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Nesse período de incrementação de temas e problemas, consolidava-se para Guerreiro Ramos a seleção de um instrumental teórico. Trazia de antes a influência do neotomismo de Jacques Maritain, o existencialismo cristão expresso na revista L’Esprit e na obra de Nicolai Berdiaev, entre outras.53 Tais concepções espiritualistas são, a partir de então, filtradas e certo culturalismo ganha contornos

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Contam-se aí, na imensa curiosidade intelectual do autor: Heidegger, Jaspers, Rilke, literatura em geral e particularmente a francesa (segundo ele, Daniel Rops, François Mauriac, Albert Daudet, etc.), autores brasileiros, etc. (OLIVEIRA, L., 1995, passim).

mais sólidos por meio de outros autores. O conceito de W. Pinder de

contemporaneidade do não-coetâneo e a concepção faseológica da história – de

Franz Carl Miler-Lyer são utilizados para entender a originalidade do Brasil como sociedade na qual coexistiriam diferentes tempos numa dada fase histórica. Também duas grandes influências começam ali a tomar corpo: Karl Mannheim e Max Weber, combinadas ainda de modo frágil com uma preocupação empírica que buscava subsídios na sociologia ‘norte-americana’. A preocupação com a cultura (em sentido amplo) ainda é dominante, apesar da influência admitida e da presença de Donald Pierson (OLIVEIRA, L., 1995, p. 139), não parece ser fortuita a opção pela Escola de Chicago, uma vez que foi por meio dessa que o empirismo, a técnica dos surveys e a preocupação com o fato aliaram-se a uma considerável atenção à cultura – como constituída de formas enraizadas de consciência, comportamento, construção material, sociabilidade, etc.

Emergem também as influências do pensamento social brasileiro em sua obra, embora de modo periférico, pois se os temas concernentes à realidade brasileira já ganhavam centralidade em suas preocupações, as influências teóricas eram ainda basicamente de autores estrangeiros.54 Uma ainda tênue linha já o liga a certa herança intelectual que – crítica do liberalismo e desconfiada da capacidade (ou mesmo da existência efetiva) da sociedade civil e do “povo” – busca interpretar o Brasil como algo original, criticando o transplante de idéias e instituições, procurando instrumentos teóricos próprios para essa tarefa e vislumbrando a modernização como uma tarefa eminentemente prática, pragmática, organizativa, de construção da nação a partir do Estado, a despeito ou

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Das obras mencionadas na bibliografia deUma introdução ao histórico da organização racional

do trabalho, conta-se 171 autores, sendo 159 estrangeiros e apenas 12 brasileiros, dentre os quais o

até à revelia dos interesses particulares presentes na sociedade civil. Precariamente, essa tradição – nomeada por Guerreiro Ramos como a linhagem “crítica” do pensamento social brasileiro – pode ser assim esboçada: Visconde do Uruguai (Paulino José Soares de Souza), Silvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Vianna...55

Todavia, se a visão do Brasil que emanava desses autores contemplava uma ânsia de síntese, o aspecto rarefeito e mais ou menos dedutivo que as embasa lentamente se tornava claro para Guerreiro Ramos; a partir de então, busca na sociologia acadêmica e profissionalizada que nascia elementos empíricos e mais cuidadosamente coletados, daí a crescente menção a autores como Emílio Willems, Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes - abundam citações de obras desses autores, bem como de Donald Pierson e Roger Bastide. Nesse aspecto, Guerreiro também colabora com a revista Sociologia – editada pela Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo e considerada a primeira revista eminentemente acadêmica das ciências sociais no Brasil.56

Em dois trabalhos dessa época (publicados naquela revista) nota-se a influência – temática e na abordagem – da sociologia ‘norte-americana’ e da

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Nessa linhagem “crítica” Guerreiro Ramos - por vezes - acrescentará, mais adiante, João Ribeiro. Quanto a outros autores, nota-se que a presença de Gilberto Freyre na obra de Guerreiro Ramos - nesse período - é devida à crítica ao privatismo e mandonismo, e não às considerações sobre o negro; como esse, a maioria dos autores, inclusive os da linhagem mencionada, será censurada pela visão racista ou pelo menos não lúcida desse tema. Nota-se também que os autores cronologicamente mais próximos que também se situam na continuidade dessa herança, principalmente os ‘teóricos do Estado Novo’ e do ‘autoritarismo’ (instrumental ou não), não marcam presença em sua obra (exceto Oliveira Vianna), tais como: Azevedo Amaral, Francisco Campos, Almir Andrade, entre outros. Apesar também da admiração de Guerreiro e a influência sofrida de Jacques Maritain e do pensamento cristão tomista, autores cristãos brasileiros próximos dessa tendência também não são mencionados: Tristão de Ataíde (Alceu Amoroso Lima), Jackson de Figueiredo, Jônatas Serrano, etc. - mais tarde, Guerreiro Ramos (1961) analisará criticamente esses últimos num ensaio nomeado “A ideologia da ordem”.

