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Apresentação dos Capítulos

APRESENTAÇÃO DOS CAPÍTULOS

“Aquele que não sabe o que se passa recorda para salvar a interrupção de seu relato, pois não é de todo infeliz aquele que pode contar a si mesmo a sua história”.

María Zambrano

Cada capítulo dessa dissertação corresponde a uma das etapas (descoberta do objeto da pesquisa, laboratórios de improvisação, laboratórios de criação dirigida, vivências cênicas, construção da dramaturgia cênica e reflexão sobre o processo) vivenciadas durante a pesquisa.

Assim, cada etapa contempla as estratégias de investigação corporal determinantes daquele momento, uma série de conceitos e autores para sustentar as práticas corporais, reflexões acerca do que se fora experimentado - só ou em parcerias - e, inspirações e referências artísticas que, assim como os impulsos internos, nortearam cada uma das etapas.

A pesquisa foi dividida em quatro momentos:

- Laboratório de Improvisação (trabalho solitário de reconhecimento de memórias corporais e simbologias do/no corpo e posterior estudo do material expressivo);

- Laboratório de Criação (trabalho dirigido de reconhecimento das modelagens8 dos corpos cênicos e também, diferentes vivências cênicas a fim de iniciar a construção de uma linguagem própria);

- Criação da dramaturgia cênica (diálogo entre os corpos modelados e elaboração de uma narrativa fiel às experiências vivenciadas durante a pesquisa).

8 A modelagem, no BPI, já é em si, um corpo que se produziu, um corpo pulsante, de tônus corporal bem definido e sentidos elucidados.

Segundo Rodrigues (2003, p. 136), “Pode-se dizer que modelar é despertar uma vivência que está alojada em nossa pele, em nossos músculos, em nossas articulações, em nossas vísceras”. São inúmeras as modelagens possíveis em uma sessão de laboratório (dojo), em maior ou menor grau de complexidade que vão, aos poucos, sendo “peneiradas” e constituindo um corpo. A subconexão de vários aspectos emocionais, imagéticos e sensoriais, através do movimento e sua qualidade tônica, modela um corpo [...] segundo o método BPI, cada bailarino-pesquisador-intérprete poderá modelar uma infinidade de corpos ao longo de toda a sua existência, pois o eixo Inventário no Corpo é passível de ser vivenciado enquanto houver vida e movimento”. (trecho da Tese de Doutorado p. 25, 2012 ”Quem dança em

- Elaboração dos conteúdos (análise sensível das etapas anteriores, reescrita das reflexões do diário de trabalho em formato de texto acadêmico e ensaio do solo de dança).

O início da dissertação apresenta o capítulo Os Cisnes e Eu que relata a origem da pesquisa. A partir do filme Cisne Negro (2010) pude entrar em contato com uma série de angústias em relação a minha trajetória em dança e principalmente, com a sede – que já estava ficando insuportável naquele momento – do novo, que se esperava ser mais profundo e verdadeiro para mim.

Em seguida, denominei metaforicamente a primeira etapa dos laboratórios de Cisne Branco por se tratar, predominantemente, do reconhecimento dos resquícios do balé clássico em meu corpo e de que maneira esses rastros formativos influenciavam em minha prática no presente.

A segunda etapa (terceiro capítulo da dissertação) recebeu o nome de Cisne Negro por retratar justamente o encontro com as minhas sombras e desejos latentes e, portanto, com uma nova – estranha e surpreendente – maneira de me expressar. Nesse momento vivenciei algumas parcerias, exercitando a alteridade por meio da afetividade.

A terceira etapa corresponde ao momento da costura entre os corpos modelados, as imagens reconhecidas e experimentadas e as expectativas cênicas. Em especial, é a fase da aceitação, da contemplação, das – difíceis, diga-se de passagem – escolhas e da apropriação de conteúdos. Denominei esse quarto capítulo de A Morte dos Cisnes por trazer a construção da dramaturgia cênica do solo Pela Finita Beleza da Rosa trabalho esse, que contempla o rito de passagem de uma técnica para outra, de um momento de vida para outro.

A quarta e última etapa é a escrita em si e os ensaios do solo. O que resultou enquanto reflexão dessas etapas anteriores estará no espaço das considerações finais.

Entre Penas foi um título metafórico, assim como dos demais capítulos, para os processos que aconteceram paralelamente aos laboratórios (as etapas como um todo) e que reverberaram potencialmente em materiais de estudo. Trago aqui, de maneira sintética, relatos dos três semestres trabalhando com o Sistema Rio Aberto, cujas atividades foram orientadas por Sílvia Pinto e Lila Montenegro no Espaço Movimento (Campinas/SP). Falo também do curso livre de teatro dirigido pelo ator João Paulo Lorenzon no Espaço Mágico (São Paulo/SP) e, principalmente, da Vivência da Cegueira (48 horas de olhos vendados) que aconteceu em Setembro de 2013. Por fim, trago quatro

trabalhos artísticos compartilhados com artistas da UNICAMP (filme de dança, cena inspirada em Pina Bausch, uma performance e um show musical) como exemplos de construção de uma possível linguagem cênica.

