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Capítulo 2: Aparatos estatais e políticas públicas indigenistas no Brasil em contexto de

2.3 Aparatos estatais indigenistas: o SPI e a Funai

Durante o período colonial, a tarefa de incorporação do índio à sociedade brasileira era da Igreja Católica, por meio das missões religiosas. Os jesuítas ansiavam incorporar as populações nativas a ordem cristã do mundo europeu, mas, ao mesmo tempo, as circunscreviam em verdadeiros campos de concentração sob a rígida disciplina das missões (RAMOS, 2004). Apesar da instauração do Diretório dos Índios pelo Marquês de Pombal no século XVIII e da expulsão dos jesuítas das colônias portuguesas, esse sistema de confinamento e vigilância pouco se alterou.

Já no século XX, com o advento da República, o Estado brasileiro assumiu a tarefa de integrar os povos indígenas até sua incorporação plena à sociedade nacional. Criado em 1910, o primeiro aparato estatal para regulamentar as relações do Estado com os índios, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), tinha como principais tarefas a pacificação e a proteção dos grupos indígenas (RIBEIRO, 1967) por meio do que Souza Lima (1992) chamou de exercício do poder tutelar. A sua criação veio por fim a uma polêmica sobre como tratar os povos indígenas que estavam causando “problemas” à expansão econômica brasileira.

A direção do órgão indigenista oficial foi dada a Cândido Mariano da Silva Rondon, um militar positivista, conhecido na época por sua prática indigenista baseada em métodos persuasivos e guiada pelo lema: “Morrer se preciso for, matar nunca!”37. Num esforço de enfrentar a resistência indígena sem hostilidade, Rondon e diversas gerações do SPI ofereciam gratuitamente mercadorias diversas as populações contatadas, o que segundo Matos (1997) foi o início das práticas de paternalismo do órgão indigenista oficial.

Em sintonia com a política da época, de proteção estatal aos povos indígenas para sua integração plena à sociedade nacional, o Código Civil de 1916 deu o status legal aos índios de “relativamente incapazes”, juntamente com as mulheres casadas, os menores de idade e os pródigos.

37Ramos argumenta que a imagem do indigenismo rondoniano possuía sobre os índios pode ser expressa simbolicamente

pela figura do “bom selvagem”: o inocente, não preparado e vulnerável ao contato. Segundo a teoria comtiana, as sociedades tribais e as civilizadas pertenciam a estágios diferentes do mesmo processo de evolução, sendo que as primeiras poderiam progredir para integrar-se à civilização. Assim, a visão romântica do indigenismo rondoniano, por apostar na pureza do caráter indígena, apostava na transformação do “nobre selvagem” em um “brasileiro ideal”, por meio da garantia de um processo natural de integração, gradativo e harmonioso, à sociedade nacional (Ramos, 1991).

A partir da Revolução de 1930, o SPI era visto de forma ambígua: ora teve mais importância como prioridade estatal, ora foi esquecido, até que atingiu um processo irreversível de desorganização e desmoralização, após o golpe militar de 1964. Com a substituição da mentalidade positivista por um ideário baseado, sobretudo, na conjugação “soberania nacional/desenvolvimento”, o SPI se envolveu em um escândalo nacional e internacional, sendo acusados de crimes e irresponsabilidades contra as populações indígenas. Assim, em 1967, de modo a manter a autoridade indigenista e o papel de mediador entre os povos indígenas e a sociedade nacional, o governo militar extinguiu o SPI e criou a Funai (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988).

A Funai foi criada tendo como modelo a prática protecionista dos irmãos Villas Boas, para os quais caberia ao governo federal a tarefa de proteger os povos indígenas por meio da criação de parques e reservas indígenas fechadas, de modos a lhes garantir um processo gradual de integração à sociedade nacional, como grupos étnicos independentes.

No entanto, por ter sido criada como um órgão do Ministério do Interior, a Funai não conseguiu ter autonomia política e financeira para executar seus objetivos, uma vez que neste Ministério havia interesses econômicos bastante contraditórios aos indígenas, principalmente com relação à terra.

