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2.2 TRABALHO DOCENTE EM DEBATE

2.2.3 Apontamentos sobre a reconfiguração da profissão docente no Brasil

É a partir do decênio de 1980 que a profissão docente ganha destaque nas discussões políticas aqui no Brasil, uma vez que o professor aparece como um dos protagonistas das mudanças ensejadas naquele momento político, tanto na qualidade do ensino como na democratização da sociedade. É no bojo das mudanças e reformas que vão se instalando a partir daquele momento político que o debate nacional em torno dessa profissão se intensifica, de modo que, por exemplo, o marco regulatório vai surgir e dar maior visibilidade à questão.

Um marco regulatório importante para a profissão docente e sua formação no Brasil foi a LDB n.º 9.394/1996 que, segundo Weber (2003), associa de uma vez por todas a escola e a atividade docente na tarefa de ensino e aprendizagem, “induz a delimitação de uma área de jurisdição, ao mesmo tempo, que estabelece os marcos

orientadores dos projetos de formação de uma atividade que se tornou essencial à sociedade brasileira” (p. 1132). Ou seja, tal legislação indica a escola como lócus privilegiado para a tarefa de ensinar e aprender, assim como vai demarcar elementos obrigatórios para a realização dessa tarefa.

No entanto, no decênio de 1990 surgem diferentes reformas sociopolíticas que vão incidir, também, sobre a educação e as escolas. Os professores vão ser tratados como agentes centrais dos Programas de mudança, muito de cunho gerencialistas e com marcas de responsabilização, pois “[...] são considerados os principais responsáveis pelo desempenho dos alunos, da escola e do sistema, tendo sobre suas costas a responsabilidade pelo êxito ou fracasso dos Programas” (OLIVEIRA, 2010, p. 25).

A LDB (Lei n.º 9394/96), como já referido anteriormente, traz legalmente contribuições à profissão docente, à medida que regulamenta o trabalho docente com a exigência de uma formação mínima inicial, possibilitando a delimitação de sua área de jurisdição e os possíveis projetos de formação inicial, continuada, regularização da carreira, entre outros aspectos. A aprovação da Lei n.º 12.014 de 6 de agosto de 2009, que altera o art. 61 da LDB, teve a intenção de discriminar as categorias de trabalhadores que se devem considerar profissionais da educação, e com isso ampliou-se a definição dos profissionais da educação escolar básica4.

A alteração do termo "trabalhadores da educação" para "profissionais da educação", de acordo com o documento da Conferência Nacional de Educação – CONAE 2010, traz uma mudança de significado. O primeiro termo está voltado para uma categoria teórica que traz uma definição de classes sociais; já o segundo termo está voltado para aqueles que atuam na educação, mas não se sustenta obrigatoriamente na perspectiva de classe. A ideia aqui exposta é a busca pela superação da divisão social existente no trabalho da educação. Entretanto, de acordo com Oliveira (2010) a mudança na nomenclatura destinada aos profissionais não elimina a divisão de classe existente entre os profissionais da educação, tendo em vista que são diferentes: os níveis

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Art. 61. Consideram-se profissionais da educação escolar básica os que, nela estando em efetivo exercício e tendo sido formados em cursos reconhecidos, são:

I- professores habilitados em nível médio ou superior para a docência na educação infantil e nos ensinos fundamental e médio;

II- trabalhadores em educação portadores de diploma de pedagogia, com habilitação em administração, planejamento, supervisão, inspeção e orientação educacional, bem como com títulos de mestrado ou doutorado nas mesmas áreas;

III- trabalhadores em educação, portadores de diploma de curso técnico ou superior em área pedagógica ou afim.

de formação, a carreira, a remuneração, a carga de trabalho, etc. Para a autora, a divisão do trabalho continua, uma vez que “A separação entre professores e especialistas e os demais trabalhadores da escola pode ser atribuída ao fato dos primeiros possuírem maior titulação e receberem melhor remuneração” (OLIVEIRA 2010, p. 29).

Ainda, tal alteração legal suscita o debate sobre a identidade profissional, uma vez que são incluídos outros profissionais que não estão diretamente envolvidos no processo de ensino e aprendizagem. De acordo com Oliveira (2010)

[...] são os especialistas e os professores, em geral, os responsáveis pela atividade-fim da escola, o que nos leva a indagar se de fato é possível pensar em uma identidade docente que inclua os que não estão diretamente envolvidos com os processos de ensino e aprendizagem (p. 29).

