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ara um observador estrangeiro, maio de 1978 talvez mostrasse algo sur-preendente. Para muitos de nós, nativos, também. Quase como um raio no céu azul, algumas emissoras de TV mostram cenas de um personagem quase maldito: a classe operária, ou, mais precisamente, o movimento operário.

Apareciam na TV, diante de alguns surpresos telespectadores, antes da novela das oito horas, as cenas de greves em indústrias da Grande São Paulo. Ou de um conflito em eleições para o sindicato metalúrgico da cidade de Osasco — mais tarde, a cena se repetia no sindicato da categoria na capital.

Alguns não se surpreenderiam com os fatos — eu os conhecia bem de perto. A surpresa era chegar à telinha.

Aparentemente, o movimento operário saía das catacumbas. Quase literal-mente, porque vivíamos mesmo em catacumbas. Quais catacumbas? Explique-mos, porque nelas nos criamos e elas nos criaram.

Simplificando muito a estória, a esquerda armada foi dizimada em 1971, com al-guns focos restantes. A partir daí, um longo caminho de reconstrução foi iniciado.

Não apenas de reconstrução, mas de redefinição. Na maior parte dos grupos, os militantes que ficaram no país e não tinham sido destruídos pela prisão, começou um giro para o “trabalho de massa”, em fábricas e bairros operários, sobretudo.

Lentamente, isso também chegou nos sindicatos, em que a vigilância policial era muito forte, marcação homem a homem. Essa reorientação, paciente, traba-lhosa, teve um associado valioso, determinante na oferta das catacumbas.

Capitalismo, classe trabalhadora e luta política no início do século XXI Experiências no Brasil, Estados Unidos, Inglaterra e França 110

Desde o começo dos anos 1960 a Igreja Católica passava por uma transforma-ção, um giro para os segmentos populares, para os pobres. Isto vinha ocorrendo fortemente desde os anos 1960, com João XXIII e o Concílio Vaticano II (1962), o encontro Episcopal de Medellín (1968), o crescimento das comunidades ecle-siais de base e as pastorais populares, fenômeno de massa nos anos 1970. Em São Paulo e nas cidades operárias periféricas, dezenas de padres progressistas começavam a fomentar a organização popular. Não apenas os padres operários, aqueles que se integravam nas fábricas, mas aqueles que dirigiam paróquias e capelas nos bairros periféricos.

Era algo essencial, que ia além da logística — locais, aparelhos de impressão (mimeógrafos) — envolvia a comunidade com valores e ideias baseadas em um sentimento genérico de solidariedade dos de baixo, de valores coletivistas. Essa rede dos nossos “padrecos” foi decisiva para a formação de ativistas e militan-tes, para a disseminação desses movimentos como algo legítimo, “natural” e não como atividade criminosa, carimbo que a ditadura tentou fixar na gente.

Várias vezes, nós dirigíamos a palavra à comunidade para falar de uma cam-panha salarial, uma greve, uma eleição sindical. Inclusive em missas, naquele momento em que se lia e explicava uma passagem do Evangelho. Muitos fizeram isso mesmo.

A reflexão sobre a vida de Jesus era substituída pela reflexão sobre os outros “fi-lhos de Deus”, os perseguidos e explorados do dia. Nunca será possível exagerar a importância desse componente — em que se soldou a cooperação entre cristãos e comunistas — na reconstrução do movimento operário e popular. E na modela-gem da nova esquerda.

É relevante indicar esse vetor até para destacar o que aconteceu quando ele dei-xou de existir ou perdeu força, no final da década. Em 1979, o novo papa, militan-temente reacionário, começou a obra de desconstrução dessa igreja progressista.

A ferro e a fogo. A sementeira de ideias, sentimentos e valores (e de militan-tes) era atacada em sua raiz. Como a natureza detesta o vácuo, o espaço foi ocu-pado por outros atores, agora não mais movidos pela Teologia da Libertação, mas pela chamada Teologia da Prosperidade, a versão supostamente religiosa de uma ideologia capitalista extremada, ultraindividualista e ultraconservadora.

Se nós caminhássemos pelos bairros populares, durante os anos 1970, en-contraríamos em todos eles uma paróquia ou uma capela — o que para nós, militantes, era um ponto de referência. Quase nenhuma igreja protestante se en-contrava, porque as igrejas protestantes eram, naquele momento, as tradicionais igrejas reformadas — metodistas, presbiterianos, anglicanos etc. — e estavam se-diadas, em geral, em bairros centrais ou de classe média.

Hoje, nesses mesmos bairros, para uma igreja ou paróquia católica encontra-mos uma dezena de locais de culto neopentecostais, com uma visão de mundo

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bem diferente. Para piorar o quadro, as igrejas do lucro foram à TV. Outra escola de política tinha sido debilitada. Uma outra, bem diferente, fora erguida.

A Teologia da Libertação recua, avança a Teologia da Prosperidade. A opção preferencial pelos pobres dá lugar ao “investimento” na fé: Deus quer ser seu só-cio, bote grana, pague o dízimo, obedeça, ele devolve graças. Deus é fiel.

