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Guerreiro Ramos e a redenção sociológica: capitalismo e sociologia no Brasil

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GUERREIRO RAMOS E A

REDENÇÃO SOCIOLÓGICA:

CAPITALISMO E SOCIOLOGIA

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EDISON BARIANI JUNIOR

GUERREIRO RAMOS E A

REDENÇÃO SOCIOLÓGICA:

CAPITALISMO E SOCIOLOGIA

NO BRASIL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Campus Araraquara, para obtenção do título de Doutor em Sociologia.

Orientador: Prof. Dr. José Antonio Segatto.

ARARAQUARA

2008

(3)

DADOS CURRICULARES

EDISON BARIANI JUNIOR

NASCIMENTO 07/02/1970 - São Paulo-SP

FILIAÇÃO

Edison Bariani

Antonia Rodrigues Bariani

1995/2000:

Curso de Graduação

Faculdade de Ciências e Letras da

Universidade Estadual Paulista

UNESP/Araraquara-SP

2001/2003:

Pós-Graduação em Sociologia

nível de Mestrado

Faculdade de Ciências e Letras da

Universidade Estadual Paulista

UNESP/Araraquara-SP

(4)

A todos aqueles que não tiveram a chance de chegar até aqui, mas que propiciaram que chegássemos.

(5)

AGRADECIMENTOS

Todo trabalho intelectual é coletivo. Seria injusto de minha parte nomear, dentre tantas pessoas, algumas em detrimento de outras.

Este trabalho foi realizado com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

(6)

“A vida intelectual é uma possessão.” Guerreiro Ramos

“Partindo do princípio fundamental do pensamento dialético – isto é, do princípio de que o conhecimento dos fatos empíricos permanece abstrato e superficial enquanto ele não foi concretizado por sua integração ao único conjunto que permite ultrapassar o fenômeno parcial e abstrato para chegar a suaessência

concreta, e, implicitamente, para chegar à sua significação – não cremos que o

pensamento e a obra de um autor possam ser compreendidos por si mesmo se permanecermos no plano dos escritos e mesmo no plano das leituras e das influências. O pensamento é apenas um aspecto parcial de uma realidade menos abstrata: o homem vivo e inteiro. Este, por sua vez, é apenas um dos elementos do conjunto que é o grupo social. Uma idéia, uma obra só recebe sua verdadeira significação quando é integrada ao conjunto de uma vida e de um comportamento. Além disso, acontece freqüentemente que o comportamento que permite compreender a obra não é o do autor, mas o de um grupo social (ao qual o autor pode não pertencer) e, sobretudo, quando se trata de obras importantes, o comportamento de uma classe social”.

(7)

RESUMO

A trajetória de Guerreiro Ramos – a relação tensa e dinâmica de vida e obra – é uma contribuição no sentido de trazer ao debate intelectual uma percepção de certos dilemas da sociologia no Brasil e propiciar subsídios na tentativa de compreender a situação brasileira; as formulações, temas, ênfases e equívocos do autor são, em certa medida, reflexos dos problemas que suscitaram tais esforços, bem como sua obra uma radical tentativa de criação de um pensamento nacional autêntico que, para ele, redimiria os pecados da miséria brasileira e de sua cortesã, a sociologia alienada da realidade nacional. Tal empenho imbrica-se em sua obra – e no contexto histórico-social – com os anseios de construção de um capitalismo nacional e autônomo de certa classe média, e teria na própria elaboração de uma sociologia nacional um dos seus principais instrumentos de remissão. Os esforços de Guerreiro Ramos foram envidados no sentido da redenção sociológica da sociologia e sociedade brasileiras, estigmatizadas – segundo ele – por um pecado original: a transplantação/importação de idéias. Mas poderia a sociologia não só impulsionar o desenvolvimento nacional como salvar-se por meio de si mesma?

PALAVRAS-CHAVE:

Guerreiro Ramos. Sociologia no Brasil. Capitalismo.

(8)

ABSTRACT

The trajectory of Guerreiro Ramos – the tense and dynamic relation of life and work – is a contribution in the direction to bring to the intellectual debate a perception of certain dilemmas of sociology in Brazil and to propitiate subsidies in the attempt to understand the Brazilian situation; the formularizations, subjects, emphases and mistakes of the author are, in certain measure, consequences of the problems that had suscitated such efforts, as well as his work is one radical attempt to create authentic national thought that, for this reason, could redeem the sins of the Brazilian misery and its ally, the alienated sociology of the national reality. Such effort imbricates with his work – and in the historical-social context – with the yearnings of construction of a national and independent capitalism of certain middle class, and would have in the proper elaboration of a national sociology one of its main instruments of remission. The efforts of Guerreiro Ramos had been pledged in the direction of the sociological redemption of Brazilian sociology and society, stigmatized – according to it – by an original sin: the transplantation/importation of ideas. But could sociology not only stimulate the national development as to save itself by itself?

KEY WORDS:

Guerreiro Ramos. Sociology in Brazil. Capitalism.

(9)

SUMÁRIO

Resumo... 7

INTRODUÇÃO... 10

I - TRINCHEIRAS... 16

1. DASP, administração, política e modernização... 20

2. O arsenal em construção... 49

3. Grupo de Itatiaia, IBESP e osCadernos de Nosso Tempo... 56

4. ISEB: fábrica de controvérsias... 72

II - ÀS ARMAS: A CRÍTICA CONFLAGRADA... 90

1. O ‘problema’ do negro e a sociologia do preconceito... 92

2. A sociologia crítica e a crítica da sociologia... 107

3. A redução sociológica... 131

4. Uma batalha: Guerreiro Ramosversus Florestan Fernandes... 148

III - A ARTE DA GUERRA... 167

1. Povo, desenvolvimento e industrialização... 169

2. A revolução brasileira... 183

3. Nacionalismo: ideologia revolucionária e ciência... 191

4. Crise do poder, instituições e representação... 202

5. A crítica em combate... 224

6. Programa, estratégia e tática na revolução brasileira ... 239

IV - A UTOPIA DESARMADA ... 245

V - O SABER (RE)VELADO ... 262

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 289

(10)

Introdução

“Sociologia sem práxis énon-sens.” Guerreiro Ramos

Na sociologia brasileira, Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) ocupa uma posição particular: baiano de Santo Amaro da Purificação, sociólogo, poeta, ensaísta, professor, pesquisador, deputado federal (PTB da Guanabara), militante do movimento negro, nacionalista, integralista (na juventude), técnico em administração do DASP (Departamento de Administração do Serviço Público), integrante do Grupo de Itatiaia, IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política), ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), docente na EBAP (Escola Brasileira de Administração Pública) da Fundação Getúlio Vargas, na Universidade do Sul da Califórnia e na Universidade Federal de Santa Catarina. Autor de muitas vivências e influências, erudito, engajado, polemista feroz, defendeu febrilmente suas posições e posicionou-se incontinenti; produtor de uma obra de temas diversos, influências várias, originalidade e contundência, foi uma espécie de consciência incômoda da sociologia brasileira.1

Crítico voraz da subserviência às idéias “importadas”, do descaso com o público e do descompromisso com o país, angariou tantos desafetos quanto pôde acumular, polemizou duramente com outras figuras de vulto na sociologia brasileira (Florestan Fernandes, Luiz Costa Pinto, Emilio Willems, Roger Bastide, para citar alguns)2 e tentou retomar o que acreditava ser a herança da linhagem

1

Sobre os dados biográficos do autor, foram consultados, sobretudo, Oliveira, L. (1995), Soares (1993), Matta (1983) e Nascimento, A. (2003a). Ver também cronologia da vida e obra do autor, anexo A desta.

2

(11)

crítica do pensamento social no Brasil: Silvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Vianna...

Participante de alguns dos mais influentes círculos da inteligência brasileira no período 1943-1964 (DASP, Assessoria de Vargas, IBESP, ISEB),3 engajou-se na política brasileira empunhando as bandeiras do nacionalismo, da autonomia, da industrialização, do desenvolvimento, e batendo-se em defesa da publicização do Estado, da construção da nação e da sociedade civil – tarefas do povo com o norte daintelligentzia.

No pós-1964, derrotado politicamente e alijado de uma carreira universitária no Brasil, exilou-se nos EUA, onde veio a obter o sonhado reconhecimento acadêmico e passou a ocupar-se com a crítica da modernidade, da razão instrumental, da visão unilateral sobre a existência humana e da concepção teleológica ingênua da história.

