• Nenhum resultado encontrado

PARTE I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO 9

4.   Investigação sobre música e movimento na infância 53

4.2.   Dimensão rítmico-motora do comportamento musical – Revisão

4.2.4.   Coordenação motora e sincronia rítmico-motora com a música 83

Mediante conclusões do estudo de Moog (1976a, 1976b), ganha relevo a ideia de que, a partir dos quatro anos de idade, se estabelece um conjunto significativo de competências motoras propício a que a criança realize movimentos sincronizados com o ritmo da música.

Comportamentos de sincronização rítmica ocorrem quando há uma sobreposição exacta entre o fluxo rítmico da acção motora e o fluxo rítmico do estímulo musical. Ou seja, quando os sinais rítmicos sonoros coincidem com os sinais rítmicos do corpo em movimento. Essa simultaneidade no encontro entre as estruturas rítmicas quer da música quer do movimento requer um ajustamento da resposta motora ao “modelo” rítmico dado pelo estímulo musical.

Numa acção locomotora, como andar ou correr, a criança estará em sincronia com a estrutura rítmica do estímulo musical quando a organização da estrutura rítmica dos seus passos coincidir com a organização dos elementos de duração e intensidade da música. Nesse caso, a pulsação dos passos durante a corrida e a pulsação da música serão coincidentes, sobrepondo-se nos mesmos pontos de uma linha de tempo.

O processo de sincronização música-movimento é optimizado pela mobilização de sistemas de memória e de antecipação motora, favoráveis à predição e à auto- correcção das acções, segundo níveis diversos de representação mental do fenómeno rítmico-motor. Para reagir com sincronismo a um estímulo musical a criança terá de ter adquirido, também, um determinado nível de coordenação motora.

A coordenação motora relaciona-se com a capacidade de utilização simultânea e combinada de dois segmentos do corpo (um braço e uma perna, por exemplo) requerida para o desempenho de determinado movimento. Na coordenação interfere, também, a capacidade de combinação da contracção dos músculos e as estruturas de manutenção do equilíbrio do corpo (Gallahue, 1989).

Segundo Bobin-Bègue e Provasi (2003), a capacidade de coordenação rítmico- motora é necessária para a realização de actividades quotidianas, como andar, correr ou bater palmas, referindo: “A characteristic feature of good motor coordination is good timing. Precise timing, as required in musical performance, for example, implies both a

Para a aquisição de coordenação motora concorre o desenvolvimento do sentido cinestésico, através do qual a criança vai tendo a percepção dos membros do seu corpo e dos movimentos que estes podem realizar. Este processo corresponde à aquisição e desenvolvimento do esquema corporal, evidenciado pela capacidade da criança em nomear, situar, utilizar e controlar as diversas zonas do corpo (Gallahue, 2002).

Quanto maior for a capacidade da criança no âmbito da percepção cinestésica mais amplo será o seu repertório de movimento. Para a diversidade das acções motoras que a criança consegue mobilizar com eficiência contribui, também, o nível de estruturação dos esquemas de lateralidade, ou seja, dos movimentos realizados apenas por um dos lados do corpo ou por ambos em alternância, em função de um eixo de simetria corporal (Laban, 1971).

Distinguindo a percepção rítmica da capacidade de sincronização motora como resposta à música, Simons (1986) faz notar que se a sincronização de movimentos com a música indica provavelmente uma correcta percepção rítmica, a não sincronização de movimentos pode indicar apenas uma fraca coordenação motora e não uma fraca percepção rítmica. Consideramos que, neste âmbito, dever-se-á ponderar a validade e fiabilidade de instrumentos de observação da percepção rítmica quando estes se centrem na capacidade de sincronização rítmico-motora com a música.

