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Nossa proposta de leitura do arco teórico ​Marxismo e forma - ​Inconsciente político está pautada pela ideia de que Fredric Jameson é um herdeiro desta tradição. Isso significa que a leitura de sua teoria e de sua estratégia geral de ‘fazer frente ao avanço do pós-estruturalismo’140 deve levar em conta as inovações temáticas e metodológicas do ‘programa de pesquisa’ do marxismo ocidental. Como tentamos apresentar, a construção desta

139​Ibidem​,​ p.​ 369.

140DURÃO, Fábio Akcelrud.​Uma leitura da dialética e a dialética do texto​: duas posições no debate da teoria literária contemporânea. 1997. 152 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária). Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1997, p. 47.

corrente marxista nasce como reação ao discurso da II Internacional - no que pese a revisão do papel da subjetividade, da causalidade e da determinação na teoria marxista - ao mesmo tempo que propõe perspectivas novas - como é o caso do conceito de totalidade e da atenção dada ao fenômeno estético.

No próximo capítulo, abordaremos a teoria propriamente dita de Jameson nas questões de estética e filosofia da arte, que são interpretadas em ​Marxismo e forma​, com uma parte também sintética e propositiva ao final do livro. Já o ​Inconsciente político nos parece uma tentativa de construção de um esquema interpretativo do tipo ‘síntese’ da tradição. Por estes motivos acreditamos que vários dos problemas-chave da obra devem ser lidos a partir dos debates do marxismo ocidental e do seu desenvolvimento interno.

Primeiramente, Jameson é um leitor desses autores, apesar de escrever suas obras já após o declínio da produção intelectual ou arrefecimento do debate; o maior interlocutor e figura pública desta época é Althusser. Muito pelo nosso recorte, acabamos por não tratar do contexto mais específico de Jameson, que é a crítica literária norte-americana. Apesar disso, vale marcar o estado da academia norte-americana, marcada por uma tradição filosófica empirista, pragmática e logicista, e da presença já no campo da crítica literária do ​New Criticism​, com sua recusa do holismo metodológico . Mesmo antes do ‘avanço’ do141

pós-estruturalismo e da disseminação da ideia de Teoria , os debates acalorados sobre a 142 interpretação de obras literárias nos Estados Unidos giravam em torno de um retorno à obra, de ​close reading​, que de certa forma retirava a história do texto.

Alheio à ‘filosofia continental’ e mais ainda em relação ao marxismo, o ambiente acadêmico norte-americano oferecia já muita resistência ao holismo de tipo marxista. Então, além de tratar dos problemas da própria tradição e de discutir a ideia de subjetividade, causalidade e determinação, Jameson precisa ingressar neste debate com o vocabulário norte-americano. Os traços característicos da