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Aproximações de um território afetivo e familiar

1. A fala a nível do sertanejo engana: as palavras dele vêm, como rebuçadas (palavras confeito, pílula), na glace de uma entonação lisa, de adocicada. Enquanto que sob ela, dura e endurece o caroço de pedra, a amêndoa pétrea, dessa árvore pedrenta (o sertanejo) incapaz de não se expressar em pedra. 2. Daí porque o sertanejo fala pouco: as palavras de pedra ulceram a boca e no idioma pedra se fala doloroso; o natural desse idioma fala à força. Daí também porque ele fala devagar: tem de pegar as palavras com cuidado,

confeitá-la na língua, rebuçá-las; pois toma tempo todo esse trabalho João Cabral de Melo Neto, O Sertanejo Falando (1962-1965).

Ainda que tenha se equivocado quanto à devida associação dos lugares em relação aos fatos, Francisco havia me levado para um ponto ainda mais significativo no que concerne ao meu “reencontro” com os sertões. Eu estava na localidade em que Elitonio teria passado infância e adolescência, quando a partir dos 18 anos decidira “arriscar a sorte” no Rio de Janeiro: a fim de trabalhar, juntar dinheiro e comprar uma motocicleta para passear com a esposa e as filhas quando de volta ao Ceará. Estar ali, entretanto, causou-me um súbito temor, pelo fato de não ter em mãos um roteiro de entrevista definido para uma conversa com a mãe, o pai ou os irmãos de Elitonio; pois não imaginava que poderia encontrá-los logo numa primeira incursão. Eu sabia que antes era preciso “preparar o terreno”, chegar com tranquilidade, abrandar as desconfianças e deixar transparecer aos poucos as boas intenções e, posteriormente, elaborar roteiros mais precisos.

Por alguns instantes, pareceu-me pertinente retornar a Cariré e avaliar cuidadosamente de que maneira deveria abordar a família, e se de fato seria um gesto prudente chegar ali acompanhado de tantas pessoas (os meus três primos) para tratar de assuntos tão sérios e delicados. Todavia, as dúvidas e temores não duraram muito tempo, de modo que a ansiedade para o encontro era maior e me fez seguir adiante. Algo dizia que eu devia ignorar as dúvidas ocasionais, procurando me orientar por tudo que eu sabia e havia assimilado até ali. Em outras palavras, era preciso “fazer o campo” acontecer.

Chegando próximo à casa amarela com extenso alpendre, como haviam indicado o simpático casal, pude visualizar ainda de longe alguns adultos e crianças, que corriam descalças pelo chão de terra batido. Havia um senhor idoso que fazia a barba de outro senhor quase da mesma idade, na extremidade direita da varanda. Do outro lado do alpendre estava uma senhora idosa, ao lado da porteira de entrada. Ela fabricava chapéus de palha e conversava com outras duas mulheres mais jovens, acomodadas em pequenos bancos à sua frente67. No pouquíssimo tempo que eu, Raul, Reginaldo e Francisco tivemos para alcançar a casa, eu procurei refletir a respeito da melhor maneira de abordar a família. Com que cautela deveria empregar determinadas palavras em relação ao ente querido? E ainda, como manter a devida compostura, para que eles não notassem qualquer nervosismo?

67 “[...] o cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada.” (CERTEAU, 2000, p. 31).

Desci da garupa da moto com um sorriso de satisfação. Logo percebi que as três mulheres (mais próximas do meu campo de visão), imediatamente interromperam seus afazeres e começaram a avaliar cada um dos meus movimentos, a minha vestimenta, as motocicletas; assim como os gestos e as características dos meus três acompanhantes. Decidi prontamente que logo depois de saudar a todos, deveria “quebrar o gelo” sem muitos rodeios. Ser objetivo, dispondo de toda simpatia, com o intuito de conquistar as vistas daquelas pessoas que me observavam em silêncio. Qualquer deslize poderia dar uma impressão errônea, por exemplo, de que eu seria um policial disfarçado, que talvez procurasse sondá-los por conta da carreira criminal de Elitonio.

Decidi que deveria “abrir o jogo”, o que para mim era feito com relativa prudência e cerimônia, sobretudo após a interação que simplesmente não estabeleci com o delegado Flávio. Naquelas circunstâncias, entretanto, eu lidava com populares que me agradavam pela extrema simplicidade, pessoas que logo se mostraram abertas e muito semelhantes aos meus próprios familiares do interior e sertões. Eu de fato acreditava que todos compreenderiam com boa vontade as minhas reais intenções.