Com Guerreiro Ramos – que sonhou um dia com uma sociologia nacional e um capitalismo autônomo no Brasil – a sociologia brasileira teve um de seus críticos menos complacentes, mais ácidos e o mais intransigentemente apaixonado; sua trajetória confunde-se momentaneamente com a própria sociologia brasileira, seu destino, por outro lado, destoa da acomodação: seus feitos referem-se a uma fase tragicamente heróica desta sociologia, momento no qual – se não tudo – muito (ainda) parecia possível e por fazer, e o exercício da sociologia era menos uma carreira que uma missão.4 Uma missão cujo propósito estava, para Guerreiro Ramos, eivado de um salvacionismo – na época Mário de

3

Antes já havia participado da fundação do Centro de Cultura Católica e da Faculdade de Filosofia, ambos na Bahia.

4

A respeito da relação entre missão e profissão no exercício intelectual das ciências sociais no Brasil, ver Lahuerta (1992, 1997, 1999).

(12)

Andrade (1972, p. 41) definiu a sociologia como “a arte de salvar rapidamente o Brasil” – e, também, singularmente, de uma atitude redentora, que pretendia (re)fundar a sociologia (e a nação) em novas bases, agora redimida(s) de seus pecados originais.

No intuito de situar o pensamento do autor, o período da história brasileira compreendido entre 1930-1982 é considerado – sem que nos detenhamos necessariamente nele – com privilégio do interregno 1930-1964, período no qual não só a produção intelectual e a atuação política do autor são mais intensas e efetivas,5 mas também por ser um momento crucial da história da sociedade brasileira, quando houve profundas mudanças em sua densidade e configuração social, consolidou-se um outro setor da classe burguesa dominante como dirigente, as classes subalternas irromperam no cenário político como novos sujeitos, conformou-se uma classe média de tipo moderno e, no plano intelectual, foram criadas as primeiras universidades e desencadeado o processo de institucionalização da sociologia brasileira, organizou-se um padrão e uma regularidade de produção científica e buscou-se interpretar a sociedade brasileira conforme novos moldes e exigências, em sua maioria, insistindo na diferenciação/distanciamento com o pensamento social anterior.

Tal período marca a consolidação do capitalismo e da sociologia no Brasil, o que não indica uma coincidência, mas a determinação – por parte do modo de produção – de um novo saber socialmente adequado às suas demandas econômicas, técnicas e de divisão do trabalho, bem como uma atualização de mentalidade no sentido de ajustar o saber às formas de racionalização e

5

Sobre a produção intelectual do autor, ver Costa, F. (1983), Soares (1993) e, principalmente, Azevedo (2006).

(13)

parâmetros de interpretação legítimos dentro da formação social e seus condicionantes ideológicos. Obviamente, esse contexto esboçado não pretende um completo cerceamento das circunstâncias sociais de inserção da problemática, já que relega – embora não desconheça – os condicionantes mais amplos de historicidade e sua força de permanência. Esta lacuna, cremos estar amenizada pela consideração do período (1930-1982), além disso, neste caso, a amplitude

por si talvez não seja uma virtude, pois se as idéias têm um enraizamento

histórico-social, a profundidade e formas de expansão dessas raízes certamente escapam à nossa completa percepção, vez que se confundem com a própria história humana e todos os seus aspectos.

Desse modo, o que está proposto é o entendimento dos principais aspectos de uma obra significativa, original, elaborada por um intelectual profundamente atormentado com as dificuldades, insuficiências e possibilidades de apreensão mental das circunstâncias de sua existência individual, de grupo e o entorno social, bem como, ao fundo, a perseguição às relações entre as aspirações à construção de um capitalismo nacional (logo, à época, autônomo) e de um saber fortemente imbricado com a realidade nacional: para o autor (em certo momento), umasociologia nacional em recusa à transplantação de idéias e à determinação de temáticas e modelos externos, apartados (e subjugando) os verdadeiros interesses e necessidades oportunos para a superação da miséria brasileira, do atraso, do subdesenvolvimento.

Pretende-se – também – asseverar a indispensabilidade de dialogar como o autor e não simplesmente ‘dissecá-lo’, já que muitos dos problemas que Guerreiro Ramos se propôs ainda assombram a sociedade e sociologia brasileiras:

(14)

se suas ‘soluções’, por vezes, detiveram-se no malogro, seus questionamentos continuam vivos e conseqüentes.6Nesse aspecto, no plano político, alguns – como José Murilo de Carvalho (2003c, p. 6) – já o revisitam com base numa espécie de ardil da história, notando a volta à atual cena política nacional de suas concepções, particularmente no que diz respeito à constituição do povo como sujeito político, da nação como espaço vital e da herança varguista, ironicamente, por meio de seus críticos tardios.

Cabe também advertirmos para os estreitos limites e as dificuldades de

compreender e explicar a trajetória de um autor tanto fascinante quanto

complexo, em alguns momentos, contraditório. Primeiramente, abandonamos a tentativa de retalhar o autor e sua produção em fases definidas em benefício de uma consideração de sua trajetória, pois só a totalidade tensa e dinâmica de seu percurso e conformação conferem certa fidelidade à apreensão do sujeito intelectual, de sua obra e as relações destes com determinado grupo social e sua visão de mundo.7 Segundo, envidamos esforços na abordagem desta obra como pensamento vivo e tenso, seja no que diz respeito à atualidade de suas elaborações, seja no tratamento das idéias como forças atuantes em seus contextos, resguardada a historicidade dessa – conflituosa e problemática – relação (texto/contexto), tomada como situação dinâmica e não elemento do baú de ossos da crítica arqueológica, que lê o passado em função de um presente providencial. Por fim, mobilizamos uma concepção deliberada – e talvez

6

Entretanto, em alguns momentos, sentimo-nos premidos pelas circunstâncias a proceder certo resgate – como se o autor precisasse disto – da obra, dado certo desconhecimento insuflado pela crítica silenciosa do desprezo.

7

O que, de outro modo, suscita problemas quando da interpretação de alguns momentos de sua obra, mormente quanto aos diferentes tratamentos – em diferentes momentos – dados pelo autor às mesmas questões e em certa homogeneização indevida, que perseguimos como sínteses e não denominador comum, do pensamento deste.

(15)

insuficiente – no sentido de não pretender domar completamente ou exaurir a rica trajetória de um indivíduo e suas idéias (e condicionantes) na incompletude e precariedade de uma armação teórico-conceitual, um contexto imediato e a simples diluição num determinado grupo social, pois intentamos não reduzir a significação de uma experiência intelectual (e existencial) a uma construção lógica encravada num recorte espaço-temporal. Tanto as idéias quanto a vida serão sempre maiores que o texto e o contexto, bem como intangíveis à nossa capacidade de explicá-los teórica e cabalmente.

(16)

I - Trincheiras

“Não pertenço a instituições, não tenho fidelidade a coisas sociais; tudo o que é social, para mim, é instrumento. Eu não sou nada, estou sempre à procura de alguma coisa que não é materializada em instituição, em linha de conduta. Ninguém pode confiar em mim em termos de sociabilidade, de institucionalidade, porque isso não é para mim, não são funções para mim. O meu negócio é outro.” Guerreiro Ramos

Mesmo avesso ao engajamento institucional, Guerreiro Ramos esteve por vezes ligado a instituições que influenciaram sua trajetória. Cursou Ciências Sociais na Faculdade Nacional de Filosofia, e Direito na Faculdade de Direito (ambas da então Universidade do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro), formando-se, respectivamente, em 1942 e 1943. Recém-egresso da Universidade, esforçava-se em estabelecer relações entre o instrumental teórico que possuía e as circunstâncias da sociedade em que vivia, tateando a realidade brasileira e procurando desafios e respostas às inquietações (muitas delas existenciais) que o acompanhavam – e algumas o acompanhariam por toda sua vida.8

8

Paradoxalmente, sua passagem pela Universidade (ainda em fase de criação no Brasil naquele momento) não parece ter deixado marcas indeléveis em sua formação intelectual, até porque já ao iniciar tais estudos possuía considerável repertório cultural, já havia atuado em movimentos culturais e como assistente da Secretaria de Educação do Governo do Estado da Bahia – recrutado por Rômulo de Almeida (SOARES, 2005, p. 17). Inegável, contudo, que se a presença na Universidade não lhe moldou os conhecimentos, propiciou-lhe o intenso contato com um tema que viria a se consolidar como um dos seus principais objetos de estudo: a sociologia no Brasil (e suas mazelas).

