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“Dance como uma flor que não pede licença para nascer”. Kazuo Ohno

Investigação das imagens para construção dos corpos cênicos

Essa pesquisa dividiu-se em etapas que foram estratégicas para a investigação da transição da dança clássica para a dança contemporânea em meu copro. Assim, na primeira etapa, buscou-se explorar solitariamente, a partir das minhas memórias corporais e de simbologias das partes do corpo, quais eram os movimentos, as imagens, as associações e também, os resquícios que emergiam, ou melhor, revelavam-se para mim nos laboratórios de improvisação gestual. Entendo essa etapa como um primeiro contato com a permissividade, tão valiosa para uma criação, principalmente independente. Recolhidos tais dados, foi-se necessário uma análise e elaboração desses conteúdos, que culminou numa nova etapa, etapa essa que “exigiu” parcerias e trocas para que se pudesse “ir além”.

Para a segunda etapa, que só foi uma nova etapa por romper com algumas estruturas da primeira, optei por convidar uma atriz, que é uma grande amiga minha (Leny Góes, formada em Artes Cênicas na Universidade Federal de Ouro Preto) para me ajudar nesse processo árduo de (dês) condicionamento gestual. A necessidade desse convite deu-se na observação de que eu sozinha em sala de trabalho sentia-me dominada por um vazio profundo, por uma triste sensação de limitação. Na verdade, houve trabalho, houve material para pesquisa, mas eu não conseguia reconhecer, até então, o quão profundo e maduro era o que se revelava para mim. Pedir ajuda nesse momento parecia-me o mais sensato a fazer.

Essa segunda etapa, que durou doze meses, dividiu-se em dois sucessivos momentos: exploração das imagens simbólicas para modelagem de corpos cênicos (que será descrito nesse capítulo) e, em seguida, investigação da dramaturgia cênica para a construção do solo de dança (que será relatado no próximo capítulo). Os laboratórios, nessa nova etapa foram assim, dirigidos, ou melhor, compartilhados com a Leny.

Se, a primeira etapa pode ser metaforicamente caracterizada pela imagem do espelho por se tratar de um momento de “encarar-se de frente”, a segunda etapa poder-se-ia então, ser simbolizada pela argila por representar a construção, a modelagem (oriunda do trabalho com tônus muscular, inspirada do já citado método BPI da Profa Dra Graziela Rodrigues) de corpos cênicos, de maneira; cuidadosa e profunda.

Os laboratórios nessa segunda etapa, em sua maioria, estavam organizados da seguinte maneira: preparação corporal (condicionamento físico, exploração de movimentos livres com foco no tempo e espaço, alongamento e aquecimento), improvisação dirigida (experimentação de novas propostas, mergulho no desconhecido), observação e anotação do conteúdo emergido (estabelecendo um paralelo entre o que se sentiu durante a atividade, o que se via na gravação e o que foi relatado pela Leny) e por fim, o laboratório de criação (no qual se vivenciava e construía uma síntese dos conteúdos gestuais a fim de trazer todos esses conteúdos para o corpo, em forma de dança).

Nesse diálogo entre teatro e dança, entre atriz e bailarina, houve momentos bastante especiais de namoro entre as linguagens e propostas, momentos esses riquíssimos para mim, pois consegui explorar outras potencialidades minhas até então adormecidas e outros – raríssimos, mas válido citar - momentos de dissociação e confronto de “bases”. Embora ambas estivessem focadas no reconhecimento e construção de personagens cênicos (processo que será apresentado nos capítulos seguintes) e, de certa maneira, estivessem trabalhando igualmente para a modelagem dos mesmos, o estranhamento dava-se no momento de condução dessa personagem, na elaboração da dramaturgia cênica propriamente dita.

Embora a dança e o teatro sejam, acredito, linguagens artísticas de fácil relação parece-me necessário clarear, ainda, se o trabalho é uma dança teatralizada ou se é um teatro dançando. Juntar

ambas de maneira inocente soa amador, juntar ambas de maneira madura, exige versatilidade e coragem, mas principalmente, a certeza de que, ao juntá-las não será mais dança e não será mais teatro, será uma terceira linguagem e tem-se que estar preparado para assumir e investir isso.

