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Os estudos sobre o espaço na teoria literária, conforme aponta Luis Alberto Brandão (2007), têm uma vocação transdisciplinar, visto que o próprio

35 conceito de espaço, variável, em si já articula várias áreas, pois cada área adequa pressupostos e sentidos à sua atuação. Nos estudos literários,

Segundo um prisma abrangente, observa-se que as oscilações dos significados vinculados ao termo são tributárias das distintas orientações epistemológicas que conformam as tendências críticas voltadas para a análise do objeto literário, orientações que se traduzem na definição dos objetos de estudo, nas metodologias de abordagem e nos objetivos das investigações. (BRANDÃO, 2007, p. 207).

Nesse sentido, procuramos orientar nossa busca por um conceito de espaço que abarcasse nossa perspectiva de leitura dos romances de António Lobo Antunes, em especial O arquipélago da insónia. O conceito que se adequou à nossa leitura teórico-crítica e ao desenvolvimento desta tese é formulado nos estudos de Michel Foucault.

As discussões de Michel Foucault acerca do espaço vêm na esteira de seus estudos sobre o sujeito. De acordo Marisa Martins Gama-Khalil (2010, p. 217),

Em sua rede de estudos – seja sobre as prisões, sobre a loucura, sobre a sexualidade ou sobre outros interditos sociais – as investigações incidem seu foco sobre o sujeito, como ele reconheceu em ―O sujeito e o poder‖ (1995); entretanto para esse objetivo, sua escolha metodológica, que ele admite ser uma obsessão (1999), é o espaço, pois somente a partir do olhar sobre os posicionamentos e as espacialidades podemos conhecer melhor os sujeitos e as suas linguagens, dentre elas a literária.

No livro História da loucura – na Idade Clássica, Foucault (2017a) discorre sobre a história da loucura, nela incluindo os posicionamentos do sujeito e da linguagem em relação ao louco e à loucura. Ressaltamos, contudo, que a escolha dessa referência à loucura para a leitura de um romance, cujo personagem e narrador principal é autista, não se deve ao fato de o consideramos louco ou aproximar suas atitudes e comportamentos à loucura. As relações entre a subjetividade, a espacialidade e a loucura são alinhavadas pela linguagem, conforme mostramos no decorrer da apresentação do pensamento foucaultiano a esse respeito. Nesse sentido, é importante esse

36 novo olhar sobre o sujeito, o espaço e a linguagem para a leitura da configuração da espacialidade em O arquipélago da insónia.

A História da loucura inicia-se com a narrativa do desaparecimento da lepra na Europa. O filósofo ressalta, a partir desse fato, o vazio dos hospitais de leprosos e posteriormente o uso dessas instalações como hospitais para loucos. Outra espacialidade é ressaltada, a ―Nau dos Loucos‖, ou seja, barcos que levavam loucos de uma cidade para outra. No Renascimento, ―Os loucos tinham então uma existência facilmente errante‖ (FOUCAULT, 2017a, p. 9). A ―Nau dos Loucos‖ faz parte de uma figura, uma composição literária, que integra o imaginário da Renascença: a Narrenschiff. Segundo o filósofo, ―a equipagem e heróis imaginários, modelos éticos ou tipos sociais, embarcam para uma grande viagem simbólica que lhes traz, senão a fortuna, pelo menos a figura de seus destinos ou suas verdades.‖ (FOUCAULT, 2017a, p. 9).

Enquanto em suas cidades de origem os loucos eram expulsos, em outras eram recebidos, ou ali deixados, porque havia cidades que alojavam os loucos, apesar de não lhes oferecer tratamento. Então,

É possível supor que em certas cidades importantes – lugares de passagem e de feiras – os loucos eram levados pelos mercadores e marinheiros em número bem considerável, e que eles eram ali perdidos, purificando-se assim de sua presença a cidade de onde eram originários. (FOUCAULT, 2017a, p. 9). Entretanto, essa navegação dos loucos tem, para o autor, um sentido e a isso deve seu prestígio, a despeito do que poderia sugerir-nos a errância dessas pessoas banidas das cidades de origem. Alguns pontos para esse privilégio: a água como símbolo de purificação, a partida como a própria prisão e a navegação como entrega do homem à incerteza da sorte, como uma Passagem Absoluta para o louco.

Essa incerteza carrega ainda outro sentido, assim sintetizado:

Num certo sentido, ela [a nau dos loucos] não faz mais que desenvolver ao longo de uma geografia semi-real, semi- imaginária, a situação limiar do louco no horizonte das preocupações do homem medieval – situação simbólica e realizada ao mesmo tempo pelo privilégio que se dá ao louco de ser fechado às portas da cidade: sua exclusão deve encerrá-lo; se ele não pode e não deve ter outra prisão que o

37 próprio limiar, seguram-no no lugar de passagem. Ele é colocado no interior do exterior, e inversamente. Postura altamente simbólica e que permanecerá sem dúvida a sua até os nossos dias, se admitirmos que aquilo que foi fortaleza visível da ordem tornou-se agora castelo de nossa consciência. (FOUCAULT, 2017a, p. 12).

As interpretações foucaultianas da ―situação limiar‖ dos loucos na Idade Média são também consideradas pelo filósofo francês como uma ―postura simbólica‖, durante a Renascença, e, à altura da publicação de a História da loucura, como ―castelo de nossa consciência‖. Essa consciência encastelada é reconhecida nos relatos de memória em O arquipélago da insónia, nos quais é possível perceber o seu silenciamento ou mesmo, usando as palavras de Michel Foucault (2017a) para o homem medieval, considerar para os sujeitos constituídos na escrita do romance um limiar entre um espaço semi-real e semi-imaginário, interior e exterior, bem como da Passagem Absoluta. Espacialidades como objetos, corpos, lugares e casas são apresentados, muitas das vezes, como limiares, fronteiras ou passagens, e podem sugerir esse limiar numa configuração que exija do leitor uma construção de coerência, de acordo com o jogo de leitura que inclua o ―castelo de sua consciência‖.