Obtive um feliz acerto. Para minha extrema satisfação, fui muito bem recebido, sobretudo por Dona Virgínia, que após ouvir minha breve apresentação e a razão pela qual eu me encontrava ali (para falar de Elitonio), logo me pediu simpaticamente: “Entre aí, moço, vamos conversar...”

Fui indicado para tomar assento numa pequena cadeira de metal com tiras azuis de borracha. Nesse momento, Dona Virgínia solicitou que eu falasse mais um pouco sobre o que eu realmente gostaria de “fazer” e “saber”. Naquelas circunstâncias, então, pude recordar uma interessante passagem de Irlys Barreira (2001, p. 106):

A função das mulheres como mobilizadoras de sentimentos e protagonistas de ressentimentos fundamenta-se no interior de uma percepção valorativa do papel feminino na vida social. Nessa perspectiva, as mulheres são consideradas substância debens simbólicos familiares ou caudatárias de uma reserva moral civilizadora. [...] Encarnam, assim, as mulheres na condição de defensoras de princípios universais que estão além do campo da honra e do próprio espaço da política, um poder simbólico que permite exprimir múltiplas linguagens relacionadas ao sofrimento, à indignação e demais sentimentos associados aos ciclos fundamentais de vida e morte.

O marido de Dona Virgínia, Seu João, que até então permanecera calado e atento, ouvindo da extremidade oposta do alpendre o que eu conversava com a sua esposa, logo procurou alertar a companheira: “Tenha cuidado com o que você vai falar aí, Virgínia, pra

depois não vim problema pra nós”. A recomendação do seu João não deixava de constituir uma “indireta”, muito bem direcionada para a minha pessoa. Compreendendo as razões implícitas no preciso “comentário”, ou a que espécie de “cuidado” e “problemas” o Seu João se referia, imediatamente procurei esclarecer com toda a serenidade e respeitabilidade necessárias; ao seu João e a todos os que estavam presentes, que permaneciam calados e bastante atentos: à exceção das crianças que apenas continuavam brincando sem se importar com o que se passava no “universo dos adultos”.

Sempre com um sorriso estampado no rosto, enfatizei com tranquilidade: “Eu prometo que vocês não terão problemas. Faço um trabalho de pesquisa sério e estou aqui para ouvir vocês, e jamais prejudicar vocês. O senhor, seu João, pode ficar tranquilo e confiar, viu? Não vai vir problemas pra vocês. Eu garanto!”

A mulher é a região elementar da intimidade. Nesse sentido, Deleuze e Guattari (1997, p. 85-86) discorrem a respeito do “estatuto feminino” do segredo:

É que as mulheres não têm absolutamente a mesma maneira de tratar o segredo (a não ser quando elas reconstituem uma imagem invertida do segredo viril, uma espécie de segredo de gineceu). Os homens as acusam ora por sua indiscrição, seu falatório, ora por sua falta de solidariedade, sua traição. No entanto, é curioso como a mulher pode ser secreta não escondendo nada, á força de transparência, inocência e velocidade. O agenciamento complexo do segredo, no amor cortês, é propriamente feminino e opera na maior transparência. Celeridade contra gravidade. Celeridade de uma máquina de guerra contra gravidade de um aparelho de Estado. [...] Há mulheres, ao contrário que dizem tudo, falam até com uma terrível tecnicidade; no entanto, no fim, não se saberá nada a mais do que no começo; terão tudo escondido por celeridade, limpidez. Elas não têm segredo, porque tornaram-se, elas próprias, um segredo.

Com as minhas palavras seu João mudou levemente o semblante, deixando transparecer num simples sorriso a sua extrema simpatia. Logo decidi apresentar meus primos, que haviam me acompanhado fielmente até ali. Não tardaria para que eu pudesse adentrar os territórios secretos dos afetos familiares.