Hoje percebo o quanto a Leny foi importante nesse processo, principalmente no que diz respeito as suas crenças sobre arte e processo criativo que ela, por meio da prática, colocava para mim. Ela enfatizava, em praticamente todos os nossos encontros, o valor da verdade em cena. Nosso combinado foi então, não dançar, não falar, não vivenciar, não escolher o que não fosse verdade para nós dentro– e, também porque não-, fora do espaço do laboratório.

Eu não precisava provar nada pra ninguém – nem para ela, nem para mim mesma-; o que eu precisava nesse trabalho com ela, era “somente” sentir, viver, explorar, experimentar, criar verdadeiramente. Não que para nós a verdade fosse algo cristalizado e absoluto, pelo contrário; para nós, a verdade era aquilo que fosse genuíno, que reverberasse significantemente no processo por se tratar de temas e conteúdos importantes para mim, para nós. Encontrei aqui uma parceria madura, de cumplicidade rara, de dedicação e entrega - mais raros ainda.

Não educamos um ator, em nosso teatro, ensinando-lhe alguma coisa: tentamos eliminar a resistência de seu organismo a este processo psíquico. O resultado é a eliminação do lapso de tempo entre o impulso interior e a reação exterior, de modo que o impulso se torna já uma reação exterior. Nosso caminho é uma via negativa, não uma coleção de técnicas, e sim erradicação de bloqueios. (GROTOWSKI, p.14-15)

Para apresentar essa segunda etapa da pesquisa, trago relatos – com sucessivas reflexões, de momentos marcantes em laboratório de improvisação e também, apresento como que os conteúdos íntimos emergidos nesse espaço de investigação tornaram-se material de criação cênica.

Reconheço que alguns “personagens” foram uma espécie de cartase onde pude liberar tensões, angústias, enfim, pude abrir espaço para novas experiências, rasgar couraças14, borrar (antigas) formas lineares, clássicas, cartesianas. Já outros tantos foram modelagens com eixo, tônus, ações e paisagens (internas e sonoras) específicas. Os primeiros simbolizam um instante hesitante com sucessivo mergulho profundo, uma porta aberta para investigações mais minuciosas e sensíveis. Os personagens propriamente ditos consistem no produto final desse mergulho, num corpo que reconhece aos poucos sua individualidade e está pronto pra compartilhar conteúdo com o outro.

“Todo o fantasma, toda a criatura de arte, para existir, deve ter o seu drama, ou seja, um drama do qual seja personagem e pelo qual é personagem. O drama é a razão de ser do personagem; é a sua função vital: necessária para a sua existência”.

Pirandello

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Para Reich (apud Brandão), couraça é uma espécie de armadura biológica energética. É, portanto uma defesa contra os perigos do mundo externo e do mundo interno, "[...] quando não há uma autorregulação energética a tendência do organismo é fabricar meios para equilibrar ou eliminar o excesso de energia, formando couraças." (REICH, 1972). Essa couraça é muscular. A couraça biológica energética inibe a pulsação e a vibração do corpo. O caráter é escrito no corpo e o corpo com sua linguagem nos apontam para seus caminhos. Cada pequeno traço de caráter é inscrito nesse corpo inibindo sua pulsação plena. A atitude do caráter é expressa através do comportamento como um todo. Em sua origem, podemos dizer, citando Reich que o organismo modifica o ambiente (aloplasticamente) e modifica a si mesmo (autoplasticamente) e em ambos, para sobreviver. Em termos biológicos, a formação da couraça é uma função autoplástica iniciada por estímulos perturbadores e desagradáveis do mundo exterior, como, por exemplo, as grandes privações ou sujeição à repressão sexual. Pode se formar também como necessidade de proteção. Nesse caso de proteção, podemos citar, por exemplo, o sujeito que vivenciou poucos estímulos desagradáveis vindos do exterior. A criança superprotegida ilustra bem esse caso. Quanto menos ela sabe lidar com as dificuldades do mundo externo - mas que, ao mesmo tempo, é obrigada a lidar com eles-, mais ela constrói uma forte proteção narcísica, uma forte couraça, para isolá-la do mundo externo e dos incômodos do seu mundo interno. Qualquer emoção ou sentimento é sentido como uma grande ameaça.

