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O reconhecimento da escrita dos alienados

A partir do Séc. XIX, a literatura dos alienados começa a ter reconhecimento, passando pela criação de Gérard de Nerval (1808-1855), representante do romantismo francês, diagnosticado como esquizofrênico, autor de uma produção literária brilhante, na qual destaca-se “Aurélia”, – considerada uma obra delirante – assim como “As Quimeras” (poesia), composta de sonetos criados durante surtos. Sobre isso, Claudio Willer, no livro “Um Obscuro Encanto – gnose, gnosticismo e poesia moderna”, observa: “Sonetos tão perfeitos, representando um polo de condensação, coincidirem com surtos inspira reflexões sobre as relações entre a loucura e a criação poética.”48

Já Antonin Artaud (1896-1948) – poeta, ensaísta, dramaturgo e ator que participou do movimento surrealista – também passou anos em manicômios e faleceu em Paris no asilo do bairro de Ivry-sur-Seine. No hospital psiquiátrico de Rodez, onde também ficou internado, escreveu cartas que serviam como meio de manter a lucidez. É conhecida sua correspondência com o Dr. Frediére, diretor do manicômio – que reconhecia seu valor como poeta, ao mesmo tempo em que, por considerá-lo delirante, aplicou-lhe tratamento com eletrochoques que comprometeram seu corpo e sua mente. Durante seus internamentos ou nas fases em que ficava livre, fazia o que chamava “experiências de linguagem”, como as glossolalias citadas por Willer. Glossolalias são definidas na psiquiatria e nos estudos de linguagem como um fenômeno geralmente ligado ao fervor religioso, no qual um indivíduo se expressa numa língua inexistente, mas pode

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BRETON, 2001, idem.

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apresentar-se também por outras causas. Os poemas de Artaud consistem numa série de fonemas ritmados:

ratara ratara ratara atara tatara rana otara otara katara otara retara kana ortura ortura konara

kokona kokona koma49

Willer afirma que em Artaud esse “falar em línguas” pode ser associado ao surto, ao delírio interno dos manicômios.

Abordo a obra de Maura Lopes Cançado pela subjetividade, tentando compreender a tessitura que imbrica literatura e loucura. “Hospício é Deus” mistura verdade e ficção; os contos de “O Sofredor do Ver” estão no plano do sonho e do delírio; como em “Introdução à Alda”, algumas de suas ideias só cabem mesmo em imagens:

Lentamente forma-se uma substância vaga, sem contornos, crescendo arredondada enquanto lhe sobe à garganta, quase sufocando-a. Dobra- se sobre o corpo, vergada, pálida. Suor vaza-lhe os poros. Apressa os

passos vendo mais rápido, enquanto o cérebro canta uma canção

desritmada. Ergue o pescoço andando de cor, e busca juntar-se numa

só cabeça quando vence a esfera.50

Nos contos, Maura talvez tenha encontrado, enfim, seu destino e sua identidade de autora, capaz de plasmar a realidade na ficção de forma fantástica ao deslizar do diário para outro gênero.

Antonio Candido diz que o valor de um texto literário reside no fato de permitir passar os sentimentos “do estado de mera emoção para o de forma construída”51. Esta construção existe no caso de Maura, e nos captura com sua força imagética, legitimando a autonomia da escrita doída e delicada de uma “sofredora do ver” que insere na literatura seu olhar perturbador. Nem sempre 49 WILLER, 2010, p.382. 50 CANÇADO, 2011, p.17. 51 CANDIDO, 2011, p.181.

porém um autor diagnosticado como louco é aceito pelos cânones, podendo sua obra ser considerada mais um delírio do que um ato criativo. A marginalização dos autores considerados “doidos varridos” foi motivo de reflexão para o pensador e crítico literário Walter Benjamin que, em 1928, afirmou num ensaio sobre as famosas memórias de Daniel Paul Schreber:

A existência deste tipo de obras tem algo de surpreendente. Estamos habituados, apesar de tudo, a considerar o âmbito da escritura como algo superior e seguro, de tal maneira que a emergência da loucura, que aqui aparece sigilosamente, assusta mais.52

A afirmação correspondia aos ideais das vanguardas artísticas que admitiam a loucura também como um estágio de criação, caso do surrealismo, que teve entre seus principais expoentes André Breton e Louis Aragon. Ambos, durante a Primeira Grande Guerra, trabalharam como estagiários numa ala destinada aos loucos num hospital militar onde, à noite, liam em voz alta trechos dos “Cantos de Maldoror” de Lautréamont, enquanto ouviam os insanos em surto. O fato é mencionado no próprio livro de Lautréamont, “Os Cantos de Maldoror”, com organização, tradução, prefácio e notas de Claudio Willer, em que se refere a um texto escrito por Aragon que resgata, entre outras coisas, a relação do surrealismo com a loucura:

Em um texto de 1967, “Lautréamont et nous”, Louis Aragon justificou o modo como os surrealistas o reivindicaram. Remontou à época de serviço militar em trincheiras e hospitais na guerra de 1914-18: “Todo mundo, inclusive Paul Fort, o encarava naquele tempo como uma curiosidade literária que vinha acrescentar-se ao número desses excêntricos da escrita sobre os quais Nerval havia escrito um livro. Era perfeitamente inútil ligar o lirismo de Lautréamont a qualquer outra coisa a não ser à loucura... permanecemos aqueles que, em primeiro lugar, foram os seus defensores líricos (...) quando nem os Cantos, nem Poésies ainda podiam ser focalizados como uma linguagem. Porém, muito mais, como um grito das entranhas”. Para não deixar dúvidas, narra como ele e Breton o liam em 1917. Revezavam-se a vocalizar o exemplar único dos Cantos que tinham nas mãos, pertencente a Soupault, “em um cenário inverossimilmente maldororiano”: à noite, no quarto andar do hospital militar onde serviam como estagiários na ala daqueles sob tratamento psiquiátrico. Enquanto recitavam (...) os internados entravam em surto: “Às vezes, por detrás das portas trancadas a cadeado, os loucos urravam, nos insultavam, batendo na parede com seus punhos. Isso dava ao texto um comentário obsceno e surpreendente (...)”. Os bruscos buracos de silêncio eram mais impressionantes ainda que o alarido demencial. Silêncio decorrente do

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pavor partilhado por todos diante dos alarmes de bombardeios aos quais Paris era submetida. “Lautréamont et nous” não é apenas uma crônica da época, oferecendo mais uma ilustração das conexões surrealistas entre literatura e vida. Aragon demonstrou que, sem precisarem recorrer à mediação de teorias então inexistentes, através de uma apreensão poética, uma “revelação”, diz, resultado de uma “cumplicidade ativa”, o foco já se dirigia para seu valor como “linguagem”. Imediatamente viram aquelas características de sua escrita, ou “escritura”, que tornaram Lautréamont algo além de um adepto do mal na trilha de Baudelaire, ou um profeta da perversão associada ao Marquês de Sade.53

Isso vem ao encontro das ideias de Walter Benjamin que, por sua vez junta-se a Michel Foucault quando o filósofo afirma um retorno da loucura na Modernidade, através da arte e da literatura, contrariando o que ocorria na Idade Clássica, entre os Sécs. XVI e XVIII, quando não havia para a insanidade uma linguagem autônoma. Abordando a obra de autores dos Sécs. XVII e XVIII, ele afirma:

A loucura clássica pertencia às regiões do silêncio (...). Seu sentido só pode aparecer diante do médico e do filósofo, isso é, daqueles que são capazes de conhecer sua natureza profunda, dominá-la em seu não-ser e ultrapassá-la na direção da verdade. Em si mesma, é coisa muda: não existe na era clássica da literatura da loucura uma linguagem autônoma, uma possibilidade de que ela pudesse manter uma linguagem que fosse verdadeira.54

Ou ainda:

(...) descobria-se uma distância onde a verdade mesma da obra constituía um problema: é loucura ou obra? Inspiração ou fantasma? Tagarelice espontânea de palavras ou origem pura de uma linguagem?