(17)

Preterido na carreira universitária, entrou em profunda crise existencial.9 Necessitando manter-se, passou a lecionar – por indicação de San Tiago Dantas – no Departamento Nacional da Criança (no Rio de Janeiro), ocupando a Cadeira de Problemas Econômicos e Sociais do Brasil; ainda em dificuldades financeiras e convidado por um amigo, candidatou-se a um emprego de técnico em administração no DASP (Departamento de Administração do Serviço Público), sendo aceito (de modo interino) em 1943. Entre suas atribuições no órgão, estavam analisar projetos de organização (para órgãos policiais, penitenciárias, de estímulo à agricultura, etc.) e auxiliar na seleção de pessoal, cuja seção de recrutamento chegou a chefiar. Após aprovação em concurso em 1945 (apresentando o trabalho Administração e política à luz da sociologia), efetivou-se em 1945 como técnico em administração, apreefetivou-sentando como requisito de mérito a teseUma introdução ao histórico da organização racional do trabalho.10 Com a posse de Getúlio Vargas (em 1951), distanciou-se do quadro do DASP para integrar a equipe da Assessoria da Casa Civil do Presidente,11

9

Teria sido – segundo ele – indicado para suceder André Gros (na Cadeira de Política da Faculdade Nacional de Filosofia) e também para a de Jacques Lambert (Sociologia), mas assumiram Vítor Nunes Leal e Luiz de Aguiar Costa Pinto, respectivamente. Era 1943 – naquele contexto da Segunda Guerra e do Estado Novo – teria sido acusado por “comunistas” de “colaboracionista”, por causa de seu passado integralista e sua ligação, desde a Bahia, com Landulfo Alves (Governador da Bahia) e o irmão Isaías Alves (Secretário Estadual de Educação). A partir daí, e durante toda sua vida, acreditar-se-á (não somente devido a esse episódio) um perseguido político, por exercer certa independência de pensamento, não se aferrando – segundo ele – a seitas e conluios (OLIVEIRA, L, 1995, p. 140). Nesse período de 1942 a 1945 teria passado por intensa crise espiritual e vivido quase que recluso, nesse processo, teria perdido momentaneamente a fé (era profundamente católico) e definitivamente as ilusões acadêmicas (NASCIMENTO, A., 2003a, p. 96).

10

Mais tarde (em 1963), deputado federal eleito, apresentará na Câmara dos Deputados um pioneiro projeto de lei (n° 984) para regulamentação da profissão de técnico em administração (SOARES, 2005).

11

Também assessoraram Vargas – sob o comando de Rômulo de Almeida – Jesus Soares Pereira, Ignácio Rangel, Darcy Ribeiro, Otholmy Strauch, Cleantho de Paiva Leite, Lúcio Meira, Mário Pinto, entre outros. A Assessoria redigia discursos (pronunciados na Mensagem Programática, comunicação freqüente do Presidente) e elaborava projetos, mormente econômicos (daí sua notoriedade como Assessoria Econômica), que davam forma à política de nacionalização e desenvolvimento de Vargas. Agindo discreta e competentemente, recrutada em sua maior parte no

(18)

simultaneamente, com a criação da Escola Brasileira de Administração Pública (EBAP) da Fundação Getúlio Vargas (em 1952), tornou-se professor dessa, mantendo com a instituição estreita relação que duraria longos anos. Engajou-se, assim, diretamente na política ao integrar a mencionada Assessoria de Vargas e posteriormente o Grupo de Itatiaia, IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política) e ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), todavia, continuou afastado da Universidade, só vindo a ter propriamente uma carreira acadêmica no exílio, nos EUA.12

O pertencimento a tais instituições (Departamento Nacional da Criança Assessoria de Vargas, Fundação Getúlio Vargas e, mormente, DASP, Grupo de Itatiaia, IBESP, ISEB) e as circunstâncias que o envolvem têm relevância contextual (mesmo limitada e momentânea) na análise da trajetória do autor. Tomada como lócus e processo social, a instituição pode ser considerada limitadamente uma “sociedade em miniatura”, o que não lhe confere – ao final e

próprio bojo do funcionalismo federal (não havia verbas suficientes às vezes nem para remunerar os assessores), a Assessoria de Vargas elaborou projetos como: de criação da Petrobras, do Fundo Nacional de Eletrificação, Eletrobrás, Plano Nacional do Carvão, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Reforma Administrativa, Carteira de Colonização do Banco do Brasil, Instituto Nacional de Imigração, Comissão Nacional de Política Agrária, Comissão de Desenvolvimento Industrial, Banco do Nordeste do Brasil, Plano Nacional do Babaçu, de planejamento para indústria automobilística, seguro agrícola e crédito rural, etc. Segundo D’Araújo (1992, p. 152): “A criação dessa Assessoria, quando da instauração do Governo [Vargas], representa um fato inédito no Brasil. Pela primeira vez um governo brasileiro criava um órgão permanente de planejamento encarregado de estudar e formular projetos sobre os principais aspectos da economia do país”. Sobre o tema, pode-se ver também o depoimento de Jesus Soares Pereira (LIMA, M., 1975), as teorizações econômicas (BIELSCHOWSKY, 2004) e a análise de Rômulo de Almeida e outros (SZMRECSÁNYI e GRANZIERA, 2004).

12

A EBAP priorizava a formação de quadros técnicos, já o ISEB, embora dedicasse seus esforços ao ensino e difusão social do conhecimento, não pode ser considerado estritamente um órgão acadêmico, uma vez que pretendia exercer um papel de intervenção política ativa (e muitas vezes direta) que destoava da preocupação institucional, canônica e ritual de uma academia. Fato curioso é que Guerreiro Ramos, antes mesmo de se graduar no Rio de Janeiro, já era Catedrático da Cadeira de Sociologia da Faculdade de Filosofia da Bahia, dadas suas relações com o Governo Estadual quando da fundação daquela universidade. Os seus estudos e sua estadia no Rio de Janeiro eram custeados por bolsa concedida também por aquele governo, no entanto, após graduar-se, perdeu as subvenções e a cadeira (NASCIMENTO, A., 2003a, p. 96; OLIVEIRA, L, 1995, p. 132).

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em definitivo – nem autonomia social, nem prerrogativa na explicação sociológica

(FERNANDES, 1991, p.171-2).13 Possuir uma dinâmica própria, desfrutar de uma posição diferenciada no interior da sociedade, ter ritmos e rumos não ajustados automaticamente ao movimento do todo, em suma, exceder uma simples engrenagem do sistema não a torna (a instituição) soberana ou sequer independente. Por outro lado, tal condição que a particulariza também pode lhe proporcionar – em relação à sociedade – uma atuação mais que meramente funcional ou disfuncional (MERTON, 1970), ou mecanicamente articulada: pode situar-se numa posição de empuxo ou tensão e, no limite, até mesmo de contradição à própria sociedade que a envolve, identificando-se ou contrapondo-se à totalidade, afirmando ou negando os influxos do processo social geral.

Também o indivíduo se relaciona com a instituição de modo tenso, se as formas sociais às quais é submetido (coerção, exterioridade, seleção, recompensa, sanção, etc.) circunscrevem suas possibilidades e condicionam suas ações, tais ações não são absolutamente determinadas, irrefletidas ou automáticas, estão simultaneamente condicionadas por uma forma superior (mais determinante) de sociabilidade que lhe fornece subsídios para conformação de seu modo de existência e consciência social, a saber, sua maneira de inserção na estrutura social sob as formas predominantes de ordenação das ações sociais em fluxo: os grupos, mormente as classes sociais.

A participação de Guerreiro Ramos em certas instituições, se não determinou cabalmente os rumos de sua trajetória, fez com que se defrontasse com exigências em termos de vivência, formulação conseqüente das questões

13

Não dispõe, portanto, de completa autonomia – inclusive na construção de idéias e tomada de decisões, como supõe, por exemplo, Douglas (1998).

(20)

sociais prementes e aparelhamento teórico conceitual para abordá-las, tornando imperativa a tomada de decisões no que diz respeito à postulação de temas e problemas, opções teórico-conceituais, ambiente e postura intelectual, instrumentalização do conhecimento, experiência social e implicações político-pragmáticas do saber, sobretudo, na interiorização da relação teoria-prática quando da assunção de uma práxis – momento constitutivo da inserção social coletiva.14Todavia, se o autor como sujeito intelectual não pode ser tomado como espécie de ‘superconsciência’ social, sua existência e estatuto de integração impõem-lhe o estabelecimento de relações teórico-racionais na interpretação das circunstâncias e assunção de papéis sociais.

1. DASP, administração, política e modernização

No período no qual Guerreiro Ramos esteve no DASP – segundo ele próprio – a rotina de suas funções o entediava, seu temperamento forte e irrequieto não se aplacava em exercer um trabalho dessa natureza, que ele mesmo definiu (anos depois) simplesmente como “chato” (OLIVEIRA, L., 1995, p.146).

