Aplicação no cenário hospitalar

Na abordagem interpretável de AM desenvolvida, o estágio de aplicação no cenário hospitalar objetiva prover acompanhamento gradativo da evolução do quadro clínico de um paciente ao longo da internação no que se refere aos fatores de flebotomia.

Acredita-se que este estágio pode beneficiar, futuramente, instituições médicas no embasamento das decisões que delineiam os protocolos adotados no curso da internação de um paciente. Assim, a fim de demonstrar a potencial aplicabilidade da abordagem de AM desenvolvida neste trabalho em cenários médico-hospitalares, apresentam-se dois estudos de caso construídos com pacientes do conjunto de dados do HC/Unicamp.

Será exemplificado o monitoramento simulado da internação desses pacientes quanto à aquisição ou agravamento de anemia. Dessa forma, torna-se possível observar, graficamente ao longo do tempo, o impacto progressivo dos atributos dos protocolos de flebotomia na saída do modelo de predição.

Os gráficos disponibilizados são, mais uma vez, baseados em valores SHAP, sendo capazes de representar como o modelo chegou a uma determinada predição ao quantificar, por meio de Teoria dos Jogos, a magnitude e a direção do efeito dos atributos nessa decisão de saída. Nesse tipo de gráfico, setas vermelhas representam impactos do atributo (valores SHAP) que aumentam o valor da

predição, enquanto setas azuis representam impactos que reduzem o valor da predição. O tamanho do intervalo correspondente ao atributo representa a magnitude do impacto do atributo na saída do modelo. O base value marcado em cinza no gráfico, indica a predição média do modelo sobre o conjunto de treinamento, enquanto o model output value indica a predição individual do modelo.

Na tentativa de diminuir interferências indesejadas nos resultados das predições, optou-se por conduzir análises onde as variáveis relativas à perda de sangue por flebotomia na internação estão o mais isoladas possível de fatores confundidores, também capazes de alterar o volume de sangue do paciente. Dessa forma, selecionou-se para os estudos de caso pacientes dos cenários 5 e 6, compostos por internações sem realização de cirurgias e transfusões. Nenhum dos dois pacientes selecionados tiveram óbito no período da internação.

Após selecionar os pacientes, implementou-se um janelamento semanal nos seus dados. Em seguida, percorreu-se o período da internação, de semana em semana, realizando-se predições de aquisição ou agravamento de anemia e exibindo-se no gráfico SHAP o impacto dos atributos na saída do modelo. Cada gráfico foi construído utilizando-se os dados acumulados até determinada semana.

O primeiro paciente é representante do cenário 5 (urgência + não cirurgia + não transfusão + entrada sem anemia). Sua trajetória no curso da internação, semana a semana, bem como a evolução do seu nível de HGB, é apresentada na Figura 22. Escolheu-se propositadamente um paciente que adquiriu anemia na internação, se recuperando posteriormente, para que pudesse ser exemplificado o impacto da flebotomia na saída do modelo, tanto na fase de queda do HGB (quando a quantidade e frequência de coletas estão altas) quanto na fase de elevação do HGB (quando a quantidade e frequência de coletas sofrem queda).

O segundo paciente é representante do cenário 6 (urgência + não cirurgia + não transfusão + entrada com anemia). Sua trajetória na internação, semana a semana, bem como a evolução do seu nível de HGB, é apresentada na Figura 23. Escolheu-se um paciente que agravou severamente no período da internação um quadro anêmico pré-existente, não conseguindo se recuperar até a alta médica.

Semana 1

Semana 2

Semana 3

Semana 4

Semana 1

Semana 2

Semana 3

Semana 4

Analisando-se a trajetória do primeiro paciente, Figura 22, observa-se uma queda de 2,4 pontos no nível de HGB, indo de 14,3 para 11,9 em 7 dias, caracterizando a aquisição de anemia ferropriva iatrogênica já na primeira semana de internação. No caso do segundo paciente, Figura 23, percebe-se uma queda acentuada de mais de 4 pontos durante a internação, caracterizando um agravamento na anemia pré-instalada.

