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7 A HOMEOPATIA COMO POSSIBILIDADE

9 PROBLEMATIZANDO UMA MEDICINA PARA O GOVERNO DE S

9.2 Apontamentos acerca de uma contribuição da Homeopatia

Há dois elementos básicos para a construção do pensamento Hahnemanniano: a incorporação metodológica do sistema vitalista e a construção do método terapêutico- experimental. O primeiro, a incorporação metodológica - em termos de semiologia e terapêutica - do sistema vitalista para a medicina, ocasionou fraturas em campos de saber: nem era mais a mesma medicina classificatória e nem era o mesmo vitalismo aristotélico. Na verdade, produziu um novo olhar sobre os dois tipos de conhecimento. Hahnemann propõe que a enfermidade se constitui de desarranjos dinâmicos (não materiais) de nossa

vida não material nas sensações e funções, isto é, desarranjos imateriais de nosso estado de saúde (HAHNEMANN, 1996, p.33). Na introdução de seu Organon da arte de Curar

(1996), escreve uma crítica à medicina de sua época que buscava extinguir a doença

através da remoção das (supostas) causas morbíficas materiais (HAHNEMANN, 1996,

p.27).

Nos conceitos desenvolvidos por Hahnemann, as enfermidades se manifestavam na expressão do conjunto sintomático do doente, através dos enunciados do que sente e observa em si, independente de onde estaria localizada a patologia e, nesse sentido, de certa forma, tributária de inspirações da medicina classificatória, assim chamada por Foucault (2004). Entendo que, para Hahnemann, o único guia seguro para conhecer uma enfermidade era ouvir o doente relatar sua verdade de adoecimento, sua historicidade singular, as contingências das condições físicas e psíquicas do sofrer, no âmbito do viver a enfermidade, a percepção de si na concomitância dos eventos que o levaram ao sofrimento, sem se preocupar em causas e efeitos lineares dos fenômenos. Por exemplo, para Hahnemann não importa se havia sintonia ou modo explicativo em termos de causa e efeito entre um transtorno emocional e um sintoma físico. Bastava ouvir a experiência vital do doente afirmando simplesmente a coexistência e contingência dos eventos na percepção do sujeito para atribuir significado potencial, singular e individual em sua historicidade. Nesse entendimento, observa-se que os fatores psíquicos, apesar de não serem de ordem causal, são elementos fundamentais na observação da singularidade do sujeito, ao perceber seu sofrimento e possíveis alavancas para a reorganização em suas relações vitais. Desse modo, Hahnemann apresentou uma transformação singular em termos históricos das abordagens clássicas tanto da medicina classificatória como dos vitalistas da época: conseguiu

evidenciar clinicamente e terapeuticamente o deslocamento da enfermidade para a totalidade percebida pelo doente em seu existir, no conjunto de sintomas perceptíveis enquanto experiência existencial, nas formas e modos de viver singular do indivíduo, de como se percebe nos atravessamentos dos efeitos das relações que estabelece no vir-a-ser, fonte não só de seu adoecer, mas sobretudo potência de sua capacidade de libertação para a realização do que chama de o mais elevado objetivo de nossa existência (HAHNEMANN, 1996, p.73-74).

Por exemplo, podemos considerar uma hipotética consulta de um paciente por crises sequenciais de sinusite, ora crônica e ora agudizada, associada a eventuais crises de broncoespasmo. Para a biomedicina, o tratamento instituído baseia-se em corticóides, antialérgicos e eventualmente antibióticos, além de afastar uns poucos fatores de risco, como o tabagismo. Diferentemente, no caso da abordagem homeopática, seria crucial, para o diagnóstico dinâmico, investigar o conjunto da condição existencial do sujeito que coexiste ao sofrimento físico, independente da causa e efeito. Para algum caso concreto, suponhamos que, para uma paciente mulher, em uma entrevista com perguntas abertas e não indutivas, no sentido único de deixar o doente falar de si como quiser e como acha que viveu seu adoecer, a investigação permite verificar que o momento da exacerbação de sua suscetibilidade individual iniciou-se indiretamente após o nascimento de seu primogênito filho. Para ela, as exigências de uma maternidade, subjetivadas por ela mais como obrigação social do que laço afetivo, podem determinar, inicialmente, uma sensação de antagonismo consigo mesma. Para esta paciente em especial, esta condição pode ter se transformada em motivo de muita angústia e tristeza. Irritabilidade e choro podem acompanhar o sofrer ao longo dos meses. A sensação de que não ama o suficiente seu próprio filho pode ser algo difícil de reconhecer perante os termos do que se considera maternidade na nossa sociedade. No decorrer dos meses, iniciam os processos de repetição nas infecções de vias aéreas superiores. Para o homeopata, não importa perseguir causas e efeitos, senão reconhecer concomitâncias e contingências no sofrer. Discernir essa condição em si mesmo depende da realização de um trabalho profundo de si sobre si e se dispor a uma transformação.

Contudo, o mais surpreendente em Hahnemann, é a construção do seu método terapêutico-experimental. A experimentação em si de um medicamento derivado da tinta da

lula, Sepia, que em sua patogenesia despertou sintomas semelhantes em seus experimentadores - certa dificuldade de expressar ou sentir afeto associado a sintomas de manifestações respiratórias, dentre outros - o médico, em seus estudos da matéria médica experimental, ou ao experimentar o medicamento e ao viver a experiência decorrente da perturbação experimental, vive o insight de que o medicamento, quando administrado a partir da semelhança dos sintomas, possui potencial de promover o alívio do doente.

Para a proposta que trago aqui, aponto para a possibilidade de se conhecer o sujeito doente e que o doente possa conhecer-se sujeito. Junto ao processo da anamnese realizado, abrir uma chance para que o paciente possa compreender de modo diferente seu processo de adoecimento, propor uma possibilidade de ressignificação deste, no sentido da construção de um novo modo de se governar em suas relações. Claro que nem tudo depende do medicamento ou do método homeopático em si. Torna-se importante, ao mesmo tempo, o diálogo e esclarecimento mútuo do processo terapêutico como um todo, realizado pelo médico e pelo paciente para possibilitar esse movimento. Seria na perspectiva de oportunizar uma significativa sensação de bem-estar, de conhecimento de si e de apontar uma transformação das práticas de si até então adotadas pelo sujeito, no sentido de uma possibilidade para o governo de si, para sua independência singular, construindo uma ética nova em suas relações pessoais e afetivas. Isso se faria possível se, no curso da terapêutica, as relações entre médico e paciente fossem construídas em uma lógica co-constitutiva do processo do tratamento, onde a verdade do tratamento estivesse no próprio processo e não incrustada no médico como fonte de poder/saber. Poderia se dizer que há a chance de que, assim, o sujeito possa conservar os fluxos e movimentos de seu estado de saúde, na medida em que permite viver seus processos existenciais, apropriando- se da verdade de si.

Por outro lado, para retomar nosso exemplo, suponhamos que esta paciente apresente o mesmo quadro clínico, que para a biomedicina não haveria muita transformação na abordagem terapêutica, mas na entrevista homeopática encontramos outro estado anímico. Mesmo na presença de secreção amarelada e espessa sendo eliminada pelas narinas, o que sugeriria quadro infeccioso, eventualmente a sensação materna fosse outra: a de estar negligenciando seu dever materno, sofrendo com solidão a carência afetiva. Nesse caso, apesar da mesma patologia, o medicamento homeopático seria outro, provavelmente

Pulsatilla, pois, na experimentação deste medicamento, o experimentador alterou sua experiência vital no sentido de subjetivar sensações de abandono, ao mesmo tempo em que, também, pode ter apresentado eliminação de muco amarelado pela narina. No conjunto, Pulsatilla tem o potencial de alterar a saúde do experimentador nesse sentido. O que para a biomedicina mostra-se como a mesma doença, para o médico homeopata, são doentes diferentes. E se fosse outro paciente ainda, que vivesse tal situação de modo irritadiço, contrariado e inseguro, poderia, talvez, receber Lycopodium, segundo o mesmo método de aplicação que regulou as outras prescrições. Em vista disso, o importante é que, para o homeopata, a enfermidade está sempre nos contextos existenciais. A oportunidade que se abre para o sujeito que adoece, tanto pela abordagem semiótica como pela medicação na Homeopatia, é de um processo de auto-observação nas relações que o perturbaram em seu devir existencial, possibilitando um ressignificar do viver nos termos de um autogoverno ético de si para si mesmo.

O segundo fator que sustenta o saber homeopático é a experimentação em si propriamente dita. Já observei a importância que Hahnemann atribui a ela e estabeleci uma possível relação desta prática experimental com o uso dos corpos, conforme já discuti e está em Agambem (2017). Em resumo, trata-se primeiramente da capacidade do experimentador de parar seu viver automático e diário para realizar um processo de observação de si, como vive, sente, percebe o universo que o rodeia, como se relaciona com ele, que efeitos produz e a que efeitos de poder está submetido, que papel cumpre nas relações que estabelece, o que fala e de que posição fala. Para este trabalho, é importante ressaltar o valor do que é observado enquanto registro das verdades de si, como em estreita correlação às práticas de

parresia helenísticas. É significativo observar que, em cada experimentador que

experimenta o mesmo medicamento, podem emergir diferentes alterações nas sensações e funções registradas, mas que o conjunto de todos os sintomas revelados pelos experimentadores demonstram a potencialidade do medicamento, um campo qualitativo de manifestações discretas e singulares para a ação terapêutica do remédio experimentado. Como um todo, constrói-se uma imagem medicamentosa variável, mas com presença de uma identidade medicamentosa perceptível em sua capacidade de alterar a saúde humana. Será através dessa imagem, dessa unidade variável, mas significativa - desde que assim seja também para o doente que se apresenta -, que se baseará o médico homeopata para a

prescrição medicamentosa. Esta condição permite que cada medicamento possa ser utilizado para diferentes condições clínicas e patológicas (do ponto de vista biomédico), uma vez que se resguarde, para a prescrição homeopática, a semelhança entre o que o experimentador sentiu no viver a experimentação e o que o doente sente no viver sua enfermidade.

No contexto da prática médica, importa a fidelidade do relato de si, seja no campo das manifestações físicas, como no das psíquicas (pensamentos, opiniões, crenças, sentimentos, emoções). Tais relatos, necessitam ser contextualizados no âmbito das relações vividas e no papel que o sujeito exerce nelas, para que o processo de aproximação à dinâmica vital ocorra progressivamente no curso do tratamento. Penso que tanto a escuta do caso de enfermidade, como o método experimental hanemanniano, associados ao princípio da semelhança, podem compor alguns dos alicerces para uma biopolítica vitalista. Voltada para o corpo existencial que se manifesta por intensidades e potencialidades, para além de seus órgãos, essa biopolítica vitalista possibilita algumas aproximações para o cuidado e governo de si no sentido da construção de corpos subjetivados, éticos consigo e com os outros.