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Arquitetura e novas formas de habitação da natureza

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CAPÍTULO III – REDEFININDO A CIÊNCIA, CULTURA E

3.1. Arquitetura e novas formas de habitação da natureza

Desde os primeiros números da ―Ecological Restoration‖ Jordan (1983) insistia em relacionar a restauração ao delineamento de uma nova arquitetura das relações entre humanos e seu ambiente. A restauração enquanto ―tecnologia de religação‖ era associada à construção de um novo estilo de vida. Inspirada na ideia de ―land ethic‖ teorizada pelo ecologista norte- americano Aldo Leopold, ressoava a noção de mundo comum e da terra como espaço de coexistência de uma grande comunidade biocultural. Assim como arquitetura haveria a necessidade de delimitar as linhas e contornos pelo qual se estabeleceria as passagens, divisões e espaços compartilhados. A restauração ecológica deveria funcionar como uma técnica de transformação dos humanos (JORDAN, 1998).

Foi comparando práticas que a definição da restauração ecológica foi se formando. Nesses primeiros anos ela foi definida como o casamento da agricultura com a ecologia: fazer crescer, cultivar e cuidar seriam práticas compartilhadas por ambas. Essa relação baseava-se em um forte senso de identidade com a natureza; a do agricultor que, ao mesmo tempo em que poderia ser considerado intruso, também poderia agir pela via da cooperação e participação. Ele poderia tentar imitar a natureza ao invés de impor-se ela (JORDAN, 1984).

As referências usadas terão origem em campos diversos. Poderíamos dizer que a restauração assume e renova as características multidisciplinares que Acot (1990) havia

identificado na Ecologia. Se Jordan fez questão de dizer diversas vezes que a restauração não era apenas uma ciência, isso nos parece necessário para marcar os limites com que determinadas perspectivas científicas constituem (e ainda abordam) o campo de problematização na área ambiental. A nosso ver o horizonte vislumbrado por Jordan e colegas pode ser definido como científico (estamos adiantando aqui uma crítica que será dirigida à Jordan, entre outras coisas, por seu ―impressionismo‖), mas de um modo distinto: haverá uma distinção não apenas na sua produção, mas também uma diferença no modo de sua circulação. Ela implicará em um modo diverso de considerar como as práticas produzem sentidos (através do agenciamento de elementos heterogêneos), naturezas e práticas sociais. Ou seja, a prática – que comporta pressupostos ontológicos para a ação (como uma definição dos agentes que serão envolvidos e suas potencialidades) – deve ser considerada como produtora, conectora e configuradora de relações, dispondo os atores (humanos e não humanos) em trajetórias específicas (que não quer dizer trajetórias completamente controladas).

A crítica à Ciência incide sobre a noção de objetividade e da posição de juiz que os cientistas assumem, fazendo submergir outras possibilidades através de uma distinção clara entre o visível e não visível; entre aquilo que é passível da explicação científica e aquilo que não é (STENGERS; BENSAUDE-VICENT, 1996). A multiplicidade nesse último caso deve ser reduzida a partir da consideração das variáveis consideradas mais relevantes, verificadas de acordo com os métodos aceitos e demonstradas publicamente a uma comunidade de experts (SHAPIN; SCHAFFER, 2005). A multiplicidade é capturada em um modelo sobre como a natureza deveria funcionar58. Nos termos de Jordan (comunicação pessoal, 2016) a restauração ecológica teria sido capturada pela Ecologia.

Podemos dizer que um dos grandes desafios colocados pôr/para esses cientistas refere- se ao delineamento do modo como as relações entre espécies serão estruturadas. Como definir a relação entre nossa espécie e as outras espécies? Alguns desses problemas serão levantados por Jordan em editorial de 1986 em que debate as ideias de Loren Eiseley‘s – expostas em um livro da década de 1970, chamado ―The Invisible Pyramid‖. Eiseley‘s propunha que entendêssemos a relação entre nossa espécie e outras espécies a partir de uma divisão de mundos. Segundo ele haveria o mundo natural, chamado de primeiro mundo, e o mundo das coisas artificiais, o segundo mundo. Essa diferença entre mundos estaria fundada em uma diferença transcendente de nossa espécie que nos colocaria para além dos não-humanos. A

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Um problema adicional a restauração é o tempo de demonstração da justeza de sua análise e intervenção. Serão necessários quantos anos para se alcançar o ecossistema pretendido? 20, 30, 100 anos? As respostas irão variar de acordo com a perspectiva assumida.

solução para essa dicotomia segundo Jordan seria a construção de um terceiro mundo ―which combines elements of the original two and provides a way of reentering nature without giving up the knowledge gained on the pathway to the moon‖. (JORDAN, 1986, p. 02). Segundo Jordan (1986) deveriamos ver a restauração ecológica como, de certa maneira, recapitulando toda a história de nossa espécie em sua relação evolutiva com a natureza; ela dramatizaria nossa relações, que passariam tanto pelo respeito pelos não-humanos como também pela sua manipulação.