No entanto, o DASP (em seu contexto e atribulações), foi um sugestivo laboratório para que – inicialmente – Guerreiro Ramos atentasse para alguns dos problemas cruciais do Brasil, o que notoriamente pautou suas reflexões a respeito

14

Serão consideradas mais detidamente algumas instituições que elegemos como de maior relevância na trajetória do autor e cuja produção intelectual deste, intrínseca ou concomitante à instituição, possa ser aferida. Como critérios serão utilizadas a interpretação da relação do autor com a instituição no que diz respeito às questões e inquietações que por meio dela advieram e a influência dessas questões na trajetória do autor. Na construção contextual das instituições, foram arrolados (logo, selecionados) fatos e textos – tanto da produção das instituições quanto dos analistas dessas, uma vez que os textos são parte importante (embora não suficiente, daí o uso de outras fontes) da constituição do contexto (LA CAPRA, 1985, 1992).

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da complexidade social do país, questões como: a efetivação da administração, a transplantação de idéias, a função pública e a do intelectual, a relação entre Estado e sociedade, o público e o privado, o patrimonialismo, a relação entre racionalidade e irracionalidade, modernização e tradicionalismo, o caráter do Estado, as formas e os arranjos entre as forças políticas, a conformação e dinâmica das classes sociais, a cultura política e suas implicações, os entraves ao desenvolvimento, o desenvolvimento como racionalização, modernização como tarefa nacional e o papel do Estado nessa empreitada – entre outras colaterais.

Guerreiro Ramos, no departamento, praticamente iniciou uma carreira profissional e colaborou na Revista do Serviço Público, resenhando livros. Nesse período, sua produção foi marcada por trabalhos quase sempre modestos e imediatos, sua tese para efetivação no cargo – Uma introdução ao histórico da

organização racional do trabalho: ensaio de sociologia do conhecimento (1949)

– é que possui maior fôlego.15

Fruto de uma experiência pioneira, o DASP foi parte da iniciativa de reforma e planejamento que inaugurou uma nova feição dos órgãos estatais no Brasil, somente a partir dele organismos planejadores e fiscalizadores de caráter técnico-burocrático ganharam importância.16 Entretanto, ele não fincou suas raízes no ar, a sociedade brasileira é profundamente marcada por uma sociabilidade baseada no favor, no personalismo, no clientelismo, no

15

Adiante, ainda neste capítulo, encetamos breve análise desse material. O autor colaborou também, em 1941, na revistaCultura Política, escrevendo sobre literatura latino-americana – para um balanço dessa produção, ver Azevedo (2006). Em 1937, já havia publicado um livro de poemas (O drama de ser dois) e, em 1939, um de ensaios (Introdução à cultura), ambos escritos ainda na Bahia – e o último publicado já no Rio de Janeiro.

16

Para Draibe (1985, p. 104), foram do DASP “[...] as primeiras iniciativas no sentido de concretizar a ação industrializante do Estado, sob a forma de planos globais dos investimentos estatais”. Já para Ianni (1996, p. 38), é o Conselho Federal de Comércio Exterior – criado pelo Decreto nº 24.429, de 20 de junho de 1934 e instalado em 6 de agosto de 1934 por Vargas – que deve ser considerado o primeiro órgão brasileiro de planejamento governamental.

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fisiologismo, na promiscuidade entre o público e o privado, na corrupção, na exclusão. Um terreno nada fértil para o empreendimento, ainda assim, o DASP acumulou forças, resistiu e manobrou até onde pôde. Suas ações foram marcadas pelas dificuldades de viabilização inerentes e seu percurso por tensões e contradições que se acumulavam devido ao atrito entre o caráter de suas funções (racionais-legais) e a cultura política e sociabilidade (patrimonialista) na qual se inseria. Seus dilemas são, de certo modo, os dilemas de toda modernização no Brasil, que o avanço do capitalismo não somente não dirimiu como também potencializou.

Previsto no artigo 67 da Constituição Federal de 10 de novembro de 1937 e criado no início do Estado Novo pelo Decreto-lei nº 579, de 30 de julho de 1938 (BRASIL, 1938), o DASP tinha amplas atribuições como órgão de consultoria, seleção, planejamento e fiscalização (ver anexo A).17 Em sua criação (e posterior desempenho), consta a procura por um modelo de gestão que propiciasse racionalidade e excelência produtiva com rigor técnico, impessoalidade e autonomia; as influências teóricas dessa engrenagem seriam buscadas – segundo Wahrlich (1983, passim) – em Francisco Campos (e sua primazia na confecção da Constituição de 1937), Max Weber, Henri Fayol, Luther Halsey Gulick, Frederick

17

No seu período inicial, de maior influência (1938-1945), o DASP teve como presidente Luiz Simões Lopes (1903-1994), que exerceu diversos cargos na administração pública, entre os quais: Oficial de Gabinete da Secretaria da Presidência da República (1930-1937), Presidente do Conselho Federal do Serviço Público Civil (1937-1938), Presidente da Comissão de Orçamento Geral do Ministério da Fazenda (1939-1945), Presidente da Comissão de Orçamento da República (1940-1945), Presidente da Comissão de Estudos e Projetos Administrativos no Governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), membro do Conselho de Administração do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (1956), membro e presidente do Conselho de Cooperação Técnica da Aliança para o Progresso – CONTAP (1965-1969), membro da comissão de peritos para estudar o Programa de Administração Pública da Organização das Nações Unidas (1966), Presidente da Sociedade Nacional de Agricultura (1969-1979). Foi também fundador (em 1944) da Fundação Getúlio Vargas, a qual presidiu até 1992 (HISTÓRICO DOS PRESIDENTES DA FGV, 2006). Simões Lopes também será um dos responsáveis pela acolhida de Guerreiro Ramos na Fundação Getúlio Vargas, quando da cassação e proscrição do sociólogo pelo regime militar, em 1965.

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Winslow Taylor e, sobretudo, em William F. Willoughby. Entre as idéias principais da teoria da administração de Willoughby, estão: 1) a consideração dos princípios da administração como passíveis de aplicação universal, 2) a separação entre política e administração e 3) a menção a um departamento de administração geral como órgão de apoio direto e imediato ao chefe do Executivo. Tais elaborações eram particularmente congruentes com a pretendida armação político-institucional brasileira naquele momento.18

No intento de romper os estreitos limites dados pela organização do Estado (e da máquina administrativa) – que moldados pelos interesses predominantes na Primeira República, minimizavam em muito o escopo e intensidade das manobras políticas e de gestão por parte do poder central –, o Estado Novo cria o DASP visando modernizar o setor estatal, imprimir novos ritmos e rumos à dinâmica político-administrativa e arrastar consigo a frágil sociedade civil.

A situação brasileira, já descrita como de “completa debilidade (ou mesmo ausência) de sociedade civil” (COUTINHO, 2000, p. 21), não favorecia a ebulição de demandas sociais legítimas, o que havia de efetivamente organizado – como já havia afirmado Tobias Barreto (MENESES, 1962, p. 103) – era o Estado, um Estado configurado pelos estreitos interesses da classe dominante, sob as hostes dos seus sócios, as burguesias dos países centrais. Hegemônico, um

18

Quem primeiro mencionou tal teoria do departamento de administração geral no Brasil teria sido Gustavo Capanema (outro importante personagem do Estado Novo) em fins de 1935 (WAHRLICH, 1982, p. 282). Caberia investigar em que medida certo caldo de cultura positivista e castilhista – heranças presentes na formação de Vargas – teriam influenciado nessa construção institucional, em razão do caráter autoritário e da pretensão (um tanto seletiva) dessas doutrinas em submeter a política institucional ao crivo ‘científico’ (BARRETTO, 1989; CURSO DE INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO POLITICO BRASILEIRO, 1982).

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liberalismo oligárquico dominava a cena política e restringia não só a participação das outras classes nos assuntos de Estado, como também a própria autonomia relativa (possível) desse em relação à limitação dos anseios excessivamente particulares que exigiam as benesses do mando. Estado e classe dominante praticamente se confundiam, se identificavam em larga medida, inviabilizando a organização e atuação estatal de modo mais amplo, racional e moderno. Nos níveis operacionais da máquina administrativa, predominava um funcionalismo público que já havia sido descrito como “o grande asilo das fortunas desbaratadas da escravidão” (NABUCO, 2000, p. 106), inchado, um tanto incompetente e perdulário das receitas públicas.

Numa guinada antiliberal, o Estado Novo fortaleceu o poder central e garantiu-lhe razoável capacidade decisória à revelia dos interesses particularistas e do poder local, embora sem participação ativa da incipiente sociedade civil, mormente suas classes subalternas. Efetivava-se então a concepção, preconizada por Alberto Torres (1982b, p. 117) já em 1914, de que a única força capaz de promover a coesão e o dinamismo da sociedade brasileira era “o aparelho político-administrativo, com seus vários órgãos”.

