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PARTE I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO 9

3.   Comportamento motor na infância 37

3.2.   Aquisição e desenvolvimento de competências motoras na infância –

Comportamentos nos domínios do ritmo, do movimento e da música têm sido considerados de forma inter-relacionada, dado que essas áreas de competência se desenvolvem em simultâneo e se influenciam mutuamente (Miller, 1983). Nesse caso, para uma abordagem à música através do movimento será pertinente conhecer-se de que modo as componentes de movimento se manifestam na presença de música. Esta ideia é corroborada por Carlson (1980), ao afirmar: “Understanding what our body motions

are capable of doing is the basis of learning how to use movement with music” (p. 52).

O processo de aquisição e desenvolvimento de competências motoras na infância relaciona-se com a idade mas não depende exclusivamente do factor cronológico, sendo muito individualizado devido a factores hereditários e às experiências individuais de cada criança. Por conseguinte, Gallahue (2002) considera que classificar e comparar as actividades motoras da criança apenas segundo referências cronológicas pode originar discrepâncias entre os “níveis de capacidade das crianças «reais»” e os das “crianças «padrão» míticas dos manuais” (p. 81).

O mesmo autor salienta que, num quadro progressivo de períodos e estádios definidos para a aquisição de comportamentos de movimento, ocorrem momentos de regressão no desenvolvimento motor como forma da criança se adaptar a novas aquisições. No entanto, apesar de uma elasticidade adaptativa das crianças, embora estas possam desenvolver mais tarde competências motoras de fases anteriores, o processo será mais lento e exigirá um esforço acrescido. O mesmo é referido por Gordon (2000c) em relação ao desenvolvimento musical.

Segundo Boulch (1997), entre os quinze meses e os três anos de idade, numa actividade exploratória que ocorre mediante um tipo de vigilância difusa (isto é, com a atenção dispersa em várias direcções), vai-se estabelecendo um equilíbrio provisório entre a espontaneidade e o controle do movimento. Este processo é fundamental para a aquisição de uma motricidade global coordenada, para a estruturação do funcionamento motor no espaço e no tempo, para o aperfeiçoamento de automatismos e para uma actividade motora em que a parte mental tenha cada vez maior interferência.

Até cerca dos três anos a criança tem uma consciência difusa do seu corpo, resultante de uma experiência global, o que não a impede de relacionar-se com o espaço circundante. Ao focar a atenção no seu próprio corpo – resultante do reconhecimento do seu próprio eu – inicia um período de estruturação de um esquema corporal consciente, associado a uma descoberta analítica das características e possibilidades das diferentes partes do corpo. Nesse processo, a percepção dos elementos de espaço antecede em muitos meses o da percepção do próprio corpo. Com particular interesse para o âmbito do nosso estudo, importa considerar que entre os três e os seis anos a criança atravessa um período transitório quer no plano da estruturação espacial-temporal quer no da estruturação do esquema corporal (Boulch, 1997).

Entre os três e os seis anos ocorre um grande desenvolvimento ao nível das habilidades motoras gerais que envolvem os músculos maiores, o que resulta numa maior eficiência em padrões de corrida ou de salto.

Como pode observar-se no Quadro 1, os comportamentos motores estão tipificados numa progressão de aquisição segundo quatro fases de movimento com características particulares: (i) movimentos reflexos (até um ano de idade), (ii) movimentos rudimentares (entre um e dois anos de idade), (iii) movimentos fundamentais (entre dois e sete anos de idade) e (iv) movimentos especializados (a partir dos sete anos de idade).

Na fase de aquisição dos movimentos fundamentais – a que mais nos interessa no âmbito do estudo realizado –, as crianças vão adquirindo um controlo da estabilidade cada vez maior e são capazes de explorar o potencial motor dos seus corpos em termos de locomoção no espaço. A mecânica corporal dos movimentos fundamentais é essencialmente a mesma para todas as crianças, exceptuando-se as que apresentem alguma limitação particular ou deficiência de desenvolvimento (Gallahue, 2002).

Quadro 1. Fases etárias e estádios de desenvolvimento motor (in Gallahue, 2002)

Gallahue e McClenaghan (1978) identificaram três estádios principais de progressão motora na fase do movimento fundamental: (i) estádio inicial (entre dois e três anos de idade), que corresponde às primeiras tentativas observáveis na criança de realização de um padrão de movimento, estando ausentes componentes de acção preparatória e de finalização; (ii) estádio elementar (entre quatro e cinco anos de idade), que constitui uma transição em que a criança melhora a coordenação e a execução, ganhando maior controlo sobre os seus movimentos; e (iii) estádio maduro (entre seis e sete anos de idade), em que são integrados todos os movimentos num acto motor bem coordenado e com um objectivo definido (em termos de controlo e de mecânica o movimento assemelha-se ao padrão motor de um adulto eficiente, mas fica aquém na execução quando avaliado quantitativamente).

