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3 MODELOS DE CRIAÇÃO COMPARTILHADA: OS ANTECEDENTES

3.2 A CRIAÇÃO COLETIVA NO BRASIL

3.2.1 Propostas de sistematização na América Latina

Poderíamos discorrer longamente sobre os coletivos que sustentaram essa prática como um ambiente de experimentação e resistência. Mas, para efeito do que cabe à nossa pesquisa, trataremos apenas de algumas características relevantes que, para certos estudiosos, distancia a criação coletiva praticada nos países vizinhos daquela praticada no Brasil, nos utilizando, para isso, de sistematizações desenhadas pelos líderes de duas dessas companhias.

Como primeira divergência, podemos pensar o próprio conceito de líder, mestre ou diretor. Apesar de já termos mencionado a possibilidade de que não houvesse a abolição total das funções, essa era uma realidade bem mais presente nas companhias estrangeiras do que nas equipes brasileiras. Em vários grupos expoentes do Nuevo Teatro Latinoamericano as funções foram mantidas em suas especificidades e jamais houve um movimento real para que

a assinatura do autor ou do diretor fosse eliminada. Mesmo assim, tanto no Teatro Experimental de Cali quanto no Teatro La Candelaria - grupos sobre os quais encontramos trabalhos sistematizados sobre seus modos de fazer - o espírito coletivo se mantém no entendimento de que não há nenhuma área do espetáculo que seja responsabilidade de apenas uma pessoa.

Isso se torna possível porque, a exemplo das ideias supracitadas de Eduardo Vásquez Pérez, os atores estão no centro do desenvolvimento, estimulando a criação por meio das improvisações. A partir daí, a concepção do espetáculo é sempre “„descoberta‟ ou proposta - ou ainda, negociada - por todos os integrantes do trabalho. Ou seja, novamente nos encontramos diante da ideia de uma „encenação coletiva‟” (ARAÚJO, 2008, p. 40). Nada disso seria possível sem um método estruturador, segundo Buenaventura. Diferente da crítica que se via no Brasil à formação e à estrutura pré-determinada de diálogo, o diretor colombiano acreditava que só é possível garantir um processo verdadeiramente compartilhado se todas as pessoas envolvidas conhecem e dominam o método, estando, assim, aptos a aplicá-la de maneira coletiva.

Entre os dois grupos símbolos do Nuevo Teatro Latinoamericano, entretanto, existe uma divergência crucial sobre quem seria o posto mais alto na antiga hierarquia e, consequentemente, qual escrita deveria ser a mais coletivizada: a escrita cênica ou a escrita dramatúrgica. O TEC apostou no primeiro, enquanto o La Candelaria apostou no segundo. Isso, inevitavelmente, causou diferenças estruturais na maneira como ambos organizavam seus processos e na maneira como, posteriormente, eles sistematizaram esses caminhos.

Beatriz Rizk, no livro que escreveu sobre Enrique Buenaventura, comenta que o desejo de compartilhar a encenação nasceu pouco a pouco, durante o próprio fazer, quando o diretor e o grupo perceberam que Buenaventura estava, para os próprios atores, quase sacralizado como a estrela da companhia. A partir daí, com uma „aprovação‟ do encenador, o grupo deu início a um “coletivo de direção”, que começou como um subgrupo responsável pelos debates sobre concepção e organização, mas foi crescendo até comportar todos os membros da companhia. Foi nesse momento, já com todo mundo envolvido, que eles mergulharam mais profundo na pesquisa das ferramentas, visando a uma sistematização que fosse possível de ser publicada.

Rizk comenta que o processo mostrou possuir, durante a sistematização, cinco etapas de desenvolvimento:

1. A investigação;

2. A elaboração do texto (com a sua respectiva análise crítica); 3. A improvisação („coluna vertebral do processo‟);

4. A montagem;

5. A apresentação diante do público (o que inclui a síntese dialética do espetáculo) (RIZK, 1991 apud ARAÚJO, 2008, p. 41).

É claro que, por mais defensor do método que Buenaventura fosse, essa divisão é bem mais didática do que fielmente praticável, já que as fronteiras entre as fases são borradas. Mesmo olhando só para a divisão estrita, fica evidente o ir e vir entre texto e cena que comentamos em momento anterior: na estruturação do TEC, um subgrupo de dramaturgos realiza uma dramaturgia coletiva com base em pesquisas teóricas sobre o tema selecionado; esse texto, então, é levado para que os atores improvisem sobre ele e o desmontem, o repensem, o refaçam. Muitas vezes o elenco também era dividido em subgrupos para que cada conjunto pudesse improvisar sobre temas específicos e, com isso, todos poderiam sempre dispor de uma pequena plateia interna, dirigida a analisar e criticar as cenas e os jogos realizados.