A sincronização movimento-música poderá constituir um verdadeiro desafio para a criança se considerarmos que esse processo requer a capacidade de relacionar os eventos rítmicos em duas dimensões distintas: o plano corporal e o plano sonoro. Moog (1976a) considera a sincronização numa perspectiva de intencionalidade do acto motor da criança. A explicitação que faz sobre esse processo incide na ideia de que, para conseguir combinar o ritmo de seus movimentos com o ritmo dos sons musicais, a criança terá de conseguir isolar previamente os elementos de tempo do som e do movimento, antes que os possa sincronizar. O sincronismo ocorrerá, então, através do ajuste das suas acções e não segundo um processo de “pensamento lógico”.

Essa intencionalidade de ajuste das acções motoras pressupõe não só o domínio do esquema corporal como também a percepção da “passagem do tempo” porque, precisamente, o tempo (ritmo) é o elemento comum de ligação (sincronismo) entre a música e o movimento. Segundo Moog (1976a): “until he begins to have some

totally dissimilar elements as the sound of music and the movements of dancing (p. 74).

Noutra passagem, esta ideia é reforçada com a seguinte afirmação: “The child must be

able to bring into relationship with each other two different series, one of sounds, one of movements: the element of time is the only element which he must take into account in order to match the two series (Moog, 1976b, p. 41).

Os primeiros indícios de sincronização movimento-música foram observados por Moog (1976a) entre os dezoito meses e os dois anos: aproximadamente um décimo deste grupo etário conseguiu fazer corresponder os seus movimentos com o ritmo da música, ainda que por breves períodos de tempo48.

Segundo estádios de aprendizagem musical definidos por Gordon (2000c), entre o primeiro e o terceiro anos de vida a criança reage aleatoriamente à música: “movimenta-se e balbucia em resposta aos sons da música ambiente, mas sem estabelecer relação com os mesmos” (p. 44). Assim, quando se movimenta mediante um estímulo musical, embora realize padrões motores consistentes pode não o fazer numa pulsação coincidente com a da música. Entre os dois e os quatro anos, começa a ter respostas intencionais: “tenta relacionar movimento e balbucio com os sons da música ambiente” (p. 44). Entre os dois-quatro anos e os três-cinco anos “reconhece que o movimento e o balbucio não coincidem com os sons da música ambiente” (p. 44). Posteriormente, entre os três-cinco anos e os quatro-seis anos, “reconhece a falta de coordenação entre canto, entoação, respiração e movimento” (p. 44). Ao aumentar a consciência sobre a sua própria performance rítmica, a criança fica mais apta a coordenar movimentos corporais para um desempenho mais preciso.

Moog (1976a) refere também um aumento de sincronização movimento-música nas crianças com três anos. No entanto, embora os intervalos de tempo de sincronização se tornassem mais longos conforme a criança tinha mais idade, entre os três e os cinco anos a evolução da capacidade de sincronização não foi significativa. Estes dados foram

48

Moog (1976, p. 91) apresenta os seguintes registos de sincronia (idade da criança / número de crianças que se movimentaram / número de crianças que conseguiram mover-se no tempo da música): 1.0 / 33 / 0 – 1.6 / 36 / 6 – 2.0 / 27 / 2 – 2.6 / 28 / 9 – 3.0 / 27 / 12 – 3.6 / 24 / 10 – 4.6 / 22 / 24 – 5.6 / 24 / 35.

confirmados por Frega (1979) no que se refere à tarefa de sincronizar a acção de andar com a pulsação do estímulo musical.

No mesmo sentido, Rainbow e Owens (1979)49 indicam que tarefas rítmicas que requeiram movimentos musculares amplos são difíceis para crianças com três e quatro anos, havendo um aumento de sucesso com a idade. Por sua vez, Robertson (1984, in Derri, Gini, Tsapakidou & Zachopoulou, 2001) observou que as crianças com quatro e cinco anos têm maior dificuldade em sincronizar-se com um estímulo musical em actividades locomotoras (como andar, correr ou saltar) do que em actividades não locomotoras. Conclusões no mesmo sentido foram apresentadas por Trump (1987) em relação a crianças com seis anos.