Frente à fragilidade de alguns grupos sociais, ausência de democracia e privilégio arbitral da posição estatal, a ditadura incumbiu-se de implantar o gerenciamento minimamente impessoal dos negócios do Estado, cabendo ao autoritarismo bloquear muitos canais dos quais se serviam os particularismos e viabilizar o surgimento de uma administração burocrática e racional. Segue-se, no entender de Faoro (1987, p. 725, v. 2), que: “O quadro administrativo domina a cúpula, com forças nacionais e não regionais, capaz de vencer veleidades

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localistas”. Nessa nova disposição, o DASP foi um órgão que – funcionando como órgão de inovação e modernização administrativa, liderando a efetiva organização do aparato público-estatal e atuando como centro irradiador de influências renovadoras – tornou-se peça estratégica de um sistema racionalizador no âmbito do Poder Executivo Federal (NOGUEIRA, 1998, p. 94). Desdobrava-se ainda nos estados por meios dos “daspinhos” (departamentos estaduais) que, sob controle federal, funcionavam como “uma espécie de legislativo estadual” e corpo supervisor para o Interventor no Estado e o Ministério da Justiça, submetendo também os prefeitos municipais ao seu jugo (SOUZA, Maria, 1976, p. 96). Daí apenas um passo para que no Estado Novo, a política fosse “eliminada”, “tudo se discutia como se se tratasse de assunto puramente técnico, a ser decidido por especialista” (CARVALHO, 2003b, p. 110).

A tentativa de modernização do país (e a melhoria da administração) passava pela desobstrução das artérias políticas, intoxicadas pelo emaranhado de interesses localizados que obstaculizava o fluxo da racionalidade administrativa. Coube mormente ao DASP isolar as pressões dessa teia de interesses e normatizar a administração da gestão racional dos negócios do Estado. Nas palavras de Guerreiro Ramos (1966, p. 448), deu-se, entre 1930 e 1945, uma “verdadeira revolução administrativa, tal o porte das modificações de estrutura e de funcionamento que se verificaram em nosso serviço público federal”.

Era o primeiro grande passo em direção à burocratização do serviço público e à criteriosa contratação de pessoal, baseada agora nas exigências de competência e qualificação. Com o DASP, os critérios – antes calcados nas relações pessoais (favor, apadrinhamento, etc.) – passaram a ser orientados pelo

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mérito e pela competência, instaurando concursos e carreiras, superando o favoritismo e estendendo as oportunidades de emprego. A classe média que surgia será a grande beneficiária desse processo (IGLÉSIAS, 1993, p. 254-5).

Assim, as mudanças legitimavam-se não apenas pelos anseios de modernização, eficiência e cuidado administrativo, mas também por abrir brechas institucionais à participação (técnico-política) – embora em cargos de menor poder decisório – e à ascensão social de uma classe média instruída e desejosa de oportunidades.19 Segundo Luiz Werneck Vianna (1997, p. 184), o DASP “trará o taylorismo, a racionalização do trabalho, a ideologia do produtivismo, este nosso bizarro americanismo forjado pelo Estado”.

Todavia, possuidor de imensos poderes, o órgão (hipertrofiado) usurpava funções, monopolizava decisões e desconsiderava as rotinas institucionais de representação, considerando-se imune às pressões clientelísticas. Com isso, entre outros expedientes, o Estado Novo tentava ‘dobrar os joelhos’ das oligarquias,20 especialmente algumas ainda relutantes e que se apoiavam no clientelismo (ainda incrustado na máquina estatal) como tipo de dinâmica decisória:21 ao criar um rígido setor técnico estatal, o regime escolhia as arenas (e os momentos) para travar as disputas políticas e ganhava poder de barganha ao endurecer no trato administrativo das questões, dissociando na superfície o administrativo do

19

A(s) classe(s) média(s), enquanto grupo social, já se insinuava como ator no cenário político por meio da contestação do caráter oligárquico da Primeira República (mormente pelo Tenentismo) e pela presença no movimento insurrecional de 1930 (ROSA, 1933; RAMOS, 1961; JAGUARIBE, 1972; FORJAZ, 1977) – visões divergentes estão em Fausto (1978) e Saes (1975). O Estado Novo também propiciará ao grupo espaços institucionais de expressão/circunscrição cultural (e legitimação do regime).

20

Paralelamente, também obstaculizava o surgimento de novas lideranças políticas e vedava a participação político-institucional da esquerda e da direita mobilizadora (como o integralismo).

21

Definições (distintas) do conceito de clientelismo estão em Nunes, E. (1997) e Carvalho (1998). Tentamos aqui uma síntese conceitual, tanto analítica como histórica.

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político, uma vez que as decisões políticas estavam nas mãos do Governo Federal e da ditadura que o controlava – e algumas vezes apenas nas mãos de Vargas. As questões não podiam mais passar por cima ou pelas frestas da rede administrativa, deviam antes ser tratadas tecnicamente e, como Vargas detinha o controle estratégico do direcionamento das decisões técnicas, teriam de passar pela negociação política com o poder central – racionalidade técnica e astúcia política imbricavam-se nessa rede.

Obviamente, essa arquitetura não era tão sólida e infalível quanto talvez possa parecer, ainda assim, tal estrutura – associada a outras estratégias de repressão, cooptação, convivência e aproximação – 22 garantiu quase uma década de poder a um Estado reformador, que fez incisões em questões prementes e alterou as bases sociais de um país moldado em relações privatistas e clientelísticas, o que não é pouco.23

O planejamento – na modalidade que aqui assumiu – passava a fazer parte do desenvolvimento capitalista, modificando as formas de controle do Estado e influenciando a dinâmica da sociedade. As possibilidades para uma intervenção desse porte foram abertas graças a uma particular conjuntura interna/externa, derivada de mudanças estruturais e certo arranjo de classes.24

22

O regime contava com o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) – que mantinha canais de expressão intelectual como as revistas Ciência Política e Cultura Política (na qual Guerreiro Ramos colaborou) – e o Ministério da Educação e Saúde, chefiado por Gustavo Capanema, articulador de projetos educacionais e culturais na edificação estado-novista – ver Schwartzman, Bomeny e Costa (2000). Por outro lado, também possuía mecanismos repressivos e lançava mão de prisões e intimidações.

23

Interveio em questões sociais, políticas, trabalhistas, administrativas, econômicas, etc., embora tenha negligenciado a questão agrária, que talvez fosse o fiel da balança, já que uma intervenção modernizadora nesse âmbito poderia descontentar profundamente as oligarquias em geral e seus aliados, contribuindo para organizá-las em torno de algo comum, mudando a correlação de forças e estremecendo o equilíbrio do arranjo do bloco no poder.

24

As origens da ideologia e da prática do planejamento governamental no Brasil devem-se – segundo Octávio Ianni (1996, p. 68-9) – a “[...] uma combinação privilegiada de condições (economia de guerra, perspectivas de desenvolvimento industrial, problemas de defesa nacional,

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Não obstante, dentro das escolhas históricas possíveis, a habilidade de Vargas e do grupo no poder foi invulgar.25

Contudo, o privatismo ainda possuía profundas raízes e, superada uma conjuntura negativa, voltou à carga cobrando a hegemonia perdida. Com a queda de Vargas em 1945 e o fortalecimento de outra vertente burguesa de extração mais liberal, as funções do DASP foram drasticamente reduzidas, limitando-o a um órgão de estudo e de orientação administrativa (DRAIBE, 1985, p. 298). No Governo Dutra – segundo Cunha, M. (1963, p. 108-9) – o DASP sofreu críticas na imprensa e no Parlamento, correndo o risco de ser extinto; sobreviveu então com seus poderes diminuídos (especialmente alijado da confecção do orçamento) e com seu prestígio arranhado, não sendo poucos os técnicos que o abandonaram, procurando melhores posições nos organismos internacionais e nos Ministérios.26

A burocracia (os técnicos do DASP), todavia, resistia. Guerreiro Ramos permanecia no órgão, mas viria a lamentar os efeitos que a queda de Vargas e o

reestruturação do poder político e do Estado, nova constelação de classes sociais) que transformou a linguagem e a técnica do planejamento em um componente dinâmico do sistema político-administrativo. Ou melhor, a linguagem e a técnica do planejamento foram incorporadas de forma desigual e fragmentária, segundo as possibilidades apresentadas pelo sistema político-administrativo e os interesses predominantes do setor privado da Economia. Esta é a razão por que, ao mesmo tempo em que se ensaiava a política econômica governamental planificada, desenvolvia-se a controvérsia sobre os limites da participação estatal na Economia.” No âmbito internacional, ascendia o capitalismo monopolista e a economia dolaissez faire perdia espaço para o intervencionismo, como o indicam: as mudanças no padrão monetário internacional, a ascensão do nazismo e do fascismo, oNew Deal nos EUA, a crescente influência de teorias econômicas como o keynesianismo e mesmo a impressionante modernização econômica da União Soviética. Para uma recensão dos fatos desse período ver Mauro (1976) e para uma análise das teorias econômicas e a influência que exerceram ver Barber (1971), Rima (1987) e, no Brasil, Lima, Heitor (1976).