Em seu trabalho, Michel Foucault (2017a) expõe como essas fantasias e imaginações consistiam, na Renascença, em buscas sobre as ameaças e os segredos do mundo. Segundo o filósofo, ―a loucura fascina porque é um saber‖ e esse saber ―vem das entranhas da terra‖ (FOUCAULT, 2017a, p. 20). Na Renascença, as figuras da loucura alteraram as relações do homem com a animalidade. Antes, na Idade Média, os loucos eram vistos como animais e dotados de uma ilustração moral na fábula religiosa, enquanto nominados cada um por Adão. Porém, ―por uma surpreendente inversão, é o animal, agora, que vai espreitar o homem, apoderar-se dele e revelar-lhe sua própria verdade‖ (FOUCAULT, 2017a, p. 20). Essa animalidade revela, assim, ―o pecador em sua natureza hedionda‖, com um ―rosto monstruoso de um animal delirante‖, desvenda ainda a ―raiva obscura, a loucura estéril que reside no coração dos homens‖ (FOUCAULT, 2017a, p. 20). Nisso consiste o ―saber‖ da loucura, ―o grande saber do mundo‖, em imagens delirantes que pressentem o fim do mundo (FOUCAULT, 2017a, p. 20).

38 A animalização dos loucos, conforme o texto de Michel Foucault (2017a), implica, antes de tudo, o silenciamento e o aprisionamento dessas pessoas, portanto, negando-lhes o direito à expressão de sentimentos por palavras. Ao final da Idade Média, os loucos eram banidos das cidades e, na Idade Clássica, animalizados. O romance de António Lobo Antunes traz um hospital psiquiátrico contemporâneo, em que o personagem internado (o autista) também não tem um tratamento efetivamente adequado ou sequer humanizado.

António Lobo Antunes, um dos mais importantes escritores da língua portuguesa hoje, é também psiquiatra. Ele exerceu a profissão em um hospital psiquiátrico e serviu como médico no exército na Guerra Colonial. Em entrevista, diz ter aprendido a escrever com os loucos no hospital, de um deles teria ouvido: ―tens de escrever por detrás‖ (ANTUNES apud ARNAUT, 2009, p. 33). Segundo Ana Paula Arnaut (2009, p. 33), ―uma escrita ―por detrás‖ que mais se complexifica quanto maior é o número de vozes e, ou, pontos de vista‖; mas, apesar da complexidade que a pesquisadora aponta no tecido da narrativa, tornam-se mais evidentes aqueles silêncios que o escritor busca em sua escrita. Esse silêncio viria, pois, como propósito anterior às palavras.

Em O arquipélago da insónia, muitas espacialidades evidenciam os silêncios dos personagens. Além da afasia que caracteriza o autismo do narrador-protagonista, há outros personagens silenciados no romance, seja pela solidão, pela condição social ou pela própria incapacidade de amar ou ser amado. Em se tratando de personagens com a faculdade da fala, são outros os recursos linguísticos do escritor; no caso da avó, sempre à espera do marido, que nunca lhe dá a devida atenção, é o movimento de um par de objetos que aponta seu silêncio: ―(a chávena contra o pires, a chávena sem cessar contra o pires)‖ (ANTUNES, 2008, p. 15). Essa escrita vai além da metonímia e o que encontramos nessa leitura além-figuração remete a um silêncio, que, entretanto, ressaltamos, é prenhe de sentidos e provocações ao leitor. É preciso, pois, uma leitura da configuração das espacialidades para construir sentidos para essa linguagem de silêncios ou mesmo para o próprio romance,

39 que reúne, no título, experiências humanas do espaço e do tempo vividas pelo homem contemporâneo, como a solidão e a agonia do fim.

Conforme já discutido no primeiro item do capítulo, o escritor procurava um livro sem ―banhas‖ ou ―gorduras‖ e, em outras entrevistas mais recentes em relação a essa busca, ele disse que o livro perfeito é aquele repleto de silêncios. Não defendemos, nesse caso, que a escrita do autor português seja uma forma de silenciamento; ao contrário: é uma busca da linguagem que leve o leitor a esse mergulho ―na noite do mundo‖ (FOUCAULT, 2017a, p. 27), a fim de que ele possa encontrar suas verdades, mirar-se nos espelhos das águas.

Edgardo Castro (2017) destaca como eixos narrativos de a História da loucura as noções de experiência e linguagem, esta última silenciosa. De acordo com a leitura que ele faz de Foucault,

semiologia e exegeses se superpõem, deixa de estar subordinada tanto aos objetos como ao sujeito; quando sua função já não consiste em nomear as coisas do mundo exterior ou em expressar as ideias ou os sentimentos do mundo interior, mas em falar de si mesmo, em remeter a si mesmo. (CASTRO, 2017, p. 46).

Disso consiste, então, a importância da experiência da loucura não apenas no que diz respeito às metáforas, mas também à linguagem em um sentido mais amplo, ou seja, nas relações entre sujeito e espaço. É essa a relação que procuramos esclarecer, porque compreendemos que a espacialidade e as experiências a que remete um ―arquipélago da insónia‖, escritas numa linguagem silenciosa, é enfim uma escrita cheia de silêncios que ―fala‖ muito de mundos interiores.