Interessante citar que, mesmo não sendo um capítulo (por uma questão de organização temática), ao longo desses meses de pesquisa participei de várias oficinas de dança (ex.Dança-teatro com Denise Namura e Michael Bugdahn ), cursos de formação (ex. Reeducação do Movimento com Ivaldo Bertazzo) e oficinas, congressos e simpósios (no Brasil e no exterior). Da mesma maneira, pude prestigiar muitos trabalhos cênicos incríveis que geraram num segundo momento, trocas maravilhosas com artistas-criadores e também, participei de workshops e conversa com artistas (projeto do Governo do Estado de São Paulo) com Henrique Rodovalho, Deborah Colker, Marika Gidali, Décio Otero entre outros. Essas experiências, somadas as oficinas, cursos e aulas por mim ministradas e pelas trocas com público após apresentação de trabalhos cênicos, somaram muito para essa pesquisa.

No entanto, vale ressaltar que entrar numa nova etapa não significava necessariamente abandonar a anterior; significava sim e, portanto, adicionar novos conteúdos e aprofundar outros tantos que foram significativos e que merecem mais investigação. O espaço do laboratório aconteceu, por exemplo, durante toda a trajetória por representar um espaço de íntima exploração das várias possibilidades corporais, bem como a análise dos conteúdos que emergiram em forma de gestos simbólicos, permeou todas as etapas do processo para que cada descoberta pudesse ser devidamente elaborada.

A Pesquisa

Optou-se por trabalhar dentro de uma abordagem fenomenológica. Desta maneira, pode-se estudar a própria interpretação evitando julgamentos, numa constante contemplação do objeto de estudo (corpo em processo criativo).

Mais do que a beleza plástica e estética da dança, buscou-se aqui, entender os conteúdos subjetivos intrínsecos nesse processo de criação e de que maneira tais movimentos internos são “corporificados”, externalizados em forma de dança.

Por se tratar de uma abordagem fenomenológica, cujo caráter é qualitativo e, cultiva um, conhecimento tácito, temos aqui uma pesquisa – uma pesquisadora, na verdade – que valoriza os processos subjetivos e que tem como base do projeto, uma observação sensível dos resultados obtidos.

Trago aqui, como material de trabalho um conhecimento pessoal e oriundo das minhas experiências e competências (diferenciais e dificuldades) de artista do corpo. Há também, uma dimensão contextual (ligada à visão de mundo do sujeito) e abertura para insights e intuição que não é uma exclusividade das pesquisas em arte, mas é, a meu ver, uma grande e deliciosa característica (e diferencial) dessa área de atuação.

A beleza da pesquisa esteve na descoberta diária das nuances do corpo que, no exercício de criação, pôde aprofundar-se em conteúdos mais elaborados e profundos, como os do inconsciente, por exemplo.

O valor da experiência para esse processo criativo

Propor uma pesquisa pautada na experiência é algo bastante arriscado, porém, inevitavelmente fascinante. Não ter o controle das respostas, a clareza dos caminhos, nem saber quais serão as reflexões pungentes desse contato intenso com memórias e imagens corporais, exigiu de mim, quanto pesquisadora (de mim) uma postura pró-ativa, atenta ao que se revelava no cotidiano e sensível às minhas emoções e vivências.

Uma pesquisa pautada na experiência do artista, sendo que esse artista é o próprio pesquisador de si e de sua obra, exige dele, confiança e de total entrega ao objeto de estudo, pois todas as suas vivencias, serão assim, um valioso material de observação. Observar-se, contemplar-se, distanciar-se, recriar-se, criticar-se, reinventar-se, estranhar-se, respeitar-se. Entregar-se e surpreender-se. Escutar-se. Observar-se. Sentir-se por inteiro. Como diz Sabino (1992) em sua música Yo quiero ser una chica

almodovar inspirada nas obras cinematográficas consagradas de Pedro Almodóvar9: "No tener otra fe que la piel, Ni más ley que la ley del deseo".

Para Larossa a experiência é

“a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque. Requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço”. (Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, jan./abr. 2002.)

Sendo assim, inspirada em Larossa, busquei vivenciar uma pesquisa cujo norte é justamente não ter norte, mas sim, uma variedade rica de possibilidades, o que me soava desafiador e não menos encantador. Na verdade, mais do que ter ou não um norte, seguir um caminho pré-determinado ou arriscar-se no abismo do acaso, o que mais vale ser citado quanto processo nesse trabalho é o quão incerto e desconhecido é vasculhar o inconsciente e as memórias.

