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3 MODELOS DE CRIAÇÃO COMPARTILHADA: OS ANTECEDENTES

3.4 UM ESPAÇO PARA AS CONEXÕES

3.4.2 Aproximações entre sala de ensaio e sala de aula

Ainda na primeira fase de nossa pesquisa, foi possível colocar o material teórico dos métodos lado a lado, em busca daquilo que os aproxima e os distancia. Esse, portanto, foi um dos primeiros resultados dessa imersão e já tivemos a chance de apresentar comunicações orais – que serviram de base para esse subcapítulo -, sobre o tema, no Seminário de Pesquisas em Andamento (2017), da USP, e no Encontro do Grupo de Trabalho Pedagogia das Artes Cênicas (2017), da ABRACE.

Baseando-nos nas perspectivas teóricas mostradas nos capítulos anteriores dessa dissertação, podemos enumerar pelo menos quatro grandes aproximações entre o drama e as criações compartilhadas:

1. Trabalho aprofundado sobre o coletivo e a criação partilhada; 2. Valorização do processo sobre o produto;

3. Divisão determinada das funções criativas (melhor localizada no processo colaborativo, mas também encontrada em experiências das décadas de 1960 e 1970), mantendo um dos integrantes como facilitador;

4. Dramaturgia autoral.

De fato, o trabalho com o coletivo não é novidade no teatro. Desde as origens ritualísticas da linguagem teatral, ele não podia ser realizado sozinho. Sempre houve a necessidade do outro – tanto o outro artista, que ajuda a pensar a cena, quanto o outro público. Entretanto, do ponto de vista da criação, nem sempre todos os trabalhadores cênicos tiveram espaço para colocar-se criticamente e ter uma participação ativa nas decisões poéticas.

O caráter coletivo é valorizado, tanto no ensino quanto no ambiente profissional, por ser essa característica essencial da linguagem e por carregar consigo um vasto valor pedagógico. No processo de criar junto se aprende a ceder, a pensar no benefício da proposta geral, a ter argumentos para defender o que se acredita, a compartilhar, a decidir em grupo. Rafael Ary reflete que:

o impacto de um processo colaborativo na formação dos artistas envolvidos é explicado pelo forte caráter pedagógico imbuído na prática, que está presente em seus procedimentos criativos mais basais e pode ser observado no cotidiano de diversos grupos pelo Brasil. O artista não cria um produto somente, como diria Abreu, ele está em formação, como artista e como ser humano (ARY, 2015, p 6).

Essa formação do artista e do humano também não pode deixar de ser tocada no âmbito educacional do teatro. Aproveita-se que as crianças têm uma tendência natural pelo agrupamento (parte de nossa natureza, na verdade, até que isso seja tolhido) e utiliza-se tal característica na linguagem teatral para desenvolver um processo criativo que compartilhe saberes.

Contudo, o conhecimento adquirido durante o envolvimento com o processo do drama vai além da possibilidade de nomear aprendizagens em áreas previamente determinadas – objetivos específicos (relacionados com o conhecimento de conceitos, habilidades, conteúdos e formas artísticas) interagem com objetivos não específicos (relacionados com o desenvolvimento de atitudes e valores), fazendo que a experiência viva do fazer teatral, do agir e do observar concomitantes, transforme a compreensão ou o entendimento dos participantes em nível estético e artístico (CABRAL, 2006, p 31-32).

Organizar estruturalmente uma prática que exista de fato coletivamente - esteja ela pensando ou não nos desenvolvimentos que serão adquiridos extra sala de trabalho - não é tarefa fácil e, se olharmos com atenção, podemos identificar que as propostas aqui estudadas encontraram respostas muito semelhantes para essa questão. Vicente Concilio, em uma comunicação na qual apresentou os pontos de contato entre o processo colaborativo e a pedagogia de projetos, aponta que ambos trabalham sobre um sistema no qual o grupo é convocado a encontrar (e/ou propor) respostas para perguntas elaboradas por si mesmos - um membro é escolhido para trazer inquietações, que sejam frutos de pesquisas anteriores sobre o tema, para que os demais participantes se aventurem a respondê-las.

Essa ferramenta possibilita que a coletividade seja responsável por “seu próprio percurso de construção de conhecimento, em um processo oriundo de curiosidade genuína e que consolida uma pedagogia que lança perguntas, ao invés de impor pontos de vista e professar respostas” (CONCILIO, 2009, p. 1). Entendendo o ponto localizado pelo pesquisador em sua fala, podemos considerar que a mesma justaposição é verdadeira também na comparação entre as criações compartilhadas, em geral, e o process drama. Em ambos encontramos semelhanças fundamentais na maneira de organizar e estimular a participação coletiva para que o resultado cênico-pedagógico se consolide como uma real união da contribuição de todos - sem perder em esteticidade e em poder de comunicação.

Vemos, por exemplo, afinidades no sistema de perguntas-chave, encontrados no process drama e repetidos nas improvisações colaborativas; na utilização de um pré-texto que funciona como tema disparador da criação; nos episódios, cujo objetivo é avançar um ponto a mais na narrativa traçada, tal qual acontece nos workshops, vivências e improvisações das criações compartilhadas; na divisão estabelecida para organizar o processo criativo, sintetizada pela tríade criação-execução-recepção apresentada por Hornbrook; e mesmo nas ferramentas mais rotineiras que sustentam as demais, como os rituais de canto e dança, a leitura de fragmentos de textos diversos e os jogos improvisacionais.