Na década de 1970 sucederam uma série de projetos governamentais para a expansão econômica, sobretudo na Amazônia, com conseqüências desastrosas para as populações indígenas. Na avaliação de Ramos (1984 apud Matos, 1991), o que é novo na situação de contato nos anos 70, comparada com as práticas anteriores de expansão de fronteiras econômicas sobre as terras dos índios, é a extensão, velocidade e a virulência do impacto da sociedade nacional sobre os povos indígenas. A construção de rodovias (como a Transamazônica e a Cuiabá-Santarém), a exploração de minérios, o Programa Grande Carajás e a construção da hidrelétrica de Tucuruí são algumas amostras dessas iniciativas que até hoje fazem sentir seus efeitos. Nesse período, a Funai deu apoio incondicional às atividades governamentais, assumindo interesses contraditórios aos direitos indígenas. Durante a gestão na Funai do General Bandeira de Mello (junho de 1970 a março de 1974), por exemplo, a política de demarcação de terras indígenas foi orientada pelos projetos econômicos da ditadura, dependendo diretamente do valor territorial da terra (MATOS, 1997).

Foi nesse período que se promulgou o Estatuto do Índio, discutido anteriormente, e também que tentou-se colocar em prática o “Projeto de Emancipação dos Índios”, iniciativa do Ministério do Interior em 1978, cujo objetivo era adotar uma política hostil de integração de modo que os indígenas se emancipassem da tutela do Estado com a intenção de explorar economicamente as terras e as populações indígenas (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO, 1979). Apesar dos esforços governamentais, o projeto nunca foi aprovado e implementado, encontrando resistências não apenas dos índios, mas de inúmeros setores da sociedade brasileira engajados com a questão indígena (RAMOS, 2004).

A questão indígena passou a ocupar cada vez mais espaços na mídia nos anos 1970, período em que o movimento indígena (dos próprios índios) e indigenista (de seu aliados não-indígenas, pessoas e organizações) estavam em crescente mobilização, conforme será abordado no Capítulo 3. Essa aliança foi responsável pelas conquistas em termos de direitos indígenas consagradas pela Constituição de 1988.

As mudanças nas relações entre as populações indígenas e o Estado brasileiro conquistadas na redemocratização do país não levaram a transformação da estrutura estatal indigenista até o início da década de 1990: a Funai, a despeito das críticas, permaneceu sendo o órgão que centralizava o diálogo com os povos indígenas no Brasil por meio da implementação de políticas públicas.

A partir da década de 1990 iniciou-se um processo de transformação dessas relações, especialmente no que se refere às políticas indigenistas na área de demarcação territorial, saúde, educação escolar indígena e auto-sustentação. A Funai, que atualmente conta com uma estrutura de 45 administrações regionais, 14 núcleos de apoio indígena, 10 postos de vigilância e 344 postos indígenas, além de sua sede em Brasília e do Museu do Índio no Rio de Janeiro, perdeu poder e recursos financeiros, perdendo a centralidade na estrutura do Estado brasileiro no que se refere às relações com as populações indígenas.

Análises sobre iniciativas inovadoras de governos locais chamam a atenção para a presença de uma diversidade de organizações atuando no espaço público subnacional (FARAH, 2001, SPINK, 2002). Agências estatais das três esferas de governo, organizações internacionais, organizações da sociedade civil brasileira, movimentos sociais, empresas

privadas, dentre uma enorme gama de atores organizacionais, intensificaram sua atuação nos diversos espaços da ação pública nos últimos anos.

No campo das políticas públicas indigenistas isto não é diferente. De um modelo de gestão centralizado na ação da FUNAI, passou-se a uma situação multiorganizacional em que vários órgãos governamentais participam da implementação de políticas públicas ao lado de ONG´s indígenas e indigenistas, tornadas proponentes e gestoras de atividades locais em setores como educação, saúde, proteção ambiental e desenvolvimento de atividades produtivas (SOUZA LIMA E BARROSO-HOFFMANN, 2002).

Tem destaque também a atuação de agências de cooperação internacional, por meio de mecanismos de cooperação técnica e financeira, presentes neste campo desde a década de 60 (ATHIAS, 2002).