Em determinado momento, a senhora ressaltou que não tinha muito que falar acerca de Elitonio (“eu sou só a mãe”) e não saberia fornecer informações realmente válidas. Dona Virgínia talvez deduzisse que eu precisava de um depoimento “especializado” sobre o assunto, e não de um genuíno “relato de mãe”. Ela parecia descartar a possibilidade de que eu pudesse valorizar as significações mais íntimas, sentimentais e emotivas que poderia transmitir acerca dos tortos percursos do filho. Talvez tivesse deduzido que eu não estaria ali para escutar as suas “dores e aflições”, mas apenas para ter informações “claras e objetivas” a respeito de Elitonio e logo depois me despedir sem jamais retornar. Esclareci que qualquer

relato seu (sobretudo enquanto mãe) seria de um valor inestimável para mim. Enfatizei ainda a seriedade do trabalho, em respeito à integridade de todos os presentes.

O segredo, definido como conteúdo que escondeu sua forma em proveito de um simples continente, é inseparável de dois movimentos que podem acidentalmente interromper seu curso ou traí-lo, mas fazem parte dele essencialmente: algo deve transpirar da caixa, algo que será percebido através da caixa ou na caixa entreaberta. O segredo foi inventado pela sociedade, é uma noção social ou sociológica. Todo segredo é um agenciamento coletivo. O segredo não é absolutamente uma noção estática ou imobilizada, só os devires são secretos; o segredo tem um devir. O segredo tem sua origem na máquina de guerra, é ela que traz o segredo, com seus devires-mulheres, seus devires-crianças, seus devires-animais. Uma sociedade secreta sempre age na sociedade como máquina de guerra. Os sociólogos que se ocuparam das sociedades secretas destacaram muitas leis dessas sociedades, proteção, igualização e hierarquia, silêncio, ritual, desindividuação, centralização, autonomia, compartimentação, etc. (DELEUZE E GUATTARI, 1997, p. 82-83).

Por outro lado, a possibilidade de utilizar o gravador nas conversações que se seguiram era motivo de relativa ansiedade para mim. A simples menção em gravar os depoimentos poderia soar bastante invasiva ou inoportuna para Senhora Virgínia, que já emergia como “centro” de minhas atenções. Como aponta Deleuze e Guattari (1997, p. 82): “Haverá sempre uma mulher, uma criança, um pássaro para perceber secretamente o segredo”. Era forte o impulso em tentar registrar aquele primeiro contato que se dera de modo tão surpreendente quanto inusitado, ainda que pudesse causar uma “má impressão” indesejada. Ao indagar Dona Virgínia se poderia gravar nosso diálogo, ela se opôs acanhadamente, frisando o que havia dito minutos antes: “Não acho que seja necessário não, porque eu nem tenho tanta coisa importante assim pra falar”.

Percebendo que se tratasse mais de timidez que de verdadeira aversão ao aparelho de gravação, decidi que poderia desenvolver o diálogo até um limite confiável, em que finalmente poderia utilizar o gravador sem causar grandes incômodos. Permaneci com o instrumento à mão, ainda que desligado, o que me pareceu uma boa estratégia para ir rompendo, pacientemente, qualquer espécie de resistência inicial.

Com o passar dos minutos, notei que o depoimento de Dona Virgínia foi ficando cada vez mais robusto e prolongado; numa mistura comedida de “bom humor”, “timidez” e em determinados momentos de “gravidade”. Vale ressaltar que, antes de tudo, trata-se de uma mãe enlutada (Cf. RODRIGUES E DAMASCENO, 2015). A senhora começou a fazer referências a acontecimentos da infância do filho, realizando paralelos com fatos mais recentes (alguns de meu conhecimento e outros não). Nesse contexto, eu procurava enfatizar

determinados detalhes importantes de sua fala, tomando o devido cuidado para não interrompê-la bruscamente ou desvirtuar assuntos em perspectiva.

Nosso diálogo, portanto, começou a se tornar mais fluido e, em muitos aspectos, mais confortável. Nesse momento, esclareci novamente que suas palavras eram extremamente essenciais para minha pesquisa, e já um pouco mais seguro fiz a menção de ligar o gravador. Dona Virgínia não mais se opôs, permaneceu firme em sua narrativa, como se tivesse percebido que ter ali um “ouvido interessado” vindo de tão longe não poderia ser uma experiência ruim ou indesejada. Com o cuidado necessário, percebi que havia rompido uma etapa crucial da nossa interação, embora ainda me mantivesse atento e cuidadoso com as colocações, gestos e trejeitos que poderia realizar: procurando exercer ali o devido tato social, no âmbito de uma interação face a face (GOFFMAN, 2011).