Para o grupo etário dos quatro aos seis anos Moog (1976a) registou um considerável progresso na realização de movimentos mantendo o tempo da música, pelo menos por alguns momentos. O autor verificou ainda que uma criança que aos quatro anos já conseguisse, por breves períodos, sincronizar os seus movimentos com o tempo da música, quando atingia os seis anos conseguia fazê-lo durante mais tempo. Refere, no entanto, que as crianças em idade pré-escolar não sincronizam os seus movimentos na primeira audição que fazem de uma obra musical.

Sims (1985) verificou que as respostas motoras sincronizadas com a pulsação da música eram claramente mais frequentes aos cinco anos (45.68% das ocorrências) do que aos quatro e três anos (15.88% e 16.22%, respectivamente). Estes resultados confirmam as conclusões de estudos anteriores (Groves, 1969; Moog, 1976a; Frega, 1979; Rainbow, 1981).

49

Num relato intermédio de um estudo longitudinal, Rainbow e Owens (1979) – segundo a metodologia de investigação concebida por Rainbow (1977) –, procuraram determinar a capacidade de crianças de três anos (n=27) e de quatro anos (n=25) aprenderem com sucesso 23 tarefas rítmicas agrupadas em três áreas: tarefas motoras com movimentos amplos, tarefas motoras com instrumentos simples e tarefas vocais. Os resultados indicaram que as tarefas que incluíam padrões rítmicos falados eram as mais facilmente realizadas pelas crianças com três anos (entre 45% e 60% de sucesso e 3% a 11% de insucesso), secundadas por manter uma pulsação com palmas ou percutindo clavas (37% de sucesso e 11.1% de insucesso). As tarefas mais difíceis eram as que envolviam movimentos musculares amplos, como caminhar e marcar na pulsação com palmas (apenas 3.7% de sucesso 65.4% de insucesso). As crianças com quatro anos tiveram maior sucesso em todas as tarefas quando comparadas com as de três anos, mantendo-se a mesma progressão de dificuldade das tarefas (na tarefa de andar e marcar a pulsação com palmas registou-se 40% de sucesso e 24% de insucesso).

Ao relacionarmos os comportamentos de sincronização com as características rítmicas da estimulação musical utilizada por Sims (1985), é notória a tendência para a realização de acções sincronizadas com música de andamento mais rápido (150 p.p.m. = 33.80% e 138 p.p.m. = 29.90%) do que com música em andamento lento (32 p.p.m. = 20.71%). Por sua vez, Metz (1989)50 refere não ter encontrado diferenças na capacidade de crianças com dois, três e quatro anos balançarem o corpo na pulsação da música.

Segundo Davidson (1999), a partir de uma actividade motora que, durante os primeiros anos, “ocorre tipicamente segundo ‘explosões’ rítmicas desordenadas [...] que não são necessariamente identificáveis como ritmos musicais” (p. 80), a criança desenvolve capacidades rítmico-motoras que evoluem segundo processos de ordenação e de controle dos movimentos que lhe permitem respeitar uma dada pulsação ou alterações à pulsação.

Ao analisar os movimentos de crianças em idade pré-escolar e do primeiro ano, O’Hagin (1998)51 refere que os desempenhos reveladores de capacidades rítmicas mais desenvolvidas tinham como características: maior tempo de realização de movimento, um vocabulário locomotor mais diversificado (várias combinações de andar, correr e saltar) e uma coordenação de partes do corpo superiores e inferiores na sincronização de padrões de movimento. Por sua vez, ainda que as crianças com desempenhos inferiores realizassem movimentos locomotores básicos, como saltar, pular e correr, os mesmos não estavam frequentemente relacionados com a música.

50

A autora não explicita claramente os contornos do estudo, referindo apenas que as crianças deram respostas de movimento por iniciativa própria ao som e ao silêncio, a andamentos rápidos e lentos, incluindo música em métrica binária e ternária.