O conceito de „desmontar‟ o texto é muito importante para essa perspectiva porque, de saída, Enrique não acreditava que a improvisação pudesse criar a concepção da obra - ao contrário do que experimentaram vários outros grupos cooperativos -, da mesma maneira que não acreditava na serventia da improvisação para comprovar uma concepção prévia. Ela estaria, assim, em um lugar entre o servir de muleta e a instrumentalização para comprovar o já sabido. Dessa forma, a improvisação se encontraria, então, na posição de estabelecer sentido cênico-visual para um texto, gerado sobre fontes teóricas, que está disponível a reescrituras em prol da melhora geral do espetáculo.

Esse mesmo impulso sistematizador também se instalou dentro do Teatro La Candelaria, por meio do diretor Santiago García. Porém, apesar da vontade de que o método pudesse ser experimentado por outras pessoas em outras situações, ele nunca foi entendido como sistematização, mas como „tentativas‟ empreendidas pelo grupo para estruturar a coletividade. Com uma estrutura, em si, muito parecida com a que vimos acima, a diferença central parece mesmo ser a compreensão de que o compartilhamento deveria estar concentrado sobre o processo de criação dramatúrgica e não sobre a concepção da cena - tanto

o é, que a figura de Santiago nunca esteve questionada como diretor-centralizador. Mesmo assim, a pessoa alçada à centralização do processo é o ator - o que, outra vez, pode ser lido como a manutenção do aspecto coletivo.

Para organizar esse caminho didaticamente, Santiago localiza sete momentos do processo: a busca pelo tema (que, em geral, ainda será vago quando a prática começar e só ganhará formato melhor definido ao longo das improvisações); a definição do argumento (nesse momento, justifica-se o tema e se define razões, explicações e fundamentos); o encontrar da motivação (quando o grupo passa a entender as vontades coletivas, subjetivas ou racionais que os fazem querer explorar aquele assunto); a realização da investigação (a equipe se divide para encontrar e analisar fontes e inspirações que possam ajudar no aprofundamento do tema); a etapa das improvisações (momento em que texto e cena começam a ganhar corpo por meio da experimentação, sempre nova, dos materiais selecionados na etapa anterior); a hipótese de estrutura (é primeira tentativa de síntese entre o tema, seu argumento, os materiais selecionados e as improvisações, que normalmente chega na forma de uma primeira proposta de roteiro que vai sendo novamente improvisada, questionada e definida até que ao final se tem uma segunda proposta de roteiro mais próxima do que esperam do resultado final); e a montagem e o texto definitivo (última parada antes do público, é a hora de defender e finalizar as propostas visuais e textuais na preparação do que será efetivamente levado ao palco, disponível a receber novas influências dos espectadores) (ARAÚJO, 2008, p. 49-51).

No Brasil, passados os anos de repressão ditatorial e em meio a uma retomada do trabalho autoral de encenadores que buscavam um avanço técnico no teatro, a criação coletiva acabou sendo circundada por uma aura de amadorismo e descrença que foi gerada tanto por alguns profissionais que não viam avanço na pesquisa dos grupos coletivistas quanto por companhias que tinham passado pela fase da cooperativa, mas afirmavam ter seguido em frente com suas experiências sobre a encenação e o compartilhamento. Foi dessa maneira que a criação coletiva acabou recebendo muito do caráter de inferioridade que ainda vemos nos dias atuais: “uma arte amadora, experimental, oposta aos padrões empresariais, incipiente quando se trata de publicações de textos, reflexões e sistematizações de seus instrumentos de trabalho” (FISCHER, 2003, p. 18) - características que passaram a ser vistas como prejudiciais ao teatro brasileiro do momento, ainda que elas fossem propositadamente importantes para algumas equipes.

Essa leitura se deve, em parte, “ao forte enfoque experimental que algumas companhias dos anos 70 deram à espontaneidade criativa dos artistas e à aversão aos parâmetros teóricos

que almejassem sustentar suas práticas”. Stela Fischer (2003, p. 19) nos lembra de que esses eram pré-requisitos para as propostas artísticas de grupos como o Asdrúbal trouxe o trombone: projetos que mergulharam na possibilidade de descobertas e experimentações que buscavam repensar as formalizações que eram sagradas para o método tradicional de criação.

Por outro lado, a abolição das funções de maneira radical e a ausência do treinamento de ator em algumas equipes também deram margem à leitura de amadorismo, uma vez que se vivia o período de fortalecimento das grandes teorias do teatro físico, que consideravam os corpos e as vozes exaustivamente treinados dos intérpretes a premissa necessária à uma representação bem feita. Qualquer evento fora desse novo padrão, mesmo quando a descoberta de um jeito próprio de atuação representava a vontade expressa do grupo, era lido como incompletude, não profissionalismo.