Como exemplo prático do referido tato, eu procurava manter o rigoroso cuidado e sutileza na forma como poderia me referir ao filho Elitonio, evitando a todo custo usar palavras fortes, pesadas e marcadamente simbólicas: como “bandido”, “criminoso”, “assaltante”, “assassinato”, “morte”, e muito menos as palavras ”estuprador” ou “estupro” (sobretudo na presença de Dona Virgínia). De todo modo, parecia bastante lógico para todos os presentes que, para eu me “destacar” até ali, vindo de Fortaleza, eu certamente deveria saber muitas coisas a respeito de Elitonio: coisas que, entretanto, eu não poderia falar ou me referir tão bruscamente e, sobretudo, numa primeira visita.

De fato, eu não era ingênuo em acreditar que meus interlocutores não imaginassem várias implicações. Todavia, procurava me referir sempre “ao que se diz” sobre Elitonio, reforçando que muito do que eu sabia se baseava mais em “boatos e notícias de jornais” da região, e que eu estava ali justamente para aperfeiçoar minhas percepções e esclarecer dúvidas, do que fosse possível e pertinente saber sobre o caso, no contato com a família de um “dos bandidos mais procurados da microrregião de Sobral”. Mesmo sabendo dos significados simbólicos de estar ali, eu procurava simplificar as coisas e afastar as más impressões que eu teria desenvolvido em diálogos anteriores com o Soldado Moreno, que tecia discursos geralmente negativos contra o bandido falecido e seu grupo familiar.

Procurava direcionar com sensibilidade a pauta das conversações especificamente para os meus objetivos de pesquisa. Imediatamente, tomei conhecimento que uma das mulheres mais jovens presentes no local era uma das irmãs de Elitonio: Leila, que desde o início se emprenhava em pontuar e acrescentar detalhes interessantes às falas de Dona

Virgínia. A outra mulher presente no local, por se tratar de uma vizinha, amiga da família, apenas permanecera calada, envolta numa clara atmosfera de curiosidade.

Os depoimentos iniciais da mãe eram pautados na recapitulação da imagem de um filho “bom como qualquer outro”, de modo que sua narrativa fora partindo da infância e adolescência de Elitonio (“uma pessoa boa”), evoluindo gradativamente para o outro extremo, o “filho bandido” (seduzido pela maldita “vida braba”): extremamente odiado pela população e brutalmente assassinado por matadores anônimos. A seguir destaco um trecho da entrevista, relacionado ao primeiro registro de gravação, do dia 18 de janeiro de 2015:

DONA VIRGÍNIA: O que eu tenho pra dizer é assim... Que ele era uma pessoa boa... Não fumava, não bebia. Me ajudou criar o neto meu, Miguel... Que ele amava o Miguel... Ai mas ele amava! Eu ia trabalhar no posto de saúde e ele quem ficava com o Miguel. Ele banhava, ele fazia o mingau, ele dava a ele, ele botava pra dormir. E, pronto, com quinze anos... E passou dezesseis, e passou dezessete, e passou dezoito... Maravilhoso!Aquele homem ali é um homem que conhecia ele68. Com dezenove anos o Elitonio perdeu a cabeça, tinha uma mulher e uma filha, foi-se embora pro Rio de Janeiro, disse que pra comprar uma moto pra quando chegar andar com a mulher e a filha. Com seis mês que ele tava lá a mulher botou um galho nele69. Nove mês ele veio simbora... Quando ele chegou que ele disse pra mim: “Mãe, minha vida não tem mais sentido...” Eu digo: “Besteira! Meu fi, tem tanta muié! Meu fi só existe uma muié que quando morrer cabou-se, que é tua mãe! Mas muié, nêgo arruma dez, arruma mil! Homem também é a merma coisa, né?” Aí pronto, aí ele foi pro Rio quatro vez e aí... (Silêncio)

PAULO: Ele passava quanto tempo nessas viagens?

DONA VIRGÍNIA: Ele ia, passava... (Pausa para pensar) Primeira vez passou nove mês... A outra vez ele passou seis mês... Outra vez ele passou três mês... A outra vez ele passou seis... Aí entrou na vida... Na “vida braba”... Eu, o pai dele, irmão, todo mundo dizia: “Meu fi, deixa disso!”

PAULO: Mas o quê que você define como “vida braba”? Essa vida que ele começou a ficar assim...