25

É insofismável aqui a influência do gênio político de Vargas (PEIXOTO, 1960; BRANDI, 1983; TAVARES, 1982; SILVA, 2004).

26

Em 1947, foi proposta e recusada sua extinção e, mais tarde, em 1967, foi criado o Departamento Administrativo do Pessoal Civil, que conservou a sigla DASP, mas que na verdade já era outro órgão (AVELLAR, 1976, p. 329). Finalmente, em 1986, o Decreto nº 93.211, de 03 de setembro, extinguiu o DASP e criou a SEDAP – Secretaria de Administração Pública da Presidência da República (BRASIL, 2006). A respeito da cronologia da legislação sobre o DASP, ver anexo C desta.

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fim do Estado Novo produziram na administração federal. Uma outra concepção (auto-intitulada “democrática”) vigia, a partir de então, no órgão esvaziado em muitas de suas funções administrativas e como vetor de poder, e grassavam novamente na administração as antigas formas do clientelismo. “Na prática, a ‘reestruturação democrática’ do DASP favoreceu a distribuição política de empregos, independentemente do controle do sistema de méritos e concursos” (DRAIBE, 1985, p. 298).

A atuação do DASP havia granjeado muitos desafetos entre os interesses até então sem peias, encarregado de zelar pela legislação e aplicar de modo impessoal as determinações, descontentou desde setores poderosos até os pequenos apadrinhados.27 O poder que teria acumulado, a visão técnica que o movia e a investidura de guardião da eficiência e moralidade públicas granjearam-lhe inimigos dentro até do próprio Governo. A sistemática imposta pelo DASP ao serviço civil contrariava interesses, parecendo mesmo às autoridades dos vários ministérios que o departamento se arvorava em superministério (AVELLAR, 1976, p. 290).28 Com a mudança da conjuntura política, os ataques vieram de vários lados, tendo o DASP contra si – segundo Edson Nunes (1997, p. 54) – o fato de que teria sustentado um processo de centralização sem precedentes no país, o que teria permitido identificá-lo como um “rebento da ditadura”.

É comum na literatura a respeito do Estado Novo detectar um dado arranjo de classes, um equilíbrio de poder e/ou certo bonapartismo – além do

27

“Determinando a Constituição a proibição de acumular cargos públicos, coube ao DASP fazer cumprir a norma, o que lhe valeu a malquerença de quantos tiveram de despojar-se de outros empregos ocupados na administração federal, estadual ou municipal” (AVELLAR, 1976, p. 290).

28

Agamenon Magalhães, em artigo publicado naFolha da Manhã, de Recife, em 18 de setembro de 1940, afirmava: “Quando estive no Rio, o ano passado, ouvi muita gente grande e importante dizer que ou o Estado Novo acaba com o DASP ou o DASP acaba com o Brasil” (apud WAHRLICH, 1983, p. 317).

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talento político – que deram amplos poderes a Vargas e uma liberdade de manobra poucas vezes conseguida na história da República, o que teria lhe facultado a possibilidade de um governo forte e poder necessário para fazer incisões profundas na estrutura do Estado brasileiro, paradoxalmente, implementando a administração burocrática (impessoal) sob o lastro do personalismo carismático e autocrático. No entender de Graham (19-, p. 8), as reformas administrativas nas “sociedades em transição” só seriam possíveis sob a égide de um governo forte, entretanto, seria possível organizar um governo forte – naquela conjuntura de agudas tensões, enfrentamento entre classes e emergência de demandas sociais – sem recorrer a algum tipo ou nível de autoritarismo?

A questão, refletida no pensamento social no Brasil, remete a duas vertentes que se opunham, mas que na verdade constituem duas faces da mesma moeda: intervencionistas, para os quais as livres demandas perturbariam o processo de racionalização e só o comando autoritário propiciaria um ambiente asséptico para a organização administrativa; e liberais, para os quais qualquer racionalização que tivesse como base o estatal (e não o privado) padeceria com o autoritarismo, ainda que a manutenção de interesses particulares e elitistas não lhes parecesse autoritário.29

Os termos – notoriamente – têm como referência a célebre discussão – e suas várias facetas – entre duas posições que marcaram o ambiente (e antecedentes) daquele período: dever-se-ia estruturar e reformar a sociedade por meio da legislação e institucionalização ou tais mecanismos deveriam adequar-se à realidade social em questão? Legislar ou proceder? As normas regeriam os fatos ou os fatos seriam imperativos frente às normas? Inventar o novo ou inovar o

29

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inventado? Deliberar para a modernidade ou modernizar – numa expressão cara a essa geração – arealidade nacional.

Numa das formulações a respeito dessa contenda Wanderley Guilherme dos Santos (1978, p. 93 et seq.)30 distingue entre o liberalismo doutrinário, configurado por “[...] sucessivas facções de políticos e de analistas que, desde meados do século XIX, sustentavam a crença de que a reforma político-institucional no Brasil, como em qualquer lugar, seguir-se-ia naturalmente à formulação e execução de regras legais adequadas”, citando como exemplos Tavares Bastos e, “talvez”, Assis Brasil e Rui Barbosa, tendo mais tarde a UDN como herdeira; e o autoritarismo instrumental, compartilhado pelos que criam “que as sociedades não apresentam uma forma natural de desenvolvimento” – daí o papel do Estado na determinação desses rumos – e “[...] que o exercício autoritário do poder é a maneira mais rápida de se conseguir edificar uma sociedade liberal, após o que o caráter autoritário do Estado pode ser questionado e abolido”, contar-se-iam entre esses Francisco Campos, Azevedo Amaral e Oliveira Vianna, não fortuitamente artífices do Estado Novo e mantenedores (em parte) de uma herança que Guerreiro Ramos reivindicaria para si como sendo a corrente mais lúcida quanto ao entendimento da realidade brasileira. Entretanto, Guerreiro não a assumirá cabalmente: virá mais tarde (nos anos 1950) a alardear o nascimento do povo e tecer críticas ao elitismo das posições dessa corrente; insurgir-se-á contra esses antigos axiomas que persistiam em perpetuar – por meio dessas duas correntes principais do pensamento social brasileiro – suas

30

Um precursor desse tipo de análise é Oliveira Vianna (1930), ao opor o pensamento de Alberto Torres ao de Rui Barbosa.

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influências, a saber: que a modernização no Brasil só seria possível pelo alto e pela força, da lei ou do autoritarismo.

Naquela conjuntura dos anos 1940, todavia, a ambiência teórico-conceitual estava calcada nesse verdadeiro cabo-de-guerra entre as correntes referidas (mesmo alguns setores da intelectualidade de esquerda postavam-se entre os marcos da disputa), que se defrontavam, seja confundindo democracia com liberalismo, seja apelando ao Estado demiurgo. Em comum, apenas a crença no moderno, na necessidade de desenvolvimento do capitalismo como forma de superar a miséria nacional e toda sua pesada herança arcaica.

Nesses embates entre tradicionalismo e racionalização, burocracia e clientelismo, vicissitude e desventura, o caso do DASP reflete as contradições da sociedade brasileira em busca da modernização, seu ocaso ilustra e enriquece o histórico dos infortúnios nas tentativas de adequar certa realidade social aos imperativos da evolução do capitalismo.

É certo que a iniciativa de administração moderna desencadeada por meio do DASP não poderia fazer tábua rasa da realidade brasileira, o clientelismo arraigado na sociabilidade e na cultura política trazia elementos que desafiavam a impessoalidade e a generalidade burocrática que porventura quisesse se estabelecer; mais ainda, na prática, o que se observa é que – em última instância – a administração burocrática foi não só incapaz de resistir aos assédios privatistas: a própria organização administrativa e sua dinâmica enraizavam-se numa sociabilidade eivada de clientelismo – seja na sociedade civil, seja no Estado –

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engendrando a particular constituição que a administração e a burocracia tiveram no Brasil.31

Não se tratava, portanto, apenas do uso clientelístico das formas de gestão, nem simplesmente da instrumentalização política por parte do poder central num contexto ditatorial, mas de como a institucionalização do moderno se construiu num país no qual uma herança de privatismo, exclusão e autoritarismo assombra o domínio público.