A mudança do referido artigo traz questionamentos e discussões distintos. Por um lado, todos os profissionais envolvidos no contexto escolar passam a ser considerados “profissionais da Educação”, podendo desfrutar de um status profissional e de possíveis benefícios das políticas educacionais. Por outro lado, cria-se a discussão acerca da identidade docente: estes são, afinal, os responsáveis pelo trabalho efetivo com os alunos, para tal possuindo uma formação específica, o que possivelmente induz um status profissional diferenciado e que pode entrar em crise, à medida que se incluem os “leigos” nesse processo.

Os impactos das reformas educacionais no Brasil para a profissionalização docente podem ser responsáveis pela alteração de duas faces importantes do trabalho docente, no que concerne ao objeto do trabalho e no que tange à organização do trabalho. Oliveira (2010), aponta que:

Esse caráter flexível das ocupações chega à escola de duas formas: no objeto dos docentes – eles terão que adequar seu trabalho às exigências atuais, já que formam a força de trabalho para esse mundo em mudança; e na organização do seu próprio trabalho – que também tende a adotar cada vez mais o caráter de maior flexibilidade e autonomia que o trabalho em geral assume (p. 32).

Outro fenômeno marca o período de reformas no Brasil, o da desprofissionalização do trabalho docente, pois começa a circular “[...] a ideia de que o que se faz na escola não é assunto de especialista, não exige um conhecimento específico e, portanto, pode ser discutido por leigos e praticado por voluntários” (OLIVEIRA, 2010, p. 26). Esta segunda situação tem sido tratada por pesquisadores e pelos próprios professores como processo de desprofissionalização do trabalho docente,

à medida que se transfere para leigos a prática de uma profissão. Esse movimento está atrelado ao modelo neoliberal de administração pública que advoga a necessidade do Estado dividir as responsabilidades pela educação das crianças com a sociedade civil. Consiste também na abertura para a atuação da iniciativa privada no setor público educacional.

Segundo Oliveira (2010), “As variadas campanhas em prol da educação para todos que apelam com frequência ao voluntariado têm promovido a desprofissionalização do espaço escolar” (p. 26). Com a abertura constante do espaço escolar aos “leigos” caminha-se ao contrário do objetivo de tornar o trabalho escolar profissional. Esta é uma ambivalência trazida ao contexto do trabalho docente, tendo em vista que se existem formas mais flexíveis e autônomas na organização do trabalho, em contrapartida é retirado o poder e o controle desse grupo profissional sobre as atividades de aprendizagem escolar.

Oliveira (2004) também chama a atenção para a flexibilidade no trabalho docente, e nos diz que os ideais de flexibilização atingem a organização escolar, tanto na estrutura curricular quanto nos novos processos avaliativos, o que vai exigir um novo

perfil de trabalhadores docentes. Com isso há necessidade de aproximar-se do “chão da

escola para compreender as mudanças que de fato ocorrem no cotidiano docente” (Idem, p. 1139). Na busca por entender as mudanças no trabalho docente a autora, em suas pesquisas, tem observado que

[...] os trabalhadores docentes se sentem obrigados a responder às novas exigências pedagógicas e administrativas, contudo expressam sensação de insegurança e desamparo tanto do ponto de vista objetivo – faltam-lhes condições de trabalho adequadas – quanto do ponto de vista subjetivo (Idem, p. 1140).

As mudanças no contexto educativo implicam um processo de precarização do trabalho docente, à medida que o trabalho pedagógico é reestruturado sem, contudo, serem oferecidas adequações necessárias, tanto nas condições físicas e materiais, quanto na preparação e formação destes profissionais para lidar com a diversidade de situações às quais estão expostos.

Os estudos de Assunção e Oliveira (2009) apontam que as reformas e as novas demandas do contexto educativo “[...] trouxeram um maior contingente para o sistema educativo e maior complexidade das demandas apresentadas à escola” (p. 366) e por consequência a intensificação do trabalho docente. A intensificação é aqui entendida

através do processo de democratização da escola que se dá por meio da massificação do ensino. E para as autoras essa reorganização escolar trouxe a urgência de novas funções e a reconfiguração das funções dos professores.