DONA VIRGÍNIA: Assim, né, de andar mais quem não era pra andar, né? Mas só que, ninguém, assim, ele não era pessoa de andar pegando nada de ninguém e trazendo pra dentro de casa, né? Ele nunca trouxe nada pra dentro de casa, né... E aí, quando deu em dezembro... Aí ele arrumou uma mulher (Maria), e quando foi em dezembro foi passar o natal na casa da muié dele. Deixou esse menino aqui (Aponta para a criança que brinca bem próximo), que é o filho dele, deixou comigo.

PAULO: Ah, ele é filho dele, esse meninozinho?

DONA VIRGÍNIA: É, é sim... Aí quando foi seis hora ele ligou pra mim, dia vinte e cinco. “Mamãe, só to chegando aí de noite...”. “Pois tá bom...” Aí, esperei de noite não chegou. Aí quando deu uma hora (da madrugada) ligaram dizendo que tinham matado ele, né... Pronto... E todo mundo tinha vontade de matar ele... Agora não sei

68 Apontando para o senhor que o pai de Elitônio barbeava, na outra extremidade do alpendre.

69 “Galho” é uma expressão pejorativa que denota o estigma de traição e infidelidade em relações conjugais. “Tomar um galho” significa ser traído pela companheira e vice versa.

porquê... Porque ele aqui ele não mexia com ninguém. Aqui é “Fechado”, né? De onde é de Canafista70 a Groaíras ele nunca mexeu com ninguém, e o pessoal era tudo doido pra matar ele. Não sei porque...

PAULO: Você acha que muita coisa era inventada sobre ele?

DONA VIRGÍNIA: Rapaz, eu acho que sim. Tinha muita gente... Porque depois que ele morreu esses roubo nunca se acabou-se, né? Tudo enquanto era ele, tudo enquanto era ele, tudo enquanto era ele!

PAULO: Ele sempre morou aqui ou morava em outro lugar? DONA VIRGÍNIA: Não, toda vida a gente morou aqui... PAULO: E como é que foi a “criação” do Elitonio?

DONA VIRGÍNIA: Que ele era uma pessoa muito obediente assim no começo, né... PAULO: O Elitonio trabalhava quando era criança? Ele estudava?

DONA VIRGÍNIA: Às vezes o pai dele levava ele pra trabalhar na roça... Ele estudava... Estudava...

O transitar de Elitonio entre o sertão da Pedra e o Rio de Janeiro, dos 19 aos 21 anos, tornou-se cada vez mais frequente. Como visto no primeiro capítulo, trata-se de uma prática bastante tradicional não apenas entre muitos núcleos familiares do sertão, como também em algumas cidades da microrregião de Sobral. Em Groaíras, por exemplo, o intercâmbio com a “cidade maravilhosa” sempre foi bastante intenso e corriqueiro. Como muitas pessoas no campo pesquisado relatam: desde muito tempo, quando os rapazes completavam 18 anos, era comum que fossem embora para o Rio de Janeiro. Como ressaltado no primeiro capítulo, muitos jovens trabalhavam como garçons e realizavam “bicos” diversos na capital carioca, com o intuito de juntarem algum dinheiro e retornarem ao Ceará, podendo montar seus próprios negócios e ascender socialmente e economicamente.

É inegável que a tradição ainda se mantenha viva para muitas famílias do sertão. É possível constatar que muitos grandes comerciantes em Groaíras, quando jovens, tiveram suas respectivas experiências (boas ou ruins) na capital carioca. Existem exemplos interessantes, como do Seu Farias, dono de um bar muito conhecido, localizado no centro da pequena cidade e também o Seu Martins, que possui uma rede de restaurantes bastante frequentados na cidade de Sobral. Em outro momento da conversa, Dona Virgínia explicita:

DONA VIRGÍNIA: A primeira vez que ele foi (para o Rio de Janeiro) ele trabalhou numa obra. Aí ele disse, passou nove mês, aí ele chegou e disse pra mim: “Olhaí,

mãe, quase me lasco de carregar cimento no ombro!” Passou nove mês... Aí depois ele foi, só trabalhava lavando carro, né? E não era de carteira assinada porque ele dizia assim: “Eu não quero carteira assinada pra na hora que eu disser eu vou mimbora eu vou mimbora mesmo! Não tem história de papel, num sei o quê, num sei o quê...” E pronto, só trabalhava lavando carro... Ganhava bem ele... No Rio de Janeiro só era de casa pro trabalho... Não bebia...

PAULO: Você acha que ele ter ido pro Rio teve alguma influência? Sobre ele ter