Os desafios desse processo colocavam-se, também, para Guerreiro Ramos. Como entender – em que pesasse sua posição burocrático-estatal – que as formas do moderno aqui implantadas, ainda que prescritas para as devidas necessidades, não se coadunassem funcionalmente com a estrutura social? Que os mecanismos de transformação do país e os obstáculos preexistentes não se

eliminassem mutuamente, convivessem e até mesmo, por vezes,

inextricavelmente se confundissem num mesmo emaranhado de instituições e idéias, inclusive internamente ao próprio Estado (tido principal agente da transformação)?

Emergia aí, lentamente, para o autor os sentimentos de que não bastaria simplesmente que quiséssemos ser modernos e que as receitas do capitalismo central não nos fariam inelutavelmente modernos. Talvez nossa sina fosse a condenação – como havia vaticinado Euclides da Cunha (1982, p. 60) – a sermos originalmente (singularmente) modernos, ou não sê-lo.

Estimulado pelas questões candentes, Guerreiro Ramos exerceu modestamente (a partir de 1946) sua criação intelectual no DASP, em artigos na

31

Sobre a requisição e persistência de certa “cultura cívica” para o êxito modernizador, ver Putnam (1996).

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Revista do Serviço Público (ligada ao órgão), muitas vezes resenhando livros.

Apesar do formato restrito e dos estreitos limites para o raciocínio teórico, fez daquele espaço editorial um campo para aprendizado e exercício de reflexão sistemática.

Em “A divisão do trabalho social”, resenha crítica sobre o livro de E. Durkheim,32 lê-se um comentário respeitoso, atento à contribuição fundamental à sociologia e, sobretudo, às possibilidades do planejamento como forma de intervenção social, sobretudo na administração.33 Preocupado com a erosão da ordem social, alerta para a planificação – e o papel dos sociólogos – como forma de contenção dos desequilíbrios, controle social e conseqüente garantia de convivência social democrática, bem como para a importância da ilustração da elite, o esclarecimento dos dirigentes e a função de umaintelligentzia no Brasil.

Uma sociedade de que estão ausentes as forças de integração espontânea dos indivíduos e dos grupos, só poderá manter-se ou por métodos policiais ou por métodos administrativos compreensivos.

A preponderância de uns ou de outros dependerá da preparação sociológica dos grupos governantes.

Não estou certo de que o problema tecnológico do governo se resolveria mediante a fórmula, um tanto platônica, de por os sociólogos no lugar dos governantes, mas, com certeza, sua solução será tanto mais assegurada quanto maior for a capacidade dos dirigentes de assimilarem os conhecimentos recém-atingidos pelas ciências sociais.

Por este motivo, cresce de importância o papel dos órgãos de estado maior, naturalmente incumbidos de por ao alcance dos governantes os conhecimentos técnicos e científicos das ciências sociais, sem os quais a administração da sociedade será aleatória e torpe. (RAMOS, 1946b, p. 161-2).

A temática do planejamento – uma constante – também domina um artigo posterior (“Notas sobre a planificação social”),34 no qual ressalta a importância K. Mannheim e censura duramente O caminho da servidão, de

32

Publicada naRevista do Serviço Público, editada pelo DASP, em out./nov. 1946.

33

Ao ressaltar que a “obra foi uma das primeiras a propor uma visão unitária das transformações sociais”, já anuncia sua preferência pela visão sociológica totalizante, preferência essa que o levará (nos anos 1950) às polêmicas posições de crítica da sociologia praticada no Brasil (RAMOS, 1957b).

34

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Hayek; problematizando o tema, propõe um estudo mais acurado da planificação e prudentemente aponta que deva ser tomada como “[...] uma questão em debate, cuja solução ainda não está suficientemente amadurecida e, portanto, há de não condená-la ou aplaudi-la em bloco, pois a adesão a certo enunciado científico não pode ser fundada em tendências emocionais” (RAMOS, 1946c, p. 163). Adverte que, com a ascensão dos monopólios, a competição não mais regularia as relações sociais: “estamos vivendo já numa sociedade planificada [...] O que nos interessa é saber agora que espécie de planificação é necessário realizar, tendo-se em vista as necessidades da democracia”. Diante disso, os pontos de vista possíveis seriam “o capitalista, o fascista e o comunista”, e observa que os dois últimos “[...] estão ainda dentro do marco capitalista da história e pretendem apenas substituir os detentores do atual controle dos meios de produção por outros detentores, motivo porque não são propriamente revoluções, mas golpes de estado”. Observa ainda que “[...] tanto a planificação fascista como a comunista padecem de tendências de índole reacionária muito fortes, pois ambas pretendem impor uma unidade cultural à sociedade, sem compreender a estrutura fundamental da nossa época” (RAMOS, 1946c, p. 164).35 Define então – baseado em Mannheim – a planificação (democrática) como “[...] uma autoconsciência da sociedade atual ou, melhor, é a realização de sua essência. É menos um intento de reconstruí-la em

35

Saliente-se que por essa época Guerreiro Ramos ainda não havia feito uma ampla leitura de Marx, como ele próprio admitiu mais tarde – ver OLIVEIRA, L. (1995, p. 145). Conhecia certamente, mas talvez não muito mais que isso, a Contribuição à crítica da economia política, que leu na edição traduzida por Florestan Fernandes (Ed. Flama), ao qual tece elogiosos comentários pelo prefácio que o sociólogo paulista introduzira àquela obra (RAMOS, 1946a). Embora posteriormente tenha conhecido melhor (e até se aproximado deles) Marx e marxistas como Lukács, Rosa Luxemburg, Karl Korsh, Lucien Goldmann, etc., bem como visitado a China, Iugoslávia e a União Soviética a convite do Partido Comunista Brasileiro (PCB), manteve sempre razoável distância do comunismo. Antes de morrer chegou a definir o marxismo como “a maior desgraça na história do pensamento brasileiro” (OLIVEIRA, L., 1995, p. 168).

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bases favoráveis a este ou aquele grupo do que um intento de liberar as suas forças genuínas reprimidas.” (RAMOS, 1946c, p. 165).

Naquele momento, incorpora-se ao pensamento de Guerreiro Ramos um ponto de vista culturalista e a concepção de fases (faseológica),36 Mannheim tornava-se uma influência poderosa sobre o autor (como o será para toda sua geração); outrossim, a planificação (democrática) surge como uma alternativa ao fascismo, comunismo e neoliberalismo, e orientada para a interpretação da sociedade brasileira conforme suas particularidades, donde começa a aflorar a preocupação com a assimilação do conhecimento vindo ‘do exterior’. Seria assim necessário postular a questão da planificação e mudança social “de um modo não ideológico, isto é, em termos da estrutura fundamental de nossa época e não de arquétipos” (RAMOS, 1946c, p. 165).

É com Max Weber, entretanto, que se dá a maior empatia. Ao resenhar

Economia e sociedade, quando do lançamento da edição mexicana

(provavelmente o primeiro comentário sobre a obra no Brasil), afirma que “é a tentativa mais bem sucedida de estabelecimento de uma ciência sociológica da história, e, por isto mesmo, de uma sociologia efetiva, [...] é a partir de Max Weber que a sociologia se emancipa definitivamente do normativismo, liberta-se de certa tendência reformista que a impelia a invadir, não sem os clamores das vítimas, os feudos da moral, da religião, da profecia e da filosofia” (RAMOS, 1946a, p.129-30).37

36

O culturalismo presente tem forte influência de Mannheim e Alfred Weber, já o conceito de fases (ou concepção faseológica), segundo o qual a história das sociedades seria balizada por fases histórico-culturais relativamente progressivas, é creditado a Franz Carl Miller-Lyer (1857-1816) – autor deAs fases da cultura (1908), O sentido da vida e a ciência (1910) e A família (1912). Tal concepção também foi usada por alguns outros autores brasileiros, como Helio Jaguaribe.

37

“A sociologia de Max Weber”, artigo publicado na Revista do Serviço Público, em ago./set. 1946.

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Por meio de uma leitura perspicaz de Weber, Guerreiro Ramos desperta teoricamente para a teoria da organização, o estudo da burocracia e da administração, além de extrair dali subsídios metodológicos. Todavia, a prudência weberiana no trato da sociologia como forma de ação, contra o “normativismo”, parece não ter afetado o ímpeto do jovem Guerreiro, inebriado pelas possibilidades de intervenção social.38

Ele não se deixa levar por uma possível leitura antimarxista da obra, não intentando uma inversão do materialismo histórico, atenta sim para a amplitude e o não-determinismo metodológico da obra de Weber. A leitura é permeada por certa reverência que revela mais que uma admiração intelectual, Guerreiro Ramos identifica ali uma posição teórica que vinha ao encontro das suas concepções espiritualistas. Sua interpretação norteia-se – além do culturalismo – por certo existencialismo (refletido na leitura de Weber), que se sobrepõe à anterior proximidade do sociólogo brasileiro com o espiritualismo cristão da revista

L’Esprit e o neotomismo de Jacques Maritain.

