3. O CONFLITO DE INTERPRETAÇÕES
3.3. A ESTÉTICA JAMESONIANA
3.3.3. ARTE E DESLOCAMENTO
A última dimensão da relação entre arte e práxis política na obra de Jameson que se quer avançar aqui é também indireta, relacionada aos efeitos da arte, mas com um pressuposto diferente: a de que o sujeito fruidor encontra-se “deslocado” na experiência estética, aberto à experienciar o novo, na tentativa de apreensão da obra de arte. Nessa dimensão, a arte modifica a consciência individual não pela imagem figurada da utopia, mas pelo puro choque causado pela forma artística. Há, nesses termos, um deslocamento ou estranhamento do sujeito, na tentativa de apreensão da obra, que é transformador por ser pré-condição do pensamento crítico e da aparição do negativo, da não-identidade. Em Marxismo e forma, essa
dimensão aparece principalmente no comentário de Jameson a Schiller , Adorno, Marcuse e 309
Brecht. Nas palavras do autor, no momento da experiência estética: a consciência prepara-se para uma mudança no mundo e, ao mesmo tempo, aprende
a fazer exigências ao mundo real que apressam essa mudança: pois a experiência do
imaginário oferece (de um modo imaginário) aquela satisfação total da personalidade e do Ser, à luz da qual o mundo real sai condenado, à luz da qual a
ideia utópica e o projeto revolucionário podem ser concebidos 310 A diferença entre a figuração utópica e o deslocamento é que, nesse último, tem-se
uma insatisfação com o presente per se, sem necessidade de um modelo. A liberdade na arte é
ainda o que suscita a comparação com a situação atual, mas ela não precisa estar figurada,
seja no passado, seja no futuro, pois aparece como: despertar da insatisfação no meio de tudo que existe - concordando, nisso, com a
origem do próprio negativo: nunca um estado que é desfrutado, ou uma estrutura
mental que é contemplada, mas uma impaciência ontológica na qual a situação
restritiva é pela primeira vez percebida no próprio momento em que é recusada. 311 O “negativo” pode ser percebido, por exemplo, na estética do surrealismo. A imagem
surrealista pretende “rachar a forma da mercadoria”, fazendo-a colidir, num abandono radical
do princípio de realidade, com uma liberação violenta da energia psíquica . O comentário de 312
Jameson ao modo expressivo do surrealismo é dos elemento principal para pensarmos a arte
como lugar da alteridade em sua teoria da obra de arte, como aparição do radicalmente outro,
transformadora da consciência através de um despertar: “um contato casual com um objeto exterior pode nos fazer “lembrar” de nós mesmos mais profundamente do que qualquer coisa
que ocorra na empobrecida vida de nossa vontade consciente” . Os objetos, no nível do313 inconsciente, irradiam como palavras do desejo, e o seu choque favorece a liberação da
energia psíquica. Se o desejo é a forma da liberdade, a prática surrealista promove a liberação
e a transformação, através do contato com este outro desvelado na experiência artística; e,
309 O retorno a Schiller se inicia com uma defesa da importância do componente lúdico da arte. O objeto do
impulso lúdico é a aparência [Schein], que possibilita uma certa reconciliação entre os outros dois impulsos: as
paixões e apetites materialistas de um lado e a atração pela razão de outro, “transformando-se em forma quando
procuramos a matéria, revelando-se matéria quando procuramos forma”. A neutralização mútua na arte dos dois
impulsos, matéria e forma, é a própria liberdade. Assim, a receptividade à arte, à beleza, é uma receptividade à
própria liberdade. O Schein artístico é uma figura da luta pela integração psíquica. Mas o romantismo de
Schiller, ao encontrar o modelo e a figura da utopia na Grécia antiga, assemelha-se mais à dimensão da última sessão.
310JAMESON, Fredric. Marxismo e forma. São Paulo: Hucitec, 1995, p. 75. 311 Ibidem, p. 71.
312 Ibidem, p. 80.
segundo Jameson, o radicalismo do surrealismo consiste justamente no despertar para o desejo e na liberação dele de sua singularidade e limitação, liberando, por conseguinte, a subjetividade. São sobretudo Brecht e Marcuse que compõem as fontes, na obra de Jameson, da exposição sobre o deslocamento na experiência estética, mais virulento que na última dimensão: ainda que tanto utopia quanto deslocamento tenham como fundo comum a negação do sempre-o-mesmo [das Immergleich], ela é mais forte na experiência do deslocamento.