Já para Clarice Lispector, em sua obra Água Viva, a experiência é:

“Vou falar do que se chama a experiência. É a experiência de pedir socorro e o socorro ser dado. Talvez valha a pena ter nascido para que e um dia mudamente se implore e mudamente se receba. Eu pedi socorro e não me foi negado. Senti-me então como se eu fosse um tigre com flecha mortal cravada na carne e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem teria coragem de aproximar-se a tirar-lhe o dor. E então há a pessoa que sabe que tigre ferido é apenas tão perigoso como criança. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la,

arranca a flecha fincada. E o tigre? Não se pode agradecer. Então eu dou umas voltas vagarosas em frente à pessoa e hesito. Lambo uma das patas e depois, como não é a palavra que tem então importância, afasto-me silenciosamente”. (Lispector, 1973, p.86)

Se a proposta era retomar, entre outras coisas, os “nós” que marcaram meus primeiros anos de formação em dança e os afrouxamentos desses “nós” vivenciados durante a graduação, ao entrar em contato com essas emoções, ao revivê-las, desconstruí-las, reconstruí-las e elaborá-las, de fato, não se era possível saber qual seria a resposta do corpo por se tratar de algo desconhecido e rico de subjetividades. Era necessário vivenciar esse resgate, levantar os temas que me mobilizavam, para que, em seguida, eu pudesse questionar e transformar tais conteúdos em arte.

Não se tratava necessariamente de não saber que fim teria a pesquisa, mas de permitir-se vivê- la verdadeira e intensamente e arriscar construí-la e reconhecê-la à medida que ela se apresentava para mim.

Por se tratar de uma “pesquisa viva” e diretamente relacionada ao sujeito da pesquisa, conta-se com as constantes modificações no processo, uma vez que tudo muda à medida que esse sujeito muda. Assim, o artista- pesquisador necessariamente precisa ser um sujeito investigativo, criativo, curioso e ousado. As palavras “porosidade” e “amorosidade” parecem concretizar muito bem essa necessidade de se entregar à pesquisa e manter um constante diálogo com ela.

A linha condutora foi à busca pela “inteireza” de cada indivíduo. Assim, houve durante todo o processo, a proposta de reduzir a armadura corporal, explorar o mais amplo aspecto possível da expressão, estabelecer um diálogo entre sensações corporais e informações de uma miríade de fontes, aventurar-se em desdobramentos do inconsciente humano, contemplando cada etapa da criação artística, enfim, entendendo que a vida é uma sucessão de encontros inéditos com o mundo (pelo menos, dentro do contexto vivido nesse momento da minha vida) e uma constante busca pelo suprir de desejos:

“[...] entre o apetite e o desejo não há nenhuma diferença, a não ser que o desejo se aplica geralmente aos homens quando tem consciência do seu apetite e, por conseguinte, pode ser assim definido: o desejo é o apetite de que se tem consciência. É, portanto, evidente, em virtude de todas essas coisas, que não nos esforçamos por fazer uma coisa

que não queremos, não apetecemos nem desejamos qualquer coisa porque a consideramos boa; mas, ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para ela, porque a queremos, a apetecemos e desejamos”.

Spinoza

Interessante notar que, embora não aja distanciamento entre o pesquisador e a pesquisa, é importante que, ao menos, em alguns breves momentos, aja um espaço de contemplação do objeto de estudo sem que aja total envolvimento afetivo. Esse “distanciamento” (se é que ele realmente é possível) permite que um mesmo tema seja revistado de diferentes maneiras.

Por mais que eu “levante a bandeira” de que o artista é a sua arte e faça dela um motim para a minha dança, acredito que a fusão entre a arte e o artista, entre o personagem e o sujeito que o interpreta, entre o processo de vida e processo de criação, embora ricos e para mim vitais, sejam bastante arriscados. Um pesquisador de si e de sua arte, tem que ser maduro o suficiente, para viver essa simbiose e em seguida, romper esse núcleo para criar novos núcleos, novas fissuras, novas possibilidades de formas. Caso contrário, o que parecia flexível torna-se rígido e estagnado, por não ter movimento, diferenciação. É um constante movimento de fundir-se e fragmentar-se, de aproximar-se e distanciar-se, ou seja, há de se compreender a arte e a vida como um diálogo entre dois organismos vivos que respiram e compõem juntos e como tal, desejam-se e afastam-se constantemente. E mais que tudo, como Lispector belamente diz, “há de se atirar ao novo para se deixar de ser o velho, conhecido, amedrontado e ingrato”.

Capítulo 1:

Os Cisnes e Eu