Edélcio Mostaço comenta também que nenhuma das escolhas traçadas foi tomada desapropriadamente em relação às vontades gerenciadas pelos jovens artistas:

Esse olhar adolescente, bem como suas idiossincrasias, está no ar. A emblemática criação do Asdrúbal insiste no uso do jogo, na colagem de elementos visuais, nos instantâneos da vida detectados a partir de uma juventude desinteressada do passado político do país. Assim como Victor flagra o mundo através do olhar infantil, Trate-me Leão o faz a partir dos jovens, não sendo fortuito que em seu processo de elaboração longos laboratórios tenham sido desenvolvidos com amigos do elenco, alguns integrantes do grupo de poesia Nuvem Cigana, expoentes cariocas da chamada „geração mimeógrafo‟. [...] Vitalista em sua ideologia pan-erótica, a cena desses grupos jovens é exuberante, alegre, contínuos louvores à irrestrita criação coletiva, marcando um desdobramento contracultural vincado por atitudes marginais. Negam autoritarismos, buscam variantes em relação ao sistema da produção empresarial, lançando-se em salas e horários alternativos, firmando novos circuitos para as plateias. Eles absorveram fundo, certamente, as propostas neoconcretas surgidas desde a década anterior, redimensionando-as ao seu talhe, formato e circunstâncias. (MOSTAÇO, 2013, p. 237)

Fora as questões técnicas, que eram primordiais para uns e desnecessárias a outros, os conflitos internos da criação coletiva também geraram uma série de discursos oposicionistas. A questão da hierarquia, em verdade, parece nunca ter sido totalmente resolvida - ao menos aos olhos externos aos grupos, já que em poucos escritos produzidos por aqueles que utilizavam o modo de trabalho isso aparece como empecilho à utilização do coletivismo. Em grande parte dos casos, sempre houve uma pessoa dentro da companhia que, de maneira

exposta ou velada, respondia majoritariamente sobre a dramaturgia ou sobre a encenação, sendo vista pelos colegas e pelos espectadores como um dirigente da companhia - se não realmente encarado como líder, no mínimo era entendido como o representante mais conhecido.

Quando se conseguia estabelecer uma horizontalidade forte e totalitária, outro problema surgia: o desejo de agradar a todos os integrantes por meio da inserção cênica de um número mais ou menos igual de contribuições propostas por cada um. Por vezes, conta-se hoje, esse compromisso com o fazer sempre coletivamente e desejar que todos se sentissem igualmente representados pela cena do grupo levou as companhias dos anos 70 a um texto final que buscava atender a todas as participações “sob a forma de uma grande colagem de fragmentos, resultando muitas vezes em espetáculos longos, prolixos, com certa redundância, o que dava uma impressão caótica e „suja‟ – como que denunciando o processo” (NICOLETE, 2002, p. 322). Deparavam-se, então, com o perigo do descontrole sobre a produção que não seleciona seu material considerando aquilo que é ou não indispensável para a proposta cênica e para a mensagem que se quer transmitir. É esse risco, somado, principalmente, à aparente estagnação no uso dos recursos técnicos disponíveis, que abre a lacuna para que o encenador volte ao centro da produção.

É claro, diante de tudo que já dissemos, que esse não era o desejo de todas as companhias e, por consequência, o estigma do amadorismo também não caberia a todos os grupos - em nossa opinião, não deveria caber a nenhum, pois considerar tudo que é amador como inferior já é um equívoco em si. “O grupo Ornitorrinco, por exemplo, partia de uma base técnico-temática apurada para então desenvolver espetáculos como Teatro do Ornitorrinco canta Brecht e Weill (1977) e Mahagonny Songspiel (1982)” (FISCHER, 2003, p.20), da mesma forma que Buenaventura contradiz as acusações de que faltava o interesse na pesquisa ao estimular a sistematização de seu método.

Portanto, seja como um movimento interno de desdobramento dentro de seu próprio percurso, seja como exceções – ou momentos de exceção dentro de uma determinada trajetória artística grupal -, é problemático definir a criação coletiva apenas por meio da supressão das funções e do „todo-mundo-faz- tudo‟. Incorremos, se assim o fizermos, no risco de generalizações amplas demais ou na manutenção de visões reducionistas que se consolidaram através do tempo (ARAÚJO, 2008, p.55).

Mas, essa leitura acabou sendo assumida como uma verdade quase absoluta sobre o movimento, o que causou certa repulsa sobre a coletivização e seus postulados quando a era dos encenadores chegou promovendo avanço nas pesquisas de linguagem e propondo novos usos para a tecnologia disponível.

Evidentemente, as práticas coletivistas na criação artista não se encerraram com a chegada dos anos 1980. Como aparece na qualidade de resposta política, de viés revolucionário, que almeja um funcionamento social, que promova a igualdade entre as pessoas, ela ressurge, no mundo, sempre que uma necessidade sociológica se apresenta - seja pelo tolhimento da liberdade individual, seja por problemas nas condições de trabalho com a arte. No Brasil, um cenário propício voltou a aparecer quando as políticas públicas pararam de responsabilizar-se pela produção cultural do país e delegaram o poder de decisão aos empreendimentos privados, o que excluiu tanto as manifestações populares quanto os grupos de pesquisa continuada do acesso a pouca verba disponível.