”. Para Alencar, filho de um padre e extremamente conservador, é possível entender o jogo de relações com os versículos como um índice para o início de uma crítica ferrenha ao Marquês. É interessante lembrar, sem pretender se extender em tal ponto (que não cabe aqui, devido as limitações do trabalho), nas observações de Chartier (1999) sobre o texto como forma literária e sua impressão; todo o processo que acompanha o texto até alcançar o seu suporte, as intervenções de tipografia, gráfica, editores e mesmo erros que afetam o texto. A recepção é, sempre, algo que deve ser observado junto a uma crítica do texto, e não como um simples derivado deste !

poder. Compara seu trabalho com o de Vasconcelos, José Clemente e Paraná; invoca Evaristo, Feijó e Vergueiro, tecendo uma trama de modelos ideais na qual tentará capturar Olinda. Se apresenta ao Marquês afirmando que seu “empenho sincero tem sido reparar os estragos do tempo” (ALENCAR, 2009, p.244), buscando e indicando caminhos para a administração pública como em uma espécie de jornalismo crítico e investigativo. Compara o político, em sua astúcia, a Luiz XVIII de França, novamente consolidando o modelo europeu como marco de uma civilização “mais avançada” cultural e politicamente, mas também aludindo ao seu longo tempo de permanência nos grupos então no poder. E esta permanência Alencar sugere que é devida a capacidade de adequação que possui o Marquês, acompanhando a maré dos fatos e acomodando-os às suas necessidades - como em decisões polêmicas como na partida de D. Pedro II para Uruguaiana, ou sobre a deposição do gabinete. O tato político que teria o Marquês lhe permite sempre estar em consonância com a opinião pública, pelo menos com a parte elogiosa da opinião.

Com certo tom de gracejo, Alencar brinca com a idade avançada do Marquês e sugere que ele escreva uma biografia. Biografia que estaria rica de assuntos e informações políticas, já que – falando com uma ponta de sarcasmo conservador sobre a mobilidade partidária no período – o Marquês “havendo pertencido a todos os partidos, modernos e antigos a datar da constituinte, vossa autobiografia deve ser um tesouro inexaurível de lição e conselho” (ALENCAR, 2009, p.247). E qualquer político, continua, encontrará “nesse novo evangelho político um tema, um exemplo, uma epígrafe, para adornar sua doutrina” (ALENCAR, 2009, p.248). Mas Olinda apesar da idade continua firme no poder, aparentemente não querendo abrir mão disto, como muito bem nos sugere Alencar: “para vós, porém, não chegou ainda o tempo das memórias; estais com as mãos na obra” (ALENCAR, 2009, p.248); em todas as obras em que consegue esgueirar suas mãos, era o que queria dizer. Mesmo quando os resultados não lhe são promissores, como em 1851 com o episódio do Prata.

Em 1857, alude, o partido conservador começa a perder força, apesar da presença de lideranças importantes que poderiam seguir com uma administração competente. Tendo homens, como o dissera, “de talhe para a empresa, uns pela ilustração,

outros pela popularidade: Itaboraí, Uruguai, Eusébio, Caxias, Pimenta Bueno” (ALENCAR, 2009, p.249), não consegue encontrar um norte com algum destes e ao .clongo de alguns anos o partido perde sua força de combate.

Olinda foi presidente do conselho de ministros, e ministro em diversas pastas e diferentes gabinetes. Seu nome, nos conta, enche o livro do Segundo reinado; “rara é a página em que não figure ele no alto. Estreastes regente; era natural que acabásseis vice-rei43” (ALENCAR, 2009, p.249). Mas o país sofre por demais neste momento, e o Marquês é o signo (senão o culpado) dessa administração equivocada, incompetente, oriunda de uma oligarquia irresponsável que lança o país na “corrupção infrene, o descrédito público, a ruína das finanças, o aniquilamento da indústria e, finalmente, a guerra ladeada a uma pela vergonha e pela miséria!” (ALENCAR, 2009, p.250). A pátria exige um esclarecimento, que Olinda ponha a mão na consciência e admita – na impossibilidade de corrigi-los – seus erros, a quem lhe creditou à administração. O país sofre e Olinda dorme “à sesta e consente que os convivas de teu banquete tripudiem sobre meu corpo exânime?” (ALENCAR, 2009, p.252). Não, a pátria exige sua salvação! E o instrumento para tanto é “o mesmo que serviu em 1837, aí jaz atirado ao pó e desdenhado. É o grande Partido Conservador, numeroso até na imobilidade, forte ainda no abandono.” (ALENCAR, 2009, p.252) Olinda deve indicar ao monarca um novo gabinete constituído pelo partido conservador. Alencar acena para a permanência de grupos no poder, mesmo com a mudança de gabinetes e vertentes políticas, onde lideranças transitam pelos dois lados - conservador e liberal – e adaptam suas ideias as correntes de pensamento vigentes em cada momento.

Na sequencia das cartas (ALENCAR, 2009, p.223-239), outro destinatário ilustre tem a sua vez: O Visconde de Itaborahy - carta de Erasmo sobre a crise financeira. Homem probo, política e civilmente, “um dos poucos contra quem não se atreveu ainda a maledicência” (ALENCAR, 2009, p.223). Esse fiel monarquista esteve por um breve período distante da militância na reorganização de partidos e gabinetes quando do período da liga, para retornar logo em seguida, fortalecido pelos descaminhos da administração, em uma defesa da instituição imperial e dos

43 O último vice-rei do Brasil foi o Conde dos Arcos, em 1808. O título impõe certo respeito, mas é evidente que Alencar o toma em um tom jocoso.

destinos do país em discursos inflamados no Senado junto à outros conservadores.