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Fazendo primeiro a crítica do controle e sufocamento cultural da insanidade para apontar depois seu resgate na modernidade através da arte e da literatura, Foucault cria o conceito: “a loucura é a ausência da obra”, não no sentido de uma anulação, mas de uma provocação que erige a obra a partir de outro sistema e de outra linguagem que restabelecem a autonomia do louco em criações como as de Lautréamont, Nerval e Artaud:

53 WILLER, 1997, p.21 (prefácio). 54 FOUCAULT, 2009, p.509. 55 FOUCAULT, 2009, p.528.

A loucura é ruptura absoluta da obra; ela constitui o momento constitutivo de uma abolição, que fundamenta no tempo a verdade da obra; ela esboça a margem exterior desta, a linha do desabamento, o perfil contra o vazio. A obra de Artaud sente na loucura sua própria ausência, mas esta provocação, a coragem recomeçada dessa provocação, todas estas palavras jogadas contra uma ausência fundamental da linguagem, todo este espaço de sofrimento físico e de terror que segue o vazio ou, antes, coincide com ele aí está a própria obra: o escarpamento sobre o abismo da ausência da obra.56

Considerando os enunciados de grandes pensadores, lanço-me à obra de Maura Lopes Cançado, buscando uma conclusão que a legitime a partir da matéria-prima da literatura: a linguagem, que adquire importância maior do que sua condição de doente mental, situação também abordada em outras pesquisas relacionadas à autora sob o ponto de vista social e jurídico.

A autora pula os muros do hospício organizando em sua obra experiências traumáticas ou momentos de abstração que confluem para um discurso multifacetado em temas e gêneros. Neste fundo realista busco sua urdidura estética, abrindo caminho para uma investigação da escrita produzida em estados emergenciais, nos quais essa produção se apresenta não só como um desabafo ou desarticulação de sentidos, mas é legitimada como literatura por sua qualidade intrínseca. Analisar Maura Lopes Cançado como uma autora surrealista vai além da obra por um aspecto: o surrealismo não é visto apenas como estética, mas como uma experiência de transgressão. Ao questionar tão profundamente o sistema psiquiátrico, Maura incorpora essa atitude que se espera dos inconformados, e sua própria existência tem algo de surrealista, às vezes criando personagens de si mesma, de forma multifacetada. Até hoje não se sabe exatamente quem foi Maura Lopes Cançado: há muitas lacunas em sua trajetória. Ela existiu dentro de uma descontinuidade de ações, surgindo e desaparecendo em manicômios.

Em “Hospício é Deus”, ela refere-se a si mesma como uma “esquizofrênica de carteirinha”, reforçando sua condição marginal sujeita a reincidências de crises e internamentos. Porém, é necessário olhar também sua escrita não só como meio de fuga do ambiente árido do hospital, mas como instrumento de reconstrução que a reinsere à sociedade na condição de autora, status que ela

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reivindica em alguns momentos para demonstrar um poder e uma consciência que a redimam da sua situação de doente. Trata-se de uma escrita singular, uma literatura engendrada num estado de emergência, na qual a denúncia e a revolta encontram momentos de pacificação atingindo uma linguagem elaborada, repleta de reflexões, sutilezas, nonsense, humor, imagens, metáforas, poesia. Ela se expressa muitas vezes de modo surreal deixando pistas oníricas ou próprias de quem se abstrai da realidade, com incursões que lembram a pintura e o cinema.

Consideradas estas características, verifico como Maura Lopes Cançado cria uma obra convincente por seu valor intrínseco, ainda que construída nos limites da imaginação e – por que não? – do desvario humano.