Comentando Marcuse, Jameson ressalta a importância do diagnóstico da captura da subjetividade na sociedade de consumo e de controle total, na qual se perde a experiência da recusa por conta do controle, cada vez mais sofisticado, e da manipulação como mecanismo cotidiano - onde a “sublimação forçada” do desejo dá lugar a uma pseudo-liberalização, cuja contraparte são as formas de compensação oferecidas pelo sistema, empobrecedoras da experiência, conformando a “dessublimação repressiva”. A atenuação do conflito e a repressão velada fazem desaparecer o negativo e as possibilidades de revolta. Nessas circunstâncias, a fantasia - momento em que o princípio do prazer se mostra sem repressão - a que nega o real per se, é uma brecha no sistema total, abrindo a possibilidade de recusa simbólico de tudo o que a sociedade tem a oferecer. Assim, a arte, ao esboçar uma nova sensibilidade possível que mobilize a pulsão artística e a fantasia, pode dar o primeiro passo na criação de um novo modo de vida, isto é, pode realizar concretamente o impulso utópico . 314
Um índice do apreço de Jameson pelo deslocamento, em contraposição à análise do discurso em O inconsciente político, está em seu comentário ao debate entre Lukács em Brecht, no já citado Reflexões para concluir. É notável sua preferência pelas considerações de Brecht sobre o estranhamento [ Verfremdung] e o lúdico na arte, ainda que Jameson não descarte o momento crítico-cognitivo de Lukács, que, como dissemos, parece ser a tônica de O inconsciente político. No entanto, o autor mostra, nesse texto, seu apreço pela desfamiliarização, como forma de despertar da dormência perceptiva. Também, em sua visão, a chave para a resolução da antinomia “arte didática versus arte do deleite” encontra-se na própria forma artística, que transforma os sujeitos por meio deste despertar.
É bem verdade que a experiência do negativo e da alteridade integra o utópico no comentário de Jameson: parece-nos que o autor reúne tanto a figuração do mundo reconciliado quanto a liberdade da fantasia sob a utopia. Mas o distintivo do deslocamento é aquela ausência da figura da esperança, contrastando, assim com a leitura de Jameson da obra
de Bloch, por exemplo. Parece existir aqui uma outra dimensão, na qual o radicalmente outro da arte já é a própria negação, que faz possível o desvelar da sociedade repressiva sem passar pela figuração de um mundo reconciliado. Assim, impulso artístico e a experiência da arte já são negação do princípio de realidade e, portanto, potencialmente transformadores.
As três dimensões da experiência estéticas (crítico-cognitiva, utopia e deslocamento) apresentadas a propósito do arco teórico que é objeto desse trabalho são chaves de leitura para a teoria do autor, importantes sobretudo para nossa abordagem dessa década de produção do auto, que é a do seu projeto de síntese da tradição do marxismo ocidental. Se o Inconsciente político foi considerado “anti-estético” , podemos dizer que há ali de forma mais315
pronunciada a dimensão crítico-cognitiva que apontamos, ainda que ao final a utopia ganhe importância. Se apesar da “hermenêutica do desejo” de Marxismo e forma, a ideologia tem um papel mais premente em O inconsciente Político, podemos, ao menos por hora, sugerir que o tom desse último livro surge do diagnóstico da necessidade cada vez maior de atenção ao ideológico na arte, após o exame da utopia no primeiro livro. A necessidade da vigilância constante é um argumento esboçado já em Reflexões para concluir, quando Jameson constata que até mesmo o modernismo e as vanguardas contra-hegemônicas podem ser esvaziadas de seu conteúdo radical e integradas à indústria.
Num balanço, se considerarmos Marxismo e forma e O inconsciente político como obras de um mesmo “arco teórico”, “rumo à crítica total”, o tema da transformação da consciência subjetiva tem enfoques diferentes sobre o mesmo objeto, mas que para o autor se revelam como um só: o primeiro mais dedicado à figura da utopia, o segundo à ideologia. Tendo em vista o projeto de síntese do marxismo ocidental e de contraposição ao pós-estruturalismo, a hermenêutica de Jameson não se ausenta do que há de transformador na experiência estética subjetiva. Se tomamos esse período de sua produção em conjunto, é possível, ao mesmo tempo, escusar um certo formalismo de O inconsciente político e compreender o lugar da ideologia nesse projeto, herdeiro da “crítica das superestruturas” do marxismo ocidental. De todo modo, a obra de arte é um objeto tensionado e contraditório nesse arco teóricojamesoniano, em especial por conta da tentativa de síntese da tradição e das diversas dimensões da relação entre arte e práxis, que acompanhamos parcialmente neste capítulo.