Itaborahy começa a carreira política no partido liberal e também como jornalista. Assume o ministério da marinha e em 1837 se transfere para o partido conservador. Foi deputado geral e presidente do Banco do Brasil, causa pela qual a, segundo Alencar, assustadora perspectiva econômica do país, leva o missivista - cheio de elogios - à pessoa do Visconde, pedir conselhos a este sobre os rumos que a administração pública deveria seguir, admitindo não ter a necessária ciência para o assunto, nem sequer pretende “ao título de discípulo da escola que vos reconhece por mestre” (ALENCAR, 2009, p.225), mas se propõe a analisar o momento de crise, iniciando pelos problemas com o crédito. As duas espécies de crédito, indicadas pelo analista, são o mercantil e o predial. Os dois estão como que envolvidos um no outro, como uma sustentação de garantia mútua a que os bancos se remetem no sistema implantado no Brasil. E as transações financeiras “se prendem por filamentos mais ou menos longos e tortuosos à lavoura” (ALENCAR, 2009, p.227), base da economia no momento. O investimento hipotecário afugenta os capitais particulares, visto que o comércio e a indústria inspiram maior confiança, considerados seguros e lucrativos por uma maioria. Com a deficiência do credito predial, atrelado a lavoura, o comércio vai a seu auxílio, na tentativa de achar certo equilíbrio, que não acontece devido as diferenças próprias de cada modalidade44.

O problema de conseguir crédito para as lavouras, comenta, é comum em vários países do mundo e não seria diferente no Brasil, mas a solução para nosso país, determinada pelo governo associado ao Banco do Brasil é a de extravasar os limites da emissão bancária, o que acarreta financiamentos impossíveis de serem tolerados pela grande maioria dos que dele necessitam. A recente implantação do sistema de crédito cede lugar a problemas de imperícia financeira e, junto a isso, certos abusos praticados por integrantes da associação comercial constroem, com a imobilização de grande soma de capitais, um caminho para a derrocada do sistema. Ao mesmo tempo a lavoura também atravessa uma crise, com a escassez de mão de obra e a introdução de técnicas dispendiosas, acrescidas da carestia de gêneros e das

44 Alencar usa de seu conhecimento como advogado especializado em direito administrativo e comercial para equilibrar a narrativa com os argumentos da economia e administração públicas.

últimas más colheitas. Também o fato de estarmos em período de guerra acarretou dois fenômenos preocupantes, o “escoamento dos depósitos bancários para o tesouro [e também a ] monetização do papel bancário, como um meio sub-reptício de fornecer recursos ao governo” (ALENCAR, 2009, p.230), criando o que chamou de uma moeda simbólica, não tendo reservas que os garantam.

Anunciado esse quadro desolador (aqui simplificado), Alencar questiona o Visconde sobre qual seria o remédio, visto que a crise se alastrara por todo o sistema financeiro? Alencar responde afirmando ser necessária a separação do crédito agrícola do mercantil, chegando a sugerir à fundação de um banco agrícola brasileiro que aliviaria o Banco do Brasil de garantir suporte a avultada dívida agrícola, a impontualidade do agricultor no pagamento de suas dívidas, resultado da imprevisibilidade do sistema de colheitas e a constante oscilação no valor da propriedade rural. A proposta de Alencar indica a emissão pelo governo de apólices para o banco agrícola, transformando o agricultor – ou seu qualquer portador – em acionista. Algo como uma auto gerência do sistema, em que uma hipoteca de terras garantiria o saldo devedor. Proposta avançada para a época; aqui mais uma vez podemos observar a distorção que se deu no Brasil para as propostas de implantação de uma política liberal, tendo o Estado que se tornar distante das soluções econômicas, mas ao mesmo tempo garantindo um lucro fácil para uma aristocracia. É o que vê aqui, onde a grande propriedade foi formada pelo sistema de distribuição de sesmarias e seus proprietários, como os da antiga colônia, só querem explorar sem ter que arcar com quaisquer dívidas ou prejuízos. Mas Alencar condena-os, afirmando que “a lavoura não pode esquivar-se a garantir o Estado quando este contrai grandes compromissos para auxiliá-la” (ALENCAR, 2009, p.235). Os tempos são outros; mas será que são de verdade? O governo, durante a mudança proposta, também deve arcar com o prejuízo dos títulos sem valor que emitiu, sendo alguns de empréstimos que ele mesmo cedeu. No fim, o prejuízo é sempre grande. Alencar sustenta uma regulação do mercado provavelmente influenciado pelas ideias de Adam Smith, em que o mercado consegue trabalhar melhor sem uma interferência direta do Estado (KENNY, 1998). Smith, então muito em voga nos meios acadêmicos, mas para Alencar manter a crítica lhe falta alguma experiência como financista para o tratamento de assuntos tão específicos, o que pode ter sido interpretado como arrogância de jornalista. Da carta, fica a opção por

uma estrutura administrativa baseada nas ideias liberais, de fomento a livre empresa, crédito bancário em uma tentativa de diminuir a intervenção contínua do Estado na economia, segunde ele até então necessária. O que fica para a história política é a questão: com a pressão para ao fim efetivo do tráfico de escravos e a implementação da mão de obra assalariada – qualquer que fosse esta, imigrante ou não, europeia ou não – em todo o país, quem arcará com o custo final disso tudo: o Estado ou as elites então no poder ?