Algumas igrejas pentecostais antigas crescem com essa reformulação, essa modernização – é o caso da Congregação Cristã do Brasil e Assembleias de Deus (fundadas no começo do século XX). Nascem outras, filhas típicas do vácuo e do terremoto das reformas neoliberais, do novo mundo de insegurança e incerteza promovido por tais reformas. Algumas delas são fundadas nessa ocasião, e se massificam.

Entre esses empreendimentos religiosos de grande porte destaca-se a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), capitaneada pelo bispo Edir Macedo e, hoje, a maior e mais emblemática representação do neopentecostalismo conservador.

Descendente do neopentecostalismo norte-americano, essa vertente originara--se em um pequeno galpão num bairro do Rio de Janeiro, em 1977. Em 1985 al-cançava já duas centenas de templos, em 15 estados do país. Em 1989, possuía milhares de centros e comprava a Rede Record, uma poderosa rede de rádio e TV, de âmbito nacional.

A IURD foi logo ladeada por um conjunto significativo de “coirmãs”e concor-rentes dentro do mesmo segmento do mercado de almas. Algumas delas eram dissidências que haviam rompido com a liderança de Edir Macedo. Foi assim que nasceu a Igreja Internacional da Graça de Deus (pastor R.R. Soares – cunhado de Edir), fundada em 1980 e “vanguarda” na organização de sistemas de tele--evangelismo. Depois veio a Igreja Mundial do Poder de Deus, capitaneada por Waldemiro Santiago (discípulo de Edir), fundada em 1998.

As denominações se multiplicaram, ramificaram, diversificaram. Reportagem de Marcos Grilo em O Globo mostra que “de janeiro de 2010 a fevereiro de 2017, 67.951 entidades se registraram na Receita Federal sob a rubrica de organizações religiosas ou filosóficas, uma média de 25 por dia”. Todas, quase sem exceção, mimetizavam o televangelismo norte-americano — e com ele mantinham rela-ções de cooperação e intercâmbio. O neoconservadorismo da Teologia da Pros-peridade, baseada no empreendedorismo individualista, começava a criar o solo ideológico para confrontar a Teologia da Libertação, coletivista e solidarista. O televangelismo vai bem além da compra da Record pela IURD. Muitos dos pasto-res se tornam proprietários de rádios. Algumas emissoras de rádio e TV vendem horários para as igrejas em escala cada vez mais ampla. Há quem diga que isso, hoje, praticamente garante a sobrevivência de algumas das emissoras.

Mas um cuidado deve-se tomar na caracterização dos templos: a igreja, tanto num quanto no outro caso, era mais do que um lugar de encontro com a

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sidade. Era uma referência essencial para milhões de indivíduos lançados em diferentes turbilhões sociais. Um desses turbilhões foi o processo de urbanização e migrações aceleradas nos anos do ‘desenvolvimentismo’, incluindo o desenvol-vimentismo militar do milagre econômico.

Outro turbilhão foi aquele do desmanche desse desenvolvimentismo e a ava-lancha das reformas neoliberais. As igrejas do ‘empreendedorismo’ não são ape-nas centros de difusão de crenças — são, para seus fiéis, pontos essenciais de redes de acolhimento, convivência e segurança social. É na igreja que muitas ve-zes esses cidadãos desestabilizados encontram redes sociais de socorro e orienta-ção. E as igrejas investem nessa estratégia de aproximação de captura das almas.

A igreja entrou na política? Não, ela sempre esteve aí, de um modo ou de outro.

Mudou o jeito ou a visão dominante.

Em 1979, a editora Brasiliense publicava um livro de Marcio Moreira Alves chamado A Igreja e a Política no Brasil, com prefácio de Frei Betto, expoente da chamada Teologia da Libertação no Brasil. O termo “igreja”, nesse estudo, sig-nificava, estritamente, Igreja Católica Apostólica Romana – e isso não suscitava qualquer estranhamento. Na bibliografia e documentação, a simples referência ao protestantismo aparecia em apenas dois estudos não publicados — e, mesmo assim, diziam respeito ao protestantismo dito mainstream.

Atualmente, qualquer estudo que tivesse título similar faria o leitor — mesmo o escassamente informado — pensar em outra direção: a avalanche neopentecos-tal, com a famosa “bancada da Bíblia” no Congresso Nacional. A data de publi-cação do livro não podia ser mais simbólica. Em torno das igrejinhas de bairros populares, nos anos 1970, haviam crescido variados movimentos e grupos: pas-toral operária, paspas-toral da saúde, clubes de mães da periferia, grupos de jovens, comunidades eclesiais de base e assim por diante. Essa seria a cementeira de grande parte dos fundadores do futuro Partido dos Trabalhadores (PT) e da Cen-tral Única dos Trabalhadores (CUT), no início dos anos 1980.

Se o mesmo observador voltar hoje aos mesmos bairros, ali encontrará nu-merosos templos evangélicos neopentecostais, redirigindo os desesperos e es-peranças da classe trabalhadora reconfigurada e fragmentada pelas reformas macroeconômicas neoliberais e pela reengenharia das empresas. E encontrará outra cementeira, agora de candidatos ultraliberais, neoconservadores. Uma eventual e elementar consciência de classe transformou-se em ressentimento de classe.