A criança “progride sequencialmente e de um modo segmentar de um estádio para outro através da interacção entre a maturação, a experiência e o objectivo da própria tarefa” (Gallahue, 2002, p. 77), mas ainda que as aquisições motoras sejam “universais na ordem por que aparecem” (Gallahue, 2002, p. 50), o seu grau de aquisição varia de criança para criança.

Devido a factores ambientais e hereditários, o desenvolvimento da motricidade é um “processo descontínuo com variações quer entre os padrões quer dentro de cada

padrão” (Gallahue, 2002, p. 79), pelo que uma criança pode apresentar para um mesmo padrão motor – galopar, por exemplo – combinações entre componentes iniciais, elementares e amadurecidas de movimento.

Salienta-se que, ao contrário do que sucede na fase de movimento rudimentar, em que a maturação é suficiente para justificar a aquisição de competências motoras, a transição do estádio de desenvolvimento elementar para o estádio maduro dependerá também de factores ambientais (Gallahue, 2002). Assim, independentemente do “potencial” de desenvolvimento da criança, os seus níveis de desempenho motor relacionam-se não só com processos naturais (biológicos) mas também com situações de estimulação e aprendizagem (sociais). Nesse caso, a partir do primeiro ano de vida o desenvolvimento de competências sociais tem um papel determinante para a aquisição competências motores em interacção com as aquisições biológicas.

A acção de andar em posição vertical, por exemplo, poderá ser considerada como uma competência de ordem social pois, não sendo um processo totalmente instintivo do ser humano, a criança necessita receber informação do meio ambiente exterior (imersão e interacção) que a estimule a desenvolver a competência da marcha segundo os padrões de comportamento dos adultos.

Uma criança com três anos que se tenha desenvolvido num ambiente favorável ao aperfeiçoamento da motricidade global e à acomodação da postura corporal (com reflexos na eliminação de tensões parasitas e de sincinesias19), poderá mobilizar acções de locomoção com bom nível de eficácia, mantendo o equilíbrio, coordenando braços e pernas, demonstrando sentido de lateralidade e orientação espacial; sendo que quanto maior o desenvolvimento maior a velocidade, a exactidão e a economia dos movimentos (Boulch, 1997).

Storr (1992) salienta que se tem subestimado a importância do movimento enquanto elemento fundamental do comportamento musical, exemplificando com o facto de as crianças com quatro ou cinco anos terem dificuldade em cantar sem mover

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A sincinesia é uma perturbação na coordenação dos movimentos (por simpatia mórbida) em que, por exemplo, se erguem os dois braços quando se pretendia erguer apenas um deles.

as mãos ou os pés. Ora, o conhecimento disponível sobre aquisição e desenvolvimento motor poderá ser potencializado, também, em estudos sobre comportamento e desenvolvimento musical.

Numa perspectiva didáctica, a intersecção entre competências de movimento e comportamentos musicais é particularmente evidente nas propostas de Jaques-Dalcroze ou de Willems, em que um repertório de comportamentos motores prevê capacidades de balançar, andar, correr, saltitar, saltar, galopar ou fazer gestos em interacção com o carácter e as características rítmicas da música20.

Nesse âmbito, Willems refere: “na criança, é o instinto fisiológico, dinâmico e

motor que importa” (s.d.b, p. 18), “não é preciso exigir que o movimento seja

absolutamente exacto, contanto que as crianças sejam ritmicamente activas. [...] o essencial é que os movimentos sejam naturais e descontraídos” (s.d.a, pp. 14-15). No mesmo sentido, ainda que com tipologias de intervenção diferentes, Gordon (2000b, 2000c) propõe que as crianças sejam encorajadas a responder à música recorrendo a movimentos corporais amplos e fluidos, de exploração livre do espaço.

Estas tipologias de intervenção musical pressupõem, assim, que a criança domine progressivamente questões motoras relacionadas com a aquisição do esquema corporal (coordenação entre partes do corpo), o controlo do equilíbrio, a capacidade de realizar padrões de locomoção com mecânicas de movimento específicas, os elementos de espaço (para a frente, para trás, para o lado, na diagonal), a adaptação de uma mesma acção motora a diferentes velocidades ou, simplesmente, a capacidade de inibir / activar o movimento (parar / entrar em acção) quer por iniciativa própria quer sob comando.

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A organização de uma sessão segundo a metodologia Willems pressupõe diferentes momentos de intervenção musical, focando actividades de quatro tipos: audição (20 minutos), canção (20 minutos), batimentos rítmicos (10 minutos) e movimento (10 minutos). Para a realização das actividades de movimento, Willems (s.d.d, s.d.e) criou peças diferentes para cada uma das acções motoras previstas. Assim, em cada sessão e de acordo com cada peça musical, começava-se por andar e depois correr. De acordo com a idade das crianças, estas eram também solicitadas a balançar (desde os três anos), a galopar e a saltitar (a partir dos quatro anos) ou a andar para trás (a partir dos cinco anos). Cada peça para piano determinava um tipo de comportamento motor, sendo que para crianças de quatro e cinco anos algumas peças incluíam sequências de acções diferentes (que poderemos entender enquanto coreografia).