Jordan vai delimitando um conjunto de práticas que exemplificariam a relação ou dependência com a natureza de forma mais óbvia. Segundo o autor tanto a agricultura como a caminhada/trilha (―hiking‖), por exemplo, de certa maneira estabelecem relações entre espécies (humanos e não-humanos), mas provocam com graus variados, impactos e degradação dos ecossistemas. A pesca e atividades de coleta por sua vez constituem atividades especializadas e exigem outro estado de mente (―a distinctive state of mind‖), que podemos entender como práticas reiteradas que produziriam certas orientações subjetivas (dispositivo cultural) favoráveis a uma relação não destrutiva; ou seja, um agenciamento que permaneça no limite e rejeite o limiar onde os agenciamentos mudariam. Segundo o autor nenhuma dessas atividades exploraria o potencial humano de realização (―makers‖). A capacidade produtiva do humano seria revelada justamente através da reconfiguração e da transformação do próprio humano: a produção de uma nova associação que poderia aumentar a potência respectiva dos agentes e a produção de outros mundos. Para ele a restauração ecológica faria isso: ―restoration really takes us back much further than that, to the time of hunting and gathering, and the kind of unselfconscious, direct economic relationship with nature that way of living implies‖ (1986, p. 02). Se a ciência da ecologia se constitui na busca por modelos abstratos que tornem o funcionamento dos sistemas ecológicos inteligíveis, a restauração deveria assumir como prioritária a necessidade de construir outras relações com os não-humanos. Assim ―far more than hunting or gardening or ecology or preservation alone that holds the promise of enabling us to reenter the world and to recover it, not just as a place, or even as an "environment," but as a habitat for human beings‖ (1986, p. 02). Uma prática que restabeleça a natureza como ―fato social total‖ e que, talvez, em seu limite possa dissolvê- la em relações generalizadas.

É evidente que pode nos parecer que essa injunção é definida de forma generalizante; mas o que devemos reter, primeiramente, é que se trata da construção do que para esses cientistas será o instrumento prioritário para lidar (e revertê-la) com a perda da biodiversidade no futuro; aquela que garantirá a viabilidade da vida através da construção de um espaço

comum para nossa e para outras espécies. Por aproximação e comparação esses cientistas procuram delimitar uma prática (científica, mas também política) que não foi estabilizada. Mas podemos nos perguntar se seria possível estabiliza-la, já ela inclui e implica um conjunto de atores humanos e não-humanos coabitando configurações e arranjos diversos. É ai que a noção kuhniana de paradigma pode funcionar apenas através de uma noção restrita de ciência, ou pelo menos, restrita de transformação. Como observado por Stengers e Bensaude-Vicent (1996, p.42), ―o tema kuhniano de uma crise por confrontação entre dois paradigmas deve ser substituído por um mistura indefinida de doutrinas rivais‖ coabitando ‗num mesmo mundo sem que nenhum critério nos permita designar aqueles que seriam os ‗transportadores do devir‘‖. É na mesma linha que se desenvolve a distinção entre ciência régia e nômade. Não se trata de uma existência inconciliável entre os dois métodos, mas de uma coexistência. O predomínio de um ou outro não se dá por condições intrínsecas ao método, mas pelo modo de funcionamento à que estará vinculada (DELEUZE; GUATTARI, 2012). A restauração oscilará ―normalmente‖, criando linhas de fugas que irão traçar novas possibilidades de conexão assim como pontos de condensação; que irão apreender as trajetórias da multiplicidade dos não-humanos a partir do estabelecimento de constantes, ou seja, de uma ordem.

Se o primeiro editorial já lançava a ideia que a restauração ecológica não poderia ser considerada apenas uma ciência, ela também não poderia ser considerada também apenas como uma tecnologia que manipularia de forma neutra a natureza; também seria um equívoco tomá-la apenas como uma profissão (―as a job‖) que pudesse ser desenvolvido nos ‗bastidores‘ e separado das relações onde é requerida. Essa reivindicação que faz Jordan estabelece certo compromisso/comprometimento do restaurador em relação à sua prática e aqueles que ele envolve em sua prática. O restaurador nesse caso estaria implicado nas decisões que toma – e não apenas nos termos de uma responsabilidade profissional restrita a um código corporativo: a restauração ecológica, delineada nas observações de Jordan, exige uma substancialização dessa matéria nos termos de um re-encantamento da natureza para o homem (os limites desse re-encantamento serão trabalhado posteriormente).

3.2. CURAR A NATUREZA: A PERSPECTIVA DA MEDICINA PREVENTIVA NA

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