Identificar se determinada imagem e/ou modelagem estavam nessa primeira (cartase) ou segunda (corpo cênico) categoria – observação que não é fácil!-, me ajudou demasiadamente nessa etapa central e valiosa da pesquisa.

Etapa II: Argila

“O processo criador, na medida em que o podemos acompanhar, consiste numa ativação inconsciente do arquétipo, no seu desenvolvimento e sua tomada de forma até a realização da obra perfeita”. (JUNG apud SILVEIRA, 1997, p. 147).

O primeiro laboratório dessa segunda etapa da pesquisa consistiu em uma série de relatos (meus para Leny) sobre os três primeiros meses de experiência solitária. Falamos sobre minha trajetória de formação em dança, dos enquadramentos, das paralisações e limitações em sala de trabalho, dos tantos mecanismos de defesa que me atormentavam no momento de criação, dos encantamentos e momentos felizes com a dança, do desejo de dilatação do corpo em cena, da sensação de estar pronta para se entrega a novas vivencias e das imagens que permeavam meus sonhos, meus movimentos e minhas expectativas nesse trabalho. O primeiro encontro foi, assim, um longo bate papo inicial.

Algumas anotações feitas no diário reflexivo nesse dia, como relato (fluxo de imagens e sensações) da etapa anterior foram: boneca de porcelana rachando, o objeto relicário (os afetos materializados nele), a borboleta (símbolo de transformação), a fênix (superação), o palhaço que permite que os outros rissem de sua dor, o feto encolhido amparado num lugar protegido que faz força para romper com esse núcleo, uma redoma de vidro se rachando que me envolve e isola ao mesmo tempo entre outros. Eram objetos, imagens, símbolos que foram anotados no caderno ao longo da primeira etapa da pesquisa.

Essas imagens me fizeram acalmar e perceber quanta coisa havia sido investigada, o quanto havia se aflorado nos primeiros meses de pesquisa, descobertas essas que eu, ansiosa e temerosa por não conseguir mergulhar logo de início, não havia me dado conta até então.

Cabia assim, nessa nova etapa, encontrar novas maneiras de mergulhar nesses conteúdos inconscientes e deixar que novas imagens emergissem em forma de movimento para que, então, pudesse modelar corpos cênicos fruto desses conteúdos primeiros e das novas urgências expressivas.

Nesse primeiro dia traçamos também, nossas diretrizes de trabalho. Entre elas, poder-se-ia citar a estruturação dos próximos laboratórios, a organização dos conteúdos a serem investigados, até onde e de que maneira atingiríamos os nossos objetivos e como poderíamos construir um trabalho cênico coerente e rico de sentidos.

Grandes temas

Para a descrição dessa segunda etapa não convêm – pelo número extenso de encontros - apresentar laboratório por laboratório, mas sim, os temas recorrentes e marcantes que surgiram em durante a prática. Apresentarei então, as associações que foram feitas a partir desses temas, as modelagens (que carregavam em si um universo de significações) que foram uma espécie de catarse e as que foram corpos cênicos propriamente ditos e como se deu a construção da dramaturgia cênica.

Os laboratórios dirigidos tiveram, assim como toda a pesquisa, etapas e objetivos de desenvolvimento. Nesse momento, as etapas foram: trabalho com memórias, exploração de temas arquetípicos, reconhecimento e exploração das modelagens, escolha dos corpos cênicos, exploração dos corpos cênicos e investigação e construção da dramaturgia cênica. Permeando essas etapas têm-se algumas vivências cênicas e pausas pra elaboração de conteúdos.