E, uma vez que se valoriza o coletivo, o contato, a fricção e a troca de saberes, parece natural que se valorize também o processo de criação sobre o produto final. O que está em jogo, tanto no drama quanto na criação compartilhada, é que não há a possibilidade de trocar sensações, percepções e críticas se não há o tempo de maturação necessário à experiência, se o espetáculo precisa ficar pronto em um mês. Para criar uma apresentação dentro desses parâmetros é necessário um espaço temporal para que o grupo ganhe confiança entre os participantes, para que se sintam à vontade com a criação, para que o tema reverbere neles, para que os primeiros improvisos gerem resultados, para a chegada das primeiras propostas dos núcleos criativos, para os primeiros debates sobre as propostas, para um novo processo de criação.

Esse tempo - que também não deve ser apressado ou o resultado final não será satisfatório - precisa ser vivido. Mas ele só cabe dentro de uma perspectiva que veja no processo sua razão de existir. Que entenda a pesquisa da narrativa e da linguagem como fonte necessária de vida para um espetáculo (ou mesmo uma mostra parcial, se pensarmos na escola). Se há essa perspectiva de valorização da descoberta processual da linguagem própria do grupo, o tempo dilatado pode deixar de ser um problema, pois atentamos novamente para a

perspectiva de que ele é „gasto‟ e não „perdido‟. Ele é investido no crescimento do grupo, da cena e da linguagem.

Mesmo assim, o gerenciamento do tempo e a escolha consciente por promover um encontro com um público até então alheio ao que estava sendo construído segue como uma questão que precisa ser revolvida. No caso do process drama (na visão que defendemos) e do processo colaborativo a solução encontrada também foi a mesma: manter as funções sob coordenação de um subgrupo específico e, com isso, garantir que haja um facilitador coordenando os procedimentos.

A divisão determinada das funções, deixando claro para todos quem será o (ou os) responsável pela iluminação, pela cenografia, pelo figurino, pela interpretação, pela dramaturgia, pela encenação etc., permite, primeiro, que haja alguém constantemente preocupado com esse aspecto e, depois, que a sua responsabilidade diante da criação grupal se torne consciente – principalmente no caso do ensino com crianças. Ao mesmo tempo, o ato de escolher alguém para ser responsável por um ou outro elemento é um ato de confiança e um ato de solução de problemas.

Quando essa pessoa é selecionada, delega-se a ela o poder de decidir qualquer impasse que diga respeito a sua área e que não possa ser resolvido coletivamente, o que só acontece porque todo o grupo percebeu que esta pessoa tem uma aptidão para lidar com aquele elemento. Delegar responsabilidades ao outro e assumir responsabilidades para si também é um aprendizado constante. Junto a essa deliberação de poder é importante também estimular o diálogo e o poder argumentativo para convencer os demais a acreditarem na sua ideia, pois é preciso manter-se sempre ciente de que a função serve ao coletivo e não o contrário - portanto, decisões completamente arbitrárias que não dialoguem com a produção exercida em compartilhamento não cabem nesse processo.

O papel do diretor/encenador/facilitador também parece convergir em ambas as perspectivas - profissional e pedagógica, se é que podemos levar adiante essa separação minimamente didática. O que se espera, em ambos os lugares, é uma pessoa que, ciente do lugar hierárquico que lhe coube historicamente, escolhe tentar subvertê-lo e, assim, ter um lugar de fala menor para que o grupo possa abrir sua capacidade expressiva. Tentando não perder de vista a posição que deve ocupar, ele assume a missão de gerir escolhas que melhor representem a coletividade sem que o resultado final perca a capacidade de comunicar-se com o público ou a esteticidade desejada. Ele é, enfim, uma espécie de coringa que divide seu

tempo dando assistência a todas as áreas de criação em busca da unidade cênica, que só pode vir por meio de uma unidade grupal.

Por fim, o fato dos dois modelos preocuparem-se em desenvolver textos próprios durante seus processos evidencia o caráter autoral e representativo que ambos mantêm. A decisão de compartilhar a criação carrega consigo a necessidade de que esse grupo de pessoas se enxergue – individual e coletivamente – no resultado final do trabalho. Por isso, buscar uma expressão autoral é imprescindível para que o coletivo continue existindo como corpo minimamente coeso. Não seria possível manter um processo verdadeiramente compartilhado se os alunos/atores envolvidos deixassem de se enxergar no produto, pois este voltaria a ser a visão de um dramaturgo onisciente, cujas indicações textuais deveriam ser seguidas à risca.

Sendo assim, reforçamos que a pedagogia do teatro e o trabalho dentro de grupos profissionais são duas áreas de uma mesma linguagem artística e, portanto, refletem as mesmas necessidades expressivas, políticas e estéticas. Podemos pensar, então, a partir desse ponto, uma reaproximação dos métodos e das instâncias, para tentarmos verificar em que medidas essa fricção pode ou não potencializar o ensino de teatro para crianças dentro da escola pública.

Por isso, dedicaremos o próximo capítulo à análise aprofundada da prática que realizamos, em horário extraclasse, dentro da Escola Municipal São Brás, em Salvador. Para darmos um panorama dos acontecimentos diários da experiência sem deixar de mergulharmos nas questões relevantes à análise da pertinência do uso das metodologias, estruturaremos nossa narrativa a partir dos temas mais representativos trazidos por essa relação de ensino- aprendizagem.