Esta concepção [de Weber] de ciência é eminentemente anti-socrática. O conceito socrático de ciência supunha uma relação conatural entre o indivíduo e o universo. A ciência, segundo Sócrates, está infusa no homem e este a adquire desenvolvendo-a dentro de si como um embrião se desenvolve no seio materno. A concepção típico-ideal da ciência é o reverso do socratismo. O espírito humano e o mundo são inconversíveis. O homem está ilhado e nenhuma garantia possui de que a sua ciência seja uma expressão verdadeira do que o mundo é em si mesmo. Assim sendo, importa menos conhecer a forma ou substância do universo do que conhecer como podemos dominá-lo ou conjurar a sua irracionalidade. A concepção típico ideal da ciência exprime o desespero da consciência humana diante do fracasso da explicação religiosa ou mágica das forças do mundo histórico. Ela é representativa de uma época secularizada em que os padrões sagrados foram

38

É de M. Weber, segundo ele, a influência mais intensa que sofrera, porém, desde então até o final dos 1960, intensifica a construção de uma sociologia que prima pela intervenção – e conscientização – social. Em 1981, comentando sua proximidade com Weber e os anseios políticos desse (apesar da tentativa de separar ciência e ação política), sentenciou: “Weber era um isebiano, um ibespiano” (OLIVEIRA, L., 1995, p. 166), o que indica algo sobre a leitura que fazia da obra de Weber: se a ciência não seria subsídio imediato para a política, também não estariam radicalmente separadas.

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radicalmente minados pelo trabalho corrosivo da razão (RAMOS, 1946a, p. 132).

Inspirado por Weber, opõe o sagrado ao profano e o encantamento do mundo à razão, termos que embasarão – poucos anos depois – sua análise sobre a relação entre o tradicional e o moderno, objeto de sua tese sobre a organização racional do trabalho (RAMOS, 1950).

Apesar das lições de Durkheim, a influência de Mannheim e o encantamento com Weber, as preferências de Guerreiro Ramos não se refreavam; em outro artigo39 ele demonstra apreço pela pesquisa empírica, pela técnica dos

surveys e pela sociologia estadunidense, representada pela Escola de Chicago e

seu mais ilustre arauto no Brasil à época, Donald Pierson.

Um aspecto que tem sido negligenciado no Brasil, na formação dos especialistas nos vários ramos das ciências sociais, é o treinamento dos mesmos, no emprego dos métodos e no manejo das técnicas de pesquisa. A não ser a rara exceção da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, onde o Prof. Donald Pierson mantém um curso de pesquisa social, não sabemos nenhuma outra entidade universitária em que se considere a pesquisa social como uma disciplina autônoma.

Um dos maiores serviços prestados ao desenvolvimento dos estudos sociais, no Brasil, pelo Sr. Donald Pierson é, precisamente, o de ter difundido, entre nós, um sistema de referências para o estudo de pesquisa social. (RAMOS, 1947, p. 147).40

Ao optar por visões sociológicas totalizadoras, Guerreiro Ramos, conhecedor de um leque de referências teóricas sistematizantes, ressentia-se de um instrumental mais leve, de técnicas de pesquisa e questionários que o capacitassem a abordar mais diretamente dados quantitativos e situações

39

“A pesquisa e os ‘surveys’ sociais”, publicado na Revista do Serviço Público, em mar./abr. 1947.

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Donald Pierson, então professor da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, ofereceu um curso no Rio de Janeiro e Guerreiro Ramos – com sua curiosidade insaciável – tomou contato com a sociologia “norte-americana”. Ver OLIVEIRA, L. (1995, especialmente cap. 3: “Donald Pierson e a sociologia no Brasil”). Para um contato com a obra do autor, ver Pierson (1972). Quanto à Escola de Chicago e à ecologia humana, ver os volumes de divulgação organizados por Pierson (1948; 1970) e a síntese de Coulon (1995).

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empíricas que agora – por força de suas ocupações profissionais – 41se prestavam à sua análise, uma vez que só tinha como referência, nesse aspecto, os estudos e método monográficos de Le Play42 – provavelmente assimilados por meio da influência de Silvio Romero e Oliveira Vianna, admiradores do pensador francês, que pretenderam readequar tal método à realidade brasileira, numa chave culturalista (RODRÍGUEZ, 2006).

Nessas breves resenhas escritas por Guerreiro Ramos já aflora a preocupação, um tanto formalizadora e especulativa, com a utilização da sociologia como instrumento de intervenção social, sobretudo na gestão racional dos recursos e organização administrativo-estatal; o fundamento dessa ação é o planejamento (democrático), entendido então menos como operação direcionada a fins e mais como desobstrução de entraves, forma de dar livre curso às potencialidades, às forças latentes numa sociedade que se candidatava à modernização – tomada aí como processo relativamente orgânico.

A influência de Weber se faz sentir enormemente na tese que Guerreiro Ramos apresenta ao DASP (Uma introdução ao histórico da organização

racional do trabalho: ensaio de sociologia do conhecimento, 1949), na qual o

objetivo seria “[...] mostrar que a Organização Racional do Trabalho é

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O autor, devido seu envolvimento profissional no Departamento Nacional da Criança e no DASP, passava a ocupar-se de temas como a puericultura, pauperismo, saúde, medicina popular, mortalidade infantil, imigração, padrão de vida, etc. A versatilidade e a abrangência de conhecimentos de Guerreiro Ramos eram evidentes já nos cursos que ministrava nessa época: se na disciplina de Sociologia do Curso de Administração do DASP seu enfoque era eminentemente teórico-conceitual e clássico (RAMOS, 1948), na disciplina de Problemas Econômicos e Sociais do Brasil do Curso de Puericultura e Administração do Departamento Nacional da Criança, sua abordagem era comparativa e quantitativa (RAMOS, 1949).

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Fréderic Le Play (1806-1882), francês, autor de obras comoOs trabalhadores europeus (1855),

Reforma social na França (1864), Organização da família (1871), Organização do trabalho

(1872) eConstituição essencial da humanidade (1881), foi criador de um método monográfico por meio do qual sondava a vida social utilizando-se de dados quantitativos como, por exemplo, referentes ao orçamento familiar – tema do qual Guerreiro Ramos também se ocupou, aproveitando as formulações do autor.

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conseqüência de um longo processo de secularização, no transcurso do qual apareceu, tardiamente na civilização ocidental, uma atitude laica do espírito humano, em face da natureza e da sociedade” (RAMOS, 1950, p. 8-9); nesse texto, discorre sobre o conceito de trabalho na civilização ocidental, taylorismo, fordismo e o percurso da administração até a contemporânea sociologia do trabalho.43

O erudito trabalho de síntese (e ostentação) conclui que a organização racional do trabalho só se produz em sociedades nas quais predomina o espírito antitradicional e laico, não se desenvolvendo em outras nas quais o sagrado se sobrepõe ao racional e secular. Os EUA seriam o campo mais fértil para tal, já a América Latina, Ásia e Oceania muito menos, pois nessas a indústria seria algo incipiente e a maior parte de suas populações não teria ainda emergido das “culturas de folk”. Mannheim, Hans Freyer (quanto ao planejamento e à sociologia como intervenção social) e a Escola de Chicago (quanto aos estágios de evolução do tradicional ao moderno) – entre outros – estão presentes na análise como referências teóricas.

As considerações sobre o histórico da organização racional do trabalho convergem para o ponto crucial do trabalho: a análise da administração pública, mormente no Brasil. Segundo o autor, as circunstâncias de um gerenciamento racional dos negócios nessa esfera não seriam um assunto meramente técnico ou institucional, um simples modelo de gestão, e sim produto de um amadurecimento

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As referências aqui são os estudos weberianos sobre a burocracia, administração, patrimonialismo, o sagrado e o profano (presentes em Economia e sociedade) e o estudo (paradigmático) da ética como secularização – emA ética protestante e o espírito do capitalismo (WEBER, 1997, 1989, respect.).

Referências

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Deste modo, a pesquisa se propõe, de maneira geral a investigar a presença do autor Alberto Guerreiro Ramos nos cursos de graduação (bacharelado) do Campo

Dessa forma, ao lado das teses que nortearam o debate entre Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos figuram as interpretações daqueles processos e as formulações que sustentavam