CAPÍTULO 2 – OS ARTIGOS DA TESE
2.2 A APRENDIZAGEM DE REGRAS DO SISTEMA MATEMÁTICO
2.3.4. A aprendizagem do uso das palavras
Este artigo tem como objetivo compreender uma específica aprendizagem
matemática, a aprendizagem dos usos que orientam as palavras mobilizadas em uma aula de
matemática que possui como sistema normativo, o sistema matemático escolar. Denominamos
de sistema matemático escolar, um conjunto regrado de usos da linguagem relacionado a uma
particular forma de vida, abordado no contexto escolar com status de disciplina.
Contudo, a aprendizagem matemática não se restringe ao aprendizado do uso das
palavras. Muitos outros usos regrados da linguagem envolvem esse aprendizado como: a
aprendizagem da maneira de formular perguntas, de como os alunos devem organizar as
respostas dos problemas na folha de anotações, a aprendizagem da estrutura de abordagem
dos assuntos em matemática (geralmente a estrutura é de conteúdos e exercícios),
aprendizagem de que momentos formular perguntas ao professor ao longo das aulas, etc.
Nessa direção, os estudos de Sfard (2007, 2008) apresentam alguns entendimentos
sobre a dinâmica que envolve a aprendizagem matemática no contexto escolar. Em particular,
suas considerações se referem à aprendizagem de uma específica produção discursiva, a qual,
a autora denomina de matemática
59.
Sfard (2007, 2008) argumenta que os alunos no contexto da aprendizagem, atribuem
usos às palavras que são distintos dos usos relativos ao sistema matemático escolar, o qual a
autora denominou de usos do dia a dia. Esses usos não são compatíveis com o uso do sistema
matemático escolar, pois são orientados por regras distintas deste, segundo Sfard (2007,
59 Sfard (2008) possui um entendimento discursivo de matemática escolar, pois a concebe como sendo as falas e as escritas dos sujeitos sobre objetos matemáticos. Por conta disso, a autora denomina a matemática escolar de discurso matemático escolar. Não adotamos tal entendimento, mas utilizamos algumas de suas definições relativas à aprendizagem matemática, pois elas correspondem ao aprendizado de uso de palavras.
2008).
Por conta disso, a autora destaca que o aprendizado das regras referentes aos usos das
palavras peculiares à matemática escolar ocorre por meio de um conflito, denominado de
“conflito commognitivo
60” (SFARD, 2008, p. 256, tradução nossa). Esse conflito é dirimido
quando os alunos modificam as regras que orientam o uso de suas palavras para as regras
relativas ao sistema matemático escolar, usando nossa nomenclatura.
Essa delimitação de Sfard (2008), inicialmente, indica-nos que uma mesma palavra
pode ser usada em diferentes sistemas, ancorados em diferentes formas de vida, portanto a
peculiaridade do uso de certas palavras a determinados sistemas é atribuída ao uso, é o uso
que pode ser identificado como uso peculiar ao sistema matemático escolar ou não.
Todavia, entendemos que quando em âmbito escolar, essas diferenças se façam
explícitas, ou seja, o professor identifique que os alunos estão atribuindo às palavras usos
vinculados a outros sistemas, ou simplesmente, observe que determinada palavra possui
outros usos possíveis em ambientes não escolares, que essas diferenças sejam diagnosticadas
e relatadas aos alunos.
Diante disso, não julgamos que um determinado uso às palavras deve ser substituído
por outro, conforme aponta Sfard (2008). Compreendemos que esse momento pode se
constituir como uma delimitação dos usos, no sentido de esclarecimento a respeito de quais
usos são peculiares a determinados sistemas e úteis às finalidades interiores às formas de vida
as quais esses sistemas se ancoram.
Contudo, predominantemente, o aprendizado matemático na escola corresponde ao
aprendizado de um único sistema, o sistema matemático escolar. Esse sistema não é, por
vezes, aquele adotado como modelo em ambientes não escolares e possui o contexto escolar
como lócus primário de sua aprendizagem.
Por conta dessa peculiaridade, Sfard (2008) destaca que os alunos iniciam a sua
aprendizagem da matemática escolar, imitando os usos das palavras que são atribuídos pelas
pessoas que já atribuem às palavras usos que são tidos como legítimos naquele contexto
escolar. Imitar tais usos é atribuir às palavras os mesmos ou semelhantes usos que essas
pessoas atribuem. Denominamos de usos legítimos de palavras, os usos relativos ao sistema
60 A designação commognitivo corresponde à versão em língua portuguesa do neologismo commognitive criado por Sfard (2008). Tal neologismo representa a junção dos termos comunicação e cognição, escritos em língua inglesa. Para a autora, a junção desses termos, busca evidenciar o seu entendimento de que os fenômenos cognitivos, como a atividade de pensar, por exemplo, são fenômenos comunicativos. O pensamento é uma comunicação consigo mesmo, considera a autora.
adotado como modelo, em determinado espaço físico
61.
A justificativa para que os alunos imitem os usos atribuídos pelo professor ou autor
do livro didático, por exemplo, deve-se ao fato de esses usos já serem adotados
historicamente. Nas palavras de Sfard (2008, p. 287, tradução nossa), os alunos devem
identificar que “se as pessoas estão falando o que elas fazem, elas devem ter boas razões.
Além disso, elas já têm feito isso por longo período até hoje”, ou seja, os alunos devem adotar
o sistema matemático escolar tal qual está elaborado, em função de haver razões, embora não
explícitas, pelas quais a adoção desse sistema é relevante.
Essa é a razão sustentada por Sfard (2008) para o fato de os usos atribuídos às
palavras pelo professor devem ser tidos como discurso líder, ou seja, discursos pelos quais os
alunos devem seguir. Diante disso, podemos dizer que autora aponta que o seguir as regras
que regem os usos das palavras do professor ou de alguém cujos usos são legítimos, deve ser
um seguir somente porque as pessoas têm atribuídos esses usos dessa maneira, ou seja, é um
seguir sem análises e reflexões sobre tais porquês e sem avaliações acerca das finalidades dos
usos das palavras.
Esse seguir sem análises é o que justifica os alunos recorrerem ao professor
frequentemente, para julgarem se os seus usos estão sendo usos legítimos. Sfard (2008, p.233,
tradução nossa) denomina essa situação de “substanciação”. Entretanto, para a autora, a
substanciação ocorre somente quando os alunos ainda não identificam quais usos das palavras
são usos legítimos. A ausência desse questionamento ao professor é um parâmetro indicador
da aprendizagem matemática dos alunos.
No entanto, Sfard (2008) admite que a opção dos alunos pela atribuição dos usos que
os professores fornecem às palavras é um assunto que envolve “relações de poder” (SFARD,
2008, p. 283, tradução nossa). A autora relata que essa relação de poder é constatada em
virtude da posição historicamente estabelecida e não questionada atribuída ao professor, como
indivíduo cujos discursos, ou especificamente, os usos das palavras são usos legítimos e são
os usos que os alunos devem adotar como modelo.
Para nós, essa relação de poder não se estabelece somente, em virtude da posição
historicamente estabelecida e atribuída ao professor de matemática na dinâmica da
aprendizagem matemática, mas, sobretudo, em função da legitimidade que alguns usos
atribuídos às palavras possuem em um determinado contexto espacial. No contexto
matemático escolar, é o sistema matemático escolar adotado como único legítimo, enquanto
61 A legitimidade de um sistema está frequentemente relacionada ao contexto espacial em que tal sistema é tido como modelo.