4. APRECIAÇÃO MUSICAL: O LUGAR DA ESCUTA NA APRENDIZAGEM
4.2 Apreciação musical como processo de significação da música
Estabelecer, de maneira objetiva, uma definição que abranja a
complexidade da experiência musical é tarefa difícil mas fundamental para a
educação musical, pois é da compreensão dessa experiência que derivam as
concepções de extensão e amplitude das atividades educativas relacionadas à
disciplina de música (Lazzarin, 2004).
As pesquisas têm demonstrado que a experiência musical tem início
mais cedo e é mais complexa mesmo para o leigo, ou seja, aquele que não tem
o conhecimento musical sistematizado, do que se pensava há algumas
décadas. O desenvolvimento musical pré-natal já é investigado, partindo da
consideração de que algumas habilidades musicais poderiam ser aprendidas
antes do nascimento, na medida em que o feto se familiariza com os padrões
sonoros do corpo de sua mãe e os associa com estados físicos e emocionais
dela (Parncutt, 2006).
O desenvolvimento da pesquisa com crianças tem evidenciado que elas
vão além de critérios mínimos para a percepção musical, sendo capazes de
reconhecer melodias em transposição e se mostrando adaptadas aos padrões
consonantes, tanto melódicos quanto harmônicos, e à métrica dos ritmos
(Trehub, 2003). Tais conclusões evidenciam habilidades musicais que se
desenvolvem a partir da exposição à música, e o alcance que essa atividade
tem no desenvolvimento humano.
A diferenciação entre experiência musical e conhecimento musical
começa a ser delineada a partir das pesquisas sobre o conhecimento implícito.
Como destaca Meyer (1956), ouvir música é natural, mas pensar sobre música
não. Para Sloboda (2008), a diferença entre um leigo e um músico está na
consciência da operação mental, com os leigos possuindo o conhecimento
implícito daquilo que o músico pode falar explicitamente.
Tais pesquisas reforçam a ideia de que o ser humano se apropria de
conhecimentos musicais de maneira implícita mediante a experiência musical.
Contudo, resta ainda o desafio da compreensão do processo de apropriação do
conhecimento musical e das formas de proporcioná-lo, objeto de investigação
da área da educação musical.
No contexto da educação musical no ensino superior, por exemplo, a
disciplina de percepção musical vem sendo discutida por revelar concepções
que não levam em conta o processo de desenvolvimento da percepção através
da música e que valorizam ainda quase que exclusivamente os aspectos
técnicos relativos aos materiais da música, numa forma restritiva de avaliação
(Barbosa, 2009; Grossi, 2001).
Para Benedetti e Kerr (2010) a educação musical é assumida como um
espaço social mediador entre as práticas musicais cotidianas e as escolares,
cujo objetivo não é impor práticas musicais, mas “tornar-se um espaço de
geração de novas carências e motivações musicais nas crianças, de educação
estética formadora e transformadora do ser humano.” (p.72).
No âmbito da educação e da educação especial, pesquisas atuais vêm
destacando a vertente histórico-cultural como uma teoria relevante (Facci, Eidt
& Tuleski, 2006, Pimentel, 2008, Daniels & Hedegaard, 2011), o que também
vem sendo encontrado em estudos sobre o desenvolvimento musical
(Bamberger, 2006; Schroeder & Schroeder, 2011).
Na área da educação musical, como já foi observado, o estudo
sistemático das práticas musicais informais é recente (Oliveira, 2007; Del Ben,
2003) e até pouco tempo a relação entre as práticas formais e informais era
tido como conflituoso. Benedetti e Kerr (2010) observam que, tomada a
perspectiva histórico-cultural, tal conflito deixa de existir, pois essas práticas
deixam de estar em oposição para assumir diferentes papéis dentro de um
mesmo processo formador.
Para realizar a aproximação da Psicologia histórico-cultural da área da
educação musical, retomar-se-á princípios fundamentais da teoria de Vigotski2.
Lev Semyonovitch Vigotski nasceu em 1896, na cidade de Orsha,
Bielorrússia, e iniciou sua carreira como psicólogo após a Revolução Russa,
em 1917. Em meio a um momento histórico de crítica das teorias psicológicas
existentes, que não forneciam bases firmes necessárias para o
estabelecimento de uma teoria unificada dos processos psicológicos humanos,
Vigotski (2007), construiu sua teoria com forte influência da filosofia marxista.
A teoria marxista propõe que mudanças históricas na sociedade e na
vida material produzem mudanças na própria natureza humana, e Vigotski foi o
primeiro a correlacionar tal proposta a questões psicológicas. Partindo do
princípio de que ao se engajar no trabalho o homem não só transforma a
natureza como também a si mesmo, Vigotski propõe que ao se engajar na
relação com instrumentos psicológicos, o homem também transforma seus
próprios processos sociais e pensamento (Wertsch, 1981). Instrumentos ou
ferramentas psicológicas são formações artificiais (sociais, não orgânicas ou
individuais), direcionadas para controlar o comportamento (próprio ou do outro),
da mesma forma como as ferramentas técnicas são direcionadas para o
controle de processos naturais (Vygotsky, 1981a).
Ao tratar dos conceitos de desenvolvimento e da aprendizagem, Vigotski
(2007) distingue as correntes psicológicas até então existentes em três
posições teóricas. A primeira estabelece que desenvolvimento e aprendizagem
são processos independentes, a qual Vigotski relaciona à teoria de Piaget.
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