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Arquipélago da insónia: livro-objeto, livro-corpo

A LINGUAGEM FANTÁSTICA DAS COISAS E CORPOS DO ARQUIPÉLAGO INSÓLITO

3.3 Arquipélago da insónia: livro-objeto, livro-corpo

Neste item, trataremos o corpo e o livro não mais vinculados ao nome ―coisa‖, porque precisamos diferenciar corpo e objeto, para entender a intrigada ordem que se estabelece na escrita de O arquipélago da insónia.

Nosso corpo é uma espacialidade da qual não nos separamos. É essa a constatação que Michel Foucault (2013, p.7) faz inicialmente sobre o corpo utópico:

116 Posso ir até ao fim do mundo, posso, de manhã, sob as cobertas, encolher-me, fazer-me tão pequeno quanto possível, posso deixar-me derreter na praia, sob o sol, e ele estará sempre comigo onde eu estiver. Está aqui, irreparavelmente, jamais em outro lugar. Meu corpo é o contrário de uma utopia, é o que jamais se encontra sob outro céu, lugar absoluto, pequeno fragmento de espaço com o qual, no sentido estrito, faço corpo.

Mas, segundo o filósofo francês, não suportamos essa condição e por isso buscamos meios de desvencilhar dessa espacialidade que nos acompanha sempre. O espelho é considerado por Foucault (2013, p.7) o responsável por confirmar essa continuidade: ―No entanto, todas as manhãs, a mesma presença, a mesma ferida; desenha-se aos meus olhos a inevitável imagem imposta pelo espelho‖. Contra esse corpo, então, buscaríamos utopias para fugir de nossas feridas, angústias, medos. Em O arquipélago da insónia, uma angústia se concretiza por meio do tempo, que se torna parado, ―coalhado‖ nas sombras, ausências, ruínas e espacialidades, como o relógio que tem o ―coração pausado‖, os retratos que substituem as pessoas e os campos da herdade, numa seca impassível até mesmo à chuva.

Contudo, Michel Foucault reavalia seu raciocínio: ―Meu corpo é o lugar sem recurso ao qual estou condenado. Penso, afinal, que é contra ele e como que para apagá-lo que fizemos nascer todas as utopias.‖ (FOUCAULT, 2013, p.8) Para o autor, o prestígio da utopia consiste ―precisamente na utopia de um corpo incorporal‖. (FOUCAULT, 2013, p.8)

A múmia, por exemplo, é tornada corpo utópico, porque, dentre outras utopias, persiste no tempo (FOUCAULT, 2013). Esses corpos são sólidos, e isso contribui para a ideia de eternidade, devido à duração no tempo. Mas a eternidade não é garantida pela solidez da lápide, e sim pela memória que nela é escrita, em razão da espacialidade que é. No caso dos retratos, em O arquipélago da insónia, a eternidade tem, portanto, o sólito do objeto e o insólito da linguagem. Assim, os corpos dos retratos, também as ruínas de outros objetos e da casa e herdade, compõem as imagens das lembranças. A

117 eternidade, portanto, tem na memória construída pela linguagem, seu deus, ou, como na epopeia, sua deusa, Minemosine.

Para Michel Foucault (2013, p.14),

O corpo é o ponto zero do mundo, lá onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo está em parte alguma: ele está no coração do mundo, este pequeno fulcro utópico, a partir do qual eu sonho, falo, avanço, imagino, percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino. Meu corpo é como a Cidade do Sol, não tem lugar, mas é dele que saem todos os lugares possíveis, reais ou utópicos.

É a partir dessa utopia do corpo, como grau zero do mundo, que o autista está em todos os lugares e em outro lugar que não o mundo. Seu corpo se faz presente em todos os espaços do romance por sua voz, a qual é entrecruzada por outras vozes discursivas. E então seus relatos são, ora confirmados como reais, ora desacreditados pela própria voz que conta ou por outra, de acordo com o que Foucault postula.

Acrescentamos que, na ficção antuniana, não há construção de personagens com nome, corpo e voz de modo tradicional, mas algumas características são deslocadas, como a voz do autista. Ele permanece durante todo o livro sem conseguir, enquanto personagem, falar; entretanto, é dele a voz narrativa na maior parte dos relatos que compõem o romance. Ademais, ele, como personagem, desenha a herdade, de acordo com seu próprio relato. É o autista, portanto, que faz falar em seu desenho corpos e objetos.