Dos gráficos SHAP semanais, para os dois pacientes, observa-se uma relação expressiva (comprimento do intervalo relativo à variável) e consistente (frequência com que aparece como variável de maior impacto) entre a variável ‘qtd_coletas_sangue’ e a saída predita pelo modelo para aquisição ou agravamento de anemia. Nota-se que, em ambos os casos, a mudança mais abrupta na confiança do modelo para predizer estado anêmico adquirido ou agravado acontece da primeira para a segunda semana. Esse fato coincide com o salto observado na quantidade de coletas realizadas pelos pacientes. O segundo paciente, por exemplo, foi de 5 para 13 coletas. Ressalta-se que cada coleta pode ser composta por uma ou mais amostras (tubos) de sangue.

Portanto, pode-se afirmar que, para o modelo de classificação binária construído com o método XGBoost para predição de alterações anêmicas, é verdade que quanto maior a quantidade de coletas de sangue realizadas pelo paciente na internação, maior a chance dele desenvolver ou agravar quadro de anemia iatrogênica no hospital.

Alguns comentários clínicos podem ser tecidos acerca do tema explorado nessa demonstração de aplicação da abordagem interpretável de AM em cenários hospitalares.

Primeiro, ressalta-se que os impactos de uma anemia adquirida repentinamente se diferenciam de uma anemia adquirida ao longo de um tempo maior. Dessa forma, os riscos para o paciente de uma queda abrupta de HGB, mesmo que com uma recuperação posterior, não podem ser desprezados. Por exemplo, em geral, uma anemia de instalação mais rápida tem maior impacto cardiovascular, diferentemente de quando o paciente desenvolve anemia aos poucos – cenário em que o coração tem tempo de tentar se adaptar ao novo estado geral do corpo.

Segundo, destaca-se os perigos à saúde do paciente que a falta de oxigenação no sangue, instalada durante o período de baixa hemoglobina, oferece. Dentre esses perigos está a maior susceptibilidade a infecções e o risco de retardo na recuperação, a depender da criticidade do quadro clínico. Além disso, existe a possibilidade de interação entre o estado anêmico e o agravamento de outras comorbidades existentes.

Terceiro, ressalta-se o risco diferenciado aos pacientes portadores de doenças cardíacas submetidos a quedas abruptas de HGB, em especial os que apresentavam anemia pré-internação. Nesses pacientes, queda repentina de HGB pode ter efeito deletério grave, levando a uma debilitação acentuada do seu quadro clínico, com agravamento do estado anêmico e demanda por transfusão de sangue.

Por fim, cabe mencionar que uma queda de 3 pontos de hemoglobina já pode ser considerada clinicamente relevante. Por exemplo, para efeito de comparação, em pacientes com anemia crônica, a maioria dos medicamentos em estudo clínico tem como objetivo aumentar em 1 ponto os níveis de HGB do paciente. Já uma bolsa de transfusão, composta de concentrado de hemácias, aumenta em 1 a 1,5 ponto, sendo necessárias de 2 a 3 bolsas de transfusão para reverter o estado do paciente ao nível normal.

Nesse sentido, no caso do primeiro paciente analisado, apesar de anemias com HGB acima de 10 geralmente serem bem toleradas, não se pode refutar a hipótese de uma queda de 2,4 pontos, nesse espaço curto de tempo, poder contribuir para piora clínica. Por outro lado, no caso do segundo paciente analisado, que agravou anemia em mais de 4 pontos na internação, pode-se afirmar que, devido ao quadro anêmico pré-instalado somado ao diagnóstico de doença cardíaca, essa queda repentina no HGB, a níveis próximos de 8,5, pode ter efeito deletério, desencadeando insuficiência cardíaca, episódios de angina ou até mesmo infarto.

Diante do exposto, reforça-se a importância de se empregar especial atenção aos protocolos de flebotomia implementados nos setores de internação dos hospitais, uma vez que situações preocupantes como as expostas para os dois pacientes apresentados podem estar corriqueiramente acontecendo sem que os profissionais de saúde tenham total visibilidade sobre os fatos.