51

Um grupo inicial de crianças (n=61), dividido em dois grupos, participou durante três semanas em sessões diárias de música com quarenta minutos (um dos grupos incluindo actividades de movimento). Foram realizados um pré-teste e um pós-teste individual, cujas gravações vídeo foram analisadas por um grupo de juízes independentes, utilizando-se uma rating scale para determinar a musicalidade da criança

“based upon the amount of music-related or nonmusic-related movement they displayed” (O’Hagin,

1998, p. 17). Após uma selecção das quatro crianças com a pontuação mais elevada e de quatro crianças com a pontuação mais baixa, foi pedido a um novo conjunto de cinco juízes que descrevessem os comportamentos das crianças. Os estímulos consistiam em quatro excertos musicais diferentes representativos de quatro estilos: American folk e Western art music (com andamentos rápidos), pop e

Walters (1983, in Zimmerman, 1986), sugere que as crianças entre os três e os oito anos terão maior sucesso na sincronização do movimento se a música que lhes for apresentada corresponda ao seu “tempo pessoal”, ou seja, ao padrão de velocidade natural do seu comportamento motor. Para crianças em idade pré-escolar o tempo pessoal situou-se nas 114.6 p.p.m., sendo mais lento nas crianças com oito anos (99.5 p.p.m.). Em todas as idades as crianças revelaram uma dificuldade crescente em sincronizar-se com a pulsação da música consoante esta estava mais afastada do seu tempo pessoal.

O “tempo interior” natural de cada ser humano constituirá, assim, uma unidade de referência a partir da qual será possível definir tempos mais rápidos e mais lentos. Fraisse (1949, in Young, 1992) referira-se já à existência de um tempo pessoal, que não se relacionaria necessariamente com a frequência de batimentos da pulsação cardíaca. Considerando o “tempo spontané” (Zenatti, 1994, p. 324), aquele autor demonstrou que enquanto a variabilidade individual era curta, a variabilidade entre indivíduos podia ser ampla. Ferguson (2005) considera, também, não ser de esperar que as crianças consigam realizar movimentos com velocidades muito distantes dos parâmetros do seu tempo pessoal (que pode ser estabelecido pedindo à criança que, com as duas mãos, realize batimentos rítmicos no seu corpo ou sobre uma mesa).

Fraisse e Oléron (1954) referem ainda que o “tempo motor espontâneo” da criança aos cinco anos tende a ser de 500 ms, ficando mais lento consoante a idade avança. Num estudo sobre esta temática, Bobin-Bègue e Provasi (2003) concluíram:

“regular spontaneous manual tapping tempo could be observed in children as young as 21⁄2 years” (p. 220). Por outro lado, a capacidade de antecipação do som e de adaptação

da resposta motora à pulsação musical foi realizada com mais eficiência por crianças

com quarto anos do que por crianças com idades inferiores. Nesse sentido, Simons

(1986) indica a pequena estatura da criança como motivo para que os seus movimentos sejam mais rápidos que os que implicariam muita da música que ouve.

Fraisse (1974, in Zenatti, 1994) refere ainda que as crianças mais pequenas têm dificuldade em seguir andamentos musicais lentos, uma vez que contrariam o seu tempo espontâneo mais rápido. Salienta também que a sincronização rítmica implica uma antecipação do estímulo sonoro, enquanto que a resposta motora consiste sobretudo numa reacção a um estímulo e que, por isso, tende a ser desfasada (retardada) em relação ao estímulo. Assim: “L’induction motrice et la synchronisation volontaire sont

différenciées. Une cadence régulière induit, chez l’être humain, une réponse spontanée

[…]. La synchronisation volontaire implique une coordination sensori-motrice qui s

développe peu a peu” (Fraisse, 1974, in Zenatti, 1994, p. 323).

Note-se, contudo, que nos estudos referidos o tempo pessoal foi considerado, sobretudo, enquanto batimento rítmico corporal e não na perspectiva da velocidade da locomoção. Neste caso, o tempo pessoal exibido em acções motoras de dança poderá não corresponder exactamente ao tempo pessoal obtido em função de uma motricidade mais fina.