Os corpos desenhados pelo autista estão em parte alguma, já que a ―herdade‖, conforme o personagem-narrador, não existe. Como ele explica, são desenhos, imaginações, invenções, mas são desses corpos desenhados, sem lugar, negados pelas utopias do tempo nas ruínas de uma casa, que ―saem e irradiam todos os lugares possíveis e utópicos‖. Com corpos desenhados apenas como ―uns pinguinhos de azul, uns pinguinhos de verde‖ (ANTUNES, 2008, p.101)

118 Na herdade, desenho que espelha angústias e medos do autista e de seu mundo – espelhamento dos medos e angústias que afligem o homem contemporâneo – não há comunicação efetiva, apenas murmúrios de ruínas e ventos. Aqueles que lá vivem não se conhecem, uma vez que não se relacionam efetivamente, pois conhecemo-nos não apenas no eco das palavras do outro, do outro corpo, dos objetos, mas em relações que estabelecemos no mundo com esses corpos, objetos e pessoas.

Para Jean-Luc Nancy (2013, p.47), não há ―fora de mim‖ porque o oposto, o ―eu dentro de mim‖, também não existe:

Sim, eu-fora. Não ―fora de mim‖ pois, na verdade, dentro não há ―eu‖ mas a lacuna onde todo o meu corpo se recolhe e pressiona para fazer voz e declarar-―se‖, se reclamar e chamar, se desejar desejando o eco que talvez outros corpos emitirão em torno dele. Estranho estrangeiro para si mesmo em seu apelo de si mesmo; senão, ele não poderia chamar-se, ele não poderia exprimir em toda sua extensão o pedido de encontrar esse estranho estrangeiro.

O autista, que afirma ter um arame na garganta, reclama então outras vozes outras vozes, olhares e murmúrios, para exprimir seu pedido de ―encontrar esse estranho estrangeiro‖, que olha para a casa, vê tudo igual, mas não se se reconhece, porque tudo parece diferente, apesar de igual; que procura o afeto da mãe entre suas memórias e não encontra; que não sabe se terá a moldura dos retratos como os parentes, em razão de sua filiação duvidosa; que, enfim, tem medo do subterrâneo do poço, porque desconhecido.

Jean-Luc Nancy (2013, p.89) enumera indícios do corpo, e o quinto é ―O corpo imaterial‖: ―Um corpo é imaterial. É um desenho, um contorno, uma ideia.‖ Se o corpo é uma ideia, um desenho, o livro que na ficção do romance é escrito pelo irmão do autista, contando histórias da herdade, que por sua vez foi desenhada pelo autista, é também um corpo. Consideramos, então, este livro como livro-corpo.

119 Corpus: um corpo é uma coleção de peças, de pedaços, de membros, de zonas, de estados, de funções. Cabeças, mãos e cartilagens, queimaduras, suavidades, jorros, sono, digestão, horripilação, excitação, respirar, digerir, se reproduzir, se recuperar, saliva, sinóvia, torsos, câimbras e pintas de nascença. É uma coleção de coleções, corpus corporum cuja unidade permanece uma questão para si mesma. Mesmo a título de corpo sem órgãos, há cem órgãos, onde cada um atrai para si e desorganiza o todo que não consegue mais se totalizar. (NANCY, 2013, p.93)

Confirmando a imagem de Jean-Luc Nancy, Arquipélago da insónia não segue a estrutura tradicional da narrativa e as vozes discursivas atraem para si as verdades, instaurando o caos, sem uma totalização. Desse modo, o livro- objeto se faz corpo com um romance em que a voz do autista desenha a si e suas relações com o mundo; com a escrita do livro pelo irmão, o que o autista informa nas páginas do romance; e por fim com a instância enunciativa do escritor27 António Lobo Antunes, informada na última página do após a ―inscrição‖ em caixa alta: ―FINIS LAUS DEO / (escrito por António Lobo Antunes em 2006 e 2007)‖ (ANTUNES, 2008, p.263).

27Essas palavras de Lobo Antunes ao final se desvelam a partir da voz de um autor implícito, o qual, na concepção de Wayne Booth (1980), configura-se como a imagem implícita de um autor nos bastidores.

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