Nas produções acadêmicas recentes o conceito intensificação diz respeito a “[...] jornada de trabalho de ordem intensiva (aceleração na produção num mesmo intervalo de tempo) e extensiva (maior tempo dedicado ao trabalho)” (MANCEBO, 2007, p. 470). Nesse sentido existe “[...] aumento do sofrimento subjetivo (em alguns textos trabalhado como burnout); (além da) neutralização da mobilização coletiva e aprofundamento do individualismo competitivo” (Idem, p. 470). Assim, podemos inferir que a intensificação pode ser visivelmente notada no processo do trabalho docente ou mesmo acontecer de forma velada, à medida que não gera uma carga de trabalho imediata, sendo identificada por um sofrimento subjetivo. Este “[...] processo de intensificação do trabalho vivido pelos docentes das escolas públicas brasileiras na atualidade pode, além de comprometer a saúde desses trabalhadores, pôr em risco a qualidade da educação e os fins últimos da escola” (ASSUNÇÃO e OLIVEIRA, 2009, p. 357).

Entretanto, vale salientar que não é apenas a massificação do ensino que proporciona a reconfiguração do trabalho docente. Podemos dizer que as novas formas de gestão adotadas nas políticas educacionais no decorrer das reformas educativas, são fatores que vão impactar e causar constantes mudanças no trabalho docente, tais como: incorporação de novas funções e responsabilidades; maior supervisão/controle de suas atividades; aumento das atividades na jornada de trabalho (OLIVEIRA e VIEIRA, 2014). Atualmente, vemos crescer o debate sobre a qualidade educacional que ganha, a cada dia, novos contornos. As avaliações e a adoção de índices sintéticos educacionais tem sido um dos destaques das políticas recentes e vem impactando no trabalho docente.

A vinculação das avaliações do desempenho estudantil à bonificação dos profissionais da educação é uma das estratégias utilizadas por diferentes governos estaduais e municipais pelo Brasil, pautados num discurso voltado para a melhoria educacional. Evangelista & Valentim (2013) tratam este assunto usando o termo

remuneração variável por desempenho. Segundo os autores, a vinculação da avaliação

ao bônus (remuneração variável) “[...] parece representar uma mudança significativa para o trabalho (e para a vida) docente, impactando a prática destes profissionais, que

até então recebiam remunerações fixas, independente de qualquer aspecto ligado à sua produtividade” (Idem, p. 1001).

Ao abordar a introdução da remuneração variável por desempenho em algumas prefeituras e estados, as autoras analisam em que medida esse novo modelo de gestão da remuneração docente pode estimular sentimento de culpa e o controle dos docentes, o que pode ser entendido como estratégia de responsabilização. Além disso, as autoras destacam a ascensão de estratégias administrativas oriundas da iniciativa privada e do campo empresarial sendo empregues nas escolas.

Uma questão gritante que este estudo aponta é justamente a importação de técnicas e ferramentas da Administração privada, voltada exclusivamente para os valores capitalistas, para o mundo da Educação e, mais precisamente, para a própria remuneração dos professores (Idem, p. 1013).

Considera-se nesta discussão ao menos dois aspectos: o primeiro, o fato de o sucesso e fracasso escolar estar ligado aos resultados dos alunos nas avaliações; o segundo, o fato de os professores serem apontados como responsáveis pelo sucesso e o fracasso dos alunos perante as avaliações. Para os autores existe uma culpabilização incutida aos docentes, servindo como causa e instrumento de controle, que,

[...] na medida em que ajuda a construir o autocontrole nos professores, fazendo com que possam vir a desenvolver comportamentos, atitudes e modos de sentir, viver e trabalhar centrados apenas nos valores desejados para que os objetivos estabelecidos sejam atingidos (EVANGELISTA e VALENTIM, 2013, p. 1014).

Trata-se, portanto, de uma reconfiguração das ações docentes, que mudam seus discursos em favor dos mecanismos de controle exercidos pelo Estado, voltando suas ações para atingir os objetivos traçados, tendo bons desempenhos nas avaliações e índices, sejam eles Municipais, Estaduais ou Nacionais.