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Posteriormente, promoverá um acerto de contas com essa sociologia, condenando-lhes a excessiva ocupação com “minudências” da vida social (Emilio Willems), a “ideologia profissional” de sociólogo e a forma de conceber a sociologia (Florestan Fernandes).

ecologia humana (principalmente da Escola de Chicago) no tratamento de fenômenos como a pobreza, a medicina popular e a mortalidade infantil, vistos como frutos da ambiência.57

O pauperismo não é apenas uma condição econômica. É também uma condição cultural e psicológica. Ao baixo poder aquisitivo das massas corresponde um repertório de costumes, tradições e atitudes. A pobreza é uma condição econômica e cultural e um estado de espírito. Ambos (condição e estado) têm a sua inércia, oferecem resistência à mudança. Quando se diz que os altos coeficientes de mortalidade infantil se correlacionam com o baixo poder aquisitivo, não se diz tudo. Para maior precisão seria necessário mencionar que eles se correlacionam com a ‘cultura defolk’, característica da pobreza. (RAMOS, 1951b, p. 252).

O problema da transplantação de idéias aflui também e passa a ser uma das questões centrais na obra do autor, a princípio, a crítica tem em foco a transplantação de instituições – influência de sua experiência profissional e das considerações sobre administração e direito público de Paulino José Soares de Sousa (o Visconde do Uruguai).

No Brasil, a administração precedeu a sociedade. Éramos no início do século XVI, um território sobre o qual viviam alguns povos organizados sob a forma tribal. A partir de 1530, data em que se funda São Vicente, começam a ser transplantadas para o nosso país, pré-fabricadas, por assim dizer, as instituições administrativas de Portugal, de uma das mais desenvolvidas nações do mundo, naquela época.

Em 1549 já aqui funcionavam mecanismos administrativos que na Europa tinham sido elaborados demorada e lentamente no decorrer de vários séculos.

A sociedade brasileira, por força de sua formação, não teve a oportunidade de elaborar lentamente, por ensaios e erros, as soluções dos seus problemas. Estes, uma vez pressentidos, eram tratados pelos métodos experimentados ou em uso na metrópole.

Quando o país e se tornou independente de Portugal, já o vício de adotar para os seus problemas soluções prontas tinha deitado raízes profundas. Os modelos deixaram de vir de Portugal e passaram e a ser importados da França, da Inglaterra, dos Estados Unidos, principalmente. (RAMOS, 1951a, p. 1-2).

Definido como mal de origem, o empréstimo de iniciativas descoladas da estrutura social traria não só problemas adaptativos como também reforçaria hábitos – e suas conseqüências – de importar soluções. Alheias à realidade presente, as organizações mostrar-se-iam contraproducentes...

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“Pauperismo e medicina popular” e “O problema da mortalidade infantil no Brasil”, ambos publicados emSociologia, em 1951.

Na verdade, as instituições administrativas não têm nenhum poder mágico ou imanente de resolver os problemas. Elas só rendem em função umas das outras e do meio nacional onde atuam. É inócuo transplantá-las de um país para outro de condições radicalmente diferentes. (RAMOS, 1951a, p. 40). [...] nenhuma instituição burocrática, nenhum esquema de organização tem qualidades imanentes. Sua eficácia depende das estruturas sociais e econômicas onde se encaixam [...] Certas instituições, uma vez transplantadas, não encontram na sociedade receptora elementos fixadores ou condições que possibilitem o rendimento que elas apresentam nas sociedades doadoras. Muitas vezes são reinterpretadas, a fim de exercerem alguma função na nova estrutura social. (RAMOS, 1951a, p. 2-3).

Problemas como o da mortalidade infantil, o pauperismo, as deficiências de saúde e outros seriam agravados por tal disfunção, uma vez que as formas de combate utilizadas teriam como vício do deslocamento contextual a ineficiência (ou inconseqüência) de resultados. Daí a pretensão do autor em analisar as políticas públicas e realizar estudo de caso da administração federal, pois os equívocos apontados nada mais seriam do que “aspectos particulares do desajustamento de toda a máquina governamental à realidade sociológica e econômica do país” (RAMOS, 1951a, p. 4).58

Se a relação disjuntiva entre a estrutura social e as instituições tomava corpo na análise levada a cabo pelo autor, os reflexos do deslocamento e suas decorrências nas representações sociais – com ênfase no pensamento técnico e científico – ainda não eram claros, ele próprio utiliza conceitos e avaliações que, mais tarde, certamente consideraria “importados”.59

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Todavia, para ele, um amplo equacionamento do(s) problema(s) só seria alcançado com a transformação faseológica da sociedade, o atingir de uma nova e superior fase civilizatória.

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Por exemplo, ao pesquisar padrões de vida, considera que: “Para uma avaliação dos níveis de vida da população brasileira, pode-se utilizar estas referências [percentagem de gastos com alimentação, vestuário, habitação, combustível e iluminação, e outros, no orçamento familiar], especialmente os orçamentos modelos propostos peloNational War Labor Board e pelo National

Industrial Conference Board. Ambos foram elaborados tendo em vista populações de assalariados

e famílias médias de cinco pessoas” (RAMOS, 1951a, 16). Obviamente, as famílias (e as necessidades, costumes e consumo) estadunidenses diferiam em muito das famílias brasileiras, mais ainda nos anos 1950, quando o Brasil ainda era um país cuja maioria da população vivia na zona rural. Em 1952, Guerreiro Ramos dirigirá o planejamento e execução da Pesquisa Nacional de Padrão de Vida e, em 1958, tecendo considerações sobre o uso da redução sociológica (no livro de mesmo nome) reconsiderará a questão, dando-se conta do equívoco cometido em 1951, sem, entretanto, retratar-se (RAMOS, 1996, p. 80-2).

O arsenal teórico guerreiriano ressentia-se de um aparelhamento para enfrentar as questões numa plataforma superior, basicamente de um método que o habilitasse a se desvencilhar do cipoal de referências cruzadas, de conceitos simbolicamente retorcidos quanto aos seus referenciais. Já vislumbrava no horizonte teórico as implicações dessa orientação metodológica, ainda que a percebesse também a partir de um legado estrangeiro e confundisse o equacionamento teórico da questão com a construção de uma sociologia aplicada.60

Quando importamos sistemas legais ou instituições burocráticas de outros países, procedemos, de certa forma, como os nativos do Taiti [que enterraram ferramentas esperando que dali nascessem casas prontas]. Esperamos que eles aqui realizem os mesmos efeitos de lá, sem atentarmos para as diferenças estruturais entre a sociedade brasileira e as sociedades que procuramos imitar.

O reconhecimento de que a eficácia das instituições não lhes é inerente, mas depende das estruturas nas quais elas se integram está suscitando o desenvolvimento de uma Sociologia e de uma Antropologia aplicadas. Os ingleses, por exemplo, estão pondo ambas em uso na administração de suas colônias na África. (RAMOS, 1951a, p. 2).

Em breve, despertaria para o fato de que os problemas e o modo como os propunha implicarem uma vultosa tarefa, que de forma alguma se resumiria à construção de uma sociologia aplicada, mas, conforme considerará, na reconstrução da sociologia em novas bases, ou melhor, na construção de uma autêntica sociologia brasileira, “nacional”.

Ao procurar e juntar peças no sentido de organizar teoricamente uma orientação sociológica sólida, Guerreiro Ramos avançava num modo de pensar a sociedade brasileira como algo novo e particular, diferente dos “países centrais”61,

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Crítica que – veremos – lhe será feita por Roger Bastide (1953).

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O termo denota a influência da CEPAL – mormente as formulações de Raul Prebish – que opunha os países e economias capitalistas centrais aos periféricos (ver também BIELSCHOWSKY, 2004).

mas ainda fazia uso de um instrumental nos moldes de um complexo quebra- cabeça, pois a heterogeneidade social (e teórica) era um desafio a vencer.

O Brasil é um mosaico de culturas, já observou R. Lynn Smith. Ogradient que Robert Redfield e outros sociólogos registraram no México pode ser observado no Brasil, assinalam-se numerosos graus culturais, desde a ‘civilização’ até a chamada ‘cultura defolk’. (RAMOS, 1951a, p. 21).

Essas culturas diferenciadas, esse complexo cultural, comportaria diversas visões de mundo – Weltanschauung na acepção mannheimiana – que habitariam uma mesma fase, na qual coexistiriam diferentes tempos históricos, configurando uma “contemporaneidade do não-coetâneo” (RAMOS, 1951a, p. 41).62

A heterogeneidade sincrônica e diacrônica do complexo cultural brasileiro identificada pelo autor trazia consigo o desafio à compreensão teórica e a sedução do ecletismo para dar conta de realidade tão ímpar; era preciso entender a sociedade brasileira, requisito para transformá-la, mas o arsenal teórico disponível havia sido forjado para (e por) outras sociedades, significativamente diferentes. Naquele início dos anos 1950, ao abordar a sociedade brasileira com base na transplantação, na forma reflexa e não-autêntica da vida social, pairava – para Guerreiro Ramos – sempre a percepção de algo de insuficiente: para o entendimento do país, para pleitear as tarefas da organização da nação, para instrumentalizar o conhecimento e direcioná-lo à prática da transformação e, assim, para aplacar sua voracidade intelectual e ânsia de engajamento. Buscará então as armas necessárias também num duplo movimento: puxando o ‘fio da história’ e resgatando as tentativas anteriores de construção de uma teoria crítica imbricada à realidade brasileira, bem como empreendendo uma dura crítica da sociologia no Brasil.

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O conceito de contemporaneidade do não-coetâneo, tomado a Wilhem Pinder, que será largamente utilizado pelo autor (e também terá uso comum entre os isebianos) no sentido de indicar a coexistência de diferentes tempos histórico-sociais numa mesma sociedade.