• Nenhum resultado encontrado

Apresentação dos capítulos

Feitas as considerações sobre a escolha e a justificativa para analisar a obra de Maura Lopes Cançado, passo ao conteúdo dos dois capítulos da dissertação. Antes, para auxiliar o leitor, vale ressaltar que usei o itálico como recurso de visualização para todos os escritos de Maura, i.e., para trechos do diário, trechos de contos e também de cartas. Tanto em destaque, fora dos parágrafos, quanto dentro, inseridos no texto, todos os recortes das obras de Maura, usados nesta dissertação, aparecem grafados em itálico.

- No Capítulo Primeiro – Uma escritora em trânsito e em transe – dedico-me à análise de “Hospício é Deus”, mistura de livro de memórias e diário. Um dos objetivos é mostrar como Maura utiliza a escrita para organizar seus pensamentos

40

e dar voz à sua angústia, falando não só como indivíduo, mas relatando os dramas coletivos de quem vive no hospício. A loucura é sua parceira na literatura.

“Talvez, se eu enlouquecesse, conseguisse dar vida às coisas que existiam em mim e que eu não era capaz de exprimir.”41

Por ser considerada insana, coloca-se também no papel de pessoa livre para escrever sobre o que bem entender e chega a afirmar que ao louco tudo [lhe] é permitido.

Aqui estamos nesta sarabanda alucinada. Nós, mulheres despojadas, sem ontem nem amanhã, tão livres que nos despimos quando queremos. Ou rasgamos os vestidos (o que ainda dá um certo prazer). Ou mordemos. Ou cantamos, alto e reto, quando tudo parece perdido (...). Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades – em

excesso de liberdade.42

Por se tratar em parte de um relato autobiográfico, alinhei ao texto do diário de Maura alguns dados encontrados sobre a autora em pesquisas de textos acadêmicos e artigos jornalísticos, às vezes confrontando informações. Assinalei algumas contradições encontradas sobre sua vida. Por ter passado anos de um hospital a outro, de tratamento em tratamento, sua trajetória apresenta uma instabilidade que transparece na sua biografia e nos artigos escritos sobre ela. Até a definição de sua doença passa por vários rótulos – psicótica, esquizofrênica, oligofrênica, “louca de carteirinha”, na sua própria concepção – o que parece incomodá-la, atingindo sua autoestima e incitando-a à busca de uma identidade. Excluída socialmente durante anos nos manicômios, Maura passou aproximadamente por 19 internações que a transformaram numa pessoa sempre em transe e em trânsito. Nesse sentido faço uma analogia de Maura com “Nadja”, personagem que dá nome ao romance mais conhecido de André Breton que era uma psicótica na vida real e que acabou num manicômio.

Neste capítulo o objetivo é também abordar alguns eixos temáticos de “Hospício é Deus” a partir de temas recorrentes como a revolta contra os tratamentos psiquiátricos; sua relação com Deus e a religião; a relação com o sexo e a afetividade, a tendência à teatralização ou ao exibicionismo. Além disso,

41

CANÇADO, 1991, p.63.

42

analiso as referências ao “olho” e ao “olhar”, muito presentes na sua escrita, assim como no romance de Breton. Maura ainda demonstra um senso de humor que permeia seus relatos do cotidiano, mesmo quando aborda situações insólitas ou de desagravo em relação a pessoas, às quais trata como adversárias. Através do diário, ela transforma sua vida no hospício numa espécie de reality show, deixando visíveis os acontecimentos a partir de uma escrita que explora situações no limite, caprichando no relato das cenas, descrevendo detalhes de suas vivências e das demais companheiras do manicômio.

Pontuo o capítulo com abordagens da condição do louco ao longo do tempo, a partir do livro “História da Loucura”43 de Michel Foucault, no qual ele descreve, desde a Idade Média até a Modernidade, como os insanos são tratados pela sociedade e que lugar ocupam nas artes e na literatura. Também delineio de forma sucinta a história da psiquiatria no Brasil, de acordo com Freire Costa.44

A experiência abissal da insanidade – imagem recorrente no universo dos doentes mentais e na escrita de Maura – ecoa até mesmo no título escolhido para o diário: “Hospício é Deus”, visto aqui como algo difícil de ser compreendido, aproximando a ideia de Deus da ideia da loucura, numa relação complexa a ser desvendada. Tarefa árdua, se não impossível.

- O Capítulo Segundo – Uma mirada surrealista – é dedicado a uma análise do livro “O Sofredor do Ver” que reúne doze contos, sendo que alguns se relacionam a passagens de “Hospício é Deus”, de onde se originam personagens e situações. Ela dedica cada um dos contos a pessoas que fizeram parte de sua vida, incluindo algumas que conheceu no hospício como no caso de “Introdução à Alda”, conto que faz referência a uma interna do Hospital Gustavo Riedel.

Se o diário é o relato realista de uma autora que denuncia as agruras de suas internações, o livro de contos retoma algumas situações do diário num outro gênero, transformando-se em território de expansão livre da linguagem que ganha contornos surrealistas, com imagens poéticas, oníricas, e descrições delirantes. No diário, ao falar da loucura, Maura chega a afirmar que a realidade do hospício

43

FOUCAULT, 2009.

44

só o cinema seria capaz de mostrar, o que sugere, de novo, uma forma peculiar de olhar. A aproximação com o surrealismo inclui também suas críticas a valores e categorias do conhecimento, como às relativas aos tratamentos dados aos loucos, presentes também no romance “Nadja”, de André Breton, que faz “observações neuropsiquiátricas” no livro que tem como protagonista uma personagem que na vida real acabou internada num manicômio, perdendo contato com o escritor.

O surrealismo valoriza as imagens na literatura considerando ainda que elas se oferecem de forma “espontânea, despoticamente” numa alusão ao automatismo verbal que se liga aos estímulos do inconsciente e não estão relacionadas à realidade objetiva. Ao fazer a ligação do surrealismo com a psicanálise, Breton afirma:

Cumpre a nós sermos gratos às descobertas de Freud. Baseada nelas delineia-se, enfim, uma corrente de opinião graças à qual o explorador humano poderá ir mais longe em suas investigações, uma vez que estará autorizado a não levar em conta apenas as realidades sumárias. É possível que a imaginação esteja prestes a recobrar seus direitos.45 Breton também aproxima a psicanálise da escrita automática, método de criação surrealista, fazendo a seguinte correlação:

Como naquela época, eu ainda andava muito interessado em Freud e familiarizado com seus métodos de exame, que tivera oportunidade de empregar em alguns pacientes durante a guerra, decidi obter de mim mesmo o que se tenta obter deles, vale dizer, um monólogo enunciado o mais depressa possível, sobre o qual o espírito crítico de quem o faz se abstém de emitir qualquer juízo, que não se atrapalha com nenhuma inibição e corresponde, tanto quanto possível, ao pensamento falado. (...) Foi a partir destes pressupostos que Philippe Soupault, a quem eu pusera a par destas primeiras conclusões, e eu resolvemos começar a escrever com um louvável desprezo por quaisquer resultados literários.46

A livre associação de ideias, proposta por Freud, encontra assim um método correlato de criação no surrealismo, a partir de uma escrita sem inibição, que “corresponde ao pensamento falado”, incorporando também imagens espontâneas. Um exemplo é a frase citada por Breton no “Primeiro Manifesto

45

BRETON, 2001, p.23.

46

Surrealista” (1924): “Há um homem cortado em dois pela janela”,47 pura representação visual, produto de automatismo psíquico expresso verbalmente. Breton ainda falava em “onipotência do sonho” e “jogo desinteressado do pensamento”, numa alusão à valorização e investigação do inconsciente para fins criativos. Nos contos de Maura vamos destacar a subjetividade, a presença de símbolos e imagens que revelam o inconsciente da obra, tomando como ponto de partida a linguagem.