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6 SERÃO POSSÍVEIS ESPAÇOS PSÍQUICOS CORPORIFICADOS EM INTENSIDADES? TRAÇANDO CAMINHOS PARA UMA BIOLOGIA DA

6.3 Deleuze e o Corpo sem Órgãos

No entanto, mesmo reconhecendo possibilidades nessa concepção de uma biologia sistêmica, é através de outro referencial teórico alicerçado na corrente da desconstrução do corpo biológico que Deleuze irá problematizar, partindo de um diferente ponto de vista, a noção do corpo composto de órgãos. Ele argumenta que o corpo “é um exercício, uma experimentação inevitável, já feita no momento em que você a empreende (...) não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas.” (DELEUZE, 2012, p. 9). Na inversão da biomedicina que se fundamenta nos órgãos ele pergunta “Será tão triste e perigoso não mais suportar os olhos para ver, os pulmões para respirar, a boca para engolir, a língua para falar, o cérebro para pensar, o ânus, a laringe, a cabeça e as pernas?” (DELEUZE, 2012, p. 11). Desse modo, ele preconiza o fato de que quando vemos e respiramos o fazemos em pura intensidade do viver sem discernir órgãos em funcionamento. Afirma, nesse sentido, que órgãos são “significâncias e subjetivações” (DELEUZE, 2012, p. 12), ou seja, verdades construídas no exercício de saberes que anatomizaram e repartiram o corpo atravessando as subjetividades nas relações de saber e poder. Sustenta que o corpo sem órgãos

só pode ser ocupado, povoado por intensidades. Somente passam e circulam (...),se define por eixos e vetores, gradientes e limiares, tendências dinâmicas com mutações de energia, movimentos cinemáticos (...), tudo isso independente das „formas acessórias‟, pois os órgãos somente aparecem e funcionam aqui como intensidades puras. (DELEUZE, 2012, vol. 3, p. 14).

Deleuze também pondera que o corpo sem órgãos “não se opõe aos órgãos, mas a essa organização dos órgãos que se chama organismo” (DELEUZE, 2012, p. 21). Mesmo que os órgãos possibilitem a existência de corpos, a experimentação corporificada do viver em suas “maneiras de ser ou modalidades como intensidades produzidas, vibrações, sopros” (DELEUZE, 2012, p. 20) caracterizariam o corpo como um processo, um vir–a-ser

de experiências e de qualidades e que esse organismo estruturado em órgãos seria, então, “um estrato sobre o corpo sem órgãos.” (DELEUZE, 2012, p. 21). Para Deleuze, o corpo é um campo permeado por vetores existenciais e sensações que, ao ser abordado por verdades que o objetivam pela anatomia, acaba se estruturando em componentes organizados. As visões de corpo terminam por oscilar “entre dois pólos: de um lado as superfícies de estratificação (...) e por outro o plano de consistência no qual ele se desenrola e se abre à experimentação” (DELEUZE, 2012, p. 21), ou ainda, “o CsO [corpo sem órgãos] não para de oscilar entre as superfícies que o estratificam e o plano que o libera.” (DELEUZE, 2012, p. 23).

Deleuze refere três estratos de coagulação ou materialização do corpo: o organismo, a significância e a subjetivação. No seu ponto de vista, seriam estratos de materialização aqueles em que o corpo será articulado no sentido do enquadramento às verdades produzidas pela biomedicina em que a subjetivação será reduzida ao orgânico. Ele contrapõe essa interpretação a uma perspectiva de um corpo que se abre “a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidades, territórios e desterritorializações” (DELEUZE, 2012, p. 22) que permeiam o corpo sem órgãos praticado na experiência do viver. Deleuze reafirma que o corpo sem órgãos

experimenta (...) [a] busca [de] eventuais movimentos de desterritorialização (...) [para] vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar (...) contínuos de intensidades (...) conectar, conjugar, continuar (...) o CsO se revela pelo que ele é, conexão de desejos, conjunção de fluxos, continuum de intensidades. (DELEUZE, 2012, p. 24).

O corpo é concebido, portanto, como experimentação da vida, das relações que estabelece, dos jogos e dos agenciamentos que produz e aos quais é submetido. Em outras palavras, um corpo que “não para de se fazer.”(DELEUZE, 2012, p.27).

Tais observações têm me movido a pensar o corpo e a subjetivação como efeitos que ocorrem no agenciamento e na contextualização dos corpos, assim como nas forças dos espaços intersubjetivos, e na sustentação de práticas falantes não redutíveis às estruturas cerebrais. Configurar-se-ia, também nessa circunstância, a constituição de um “eu” que não seria produto de uma psique pré-estruturada; em outras palavras, que a subjetivação seria efeito de práticas geradas nos espaços psíquicos constitutivos da intersubjetividade no observar a si e aos outros, um corpo cuja realidade seria um padrão de configurações que

emergiriam como efeito de um saber no fazer cognitivo humano e, portanto, não se constituiriam como realidade objetiva e invariante. Tratar-se-ia de uma realidade entre aspas onde as verdades produzidas fariam parte de jogos dos agenciamentos de saberes, em contínuo movimento e transformação. Que os corpos, se concebidos como redes moleculares flexíveis que se transformariam continuamente a si mesmos e poderiam ser considerados como corpos que vivem na experiência do viver: corpos sem órgãos.

Enfim, proponho uma construção de novas e diferentes hipóteses sobre o corpo, a mente e a subjetivação que rompa e desterritorialize a objetividade, que reterritorialize a noção de corpo e volte para um tipo que seja produzido num permanente devir de suas relações com o meio, vivido na experiência e relatado nela, em uma prática de vida que se realiza e que se sujeita. Aponto para a compreensão de que tais práticas exercidas pelo sujeito corporificado na experiência de um corpo sem órgãos em conjunto com o observador possam, enfim, exercer um tipo de cuidado, uma ética e, talvez, uma prática de liberdade sobre si mesmo, no sentido de uma prática de resistência frente ao corpo orgânico como forma de poder/saber. Busco a construção de outro saber em medicina para que haja o “acesso do sujeito a um certo modo de ser e às transformações que o sujeito deve operar em si mesmo para atingir” (FOUCAULT, 2004, p. 279) um outro viver ético consigo e com os outros, na conservação de movimentos e fluxos vitais saudáveis. Ou seja, configurar uma produção de práticas médicas de respeito e legitimidade à diversidade das relações humanas, uma produção de um tipo de cuidado que inclua a mente e o corpo como unidade existencial e na constituição de outras relações de saber/poder que atravessariam o conjunto das atividades sociais e que poderia definir outros conceitos de enfermidade para além dos órgãos, no sentido de que possam ser exercidas práticas terapêuticas e médicas com responsabilidade ética e consciente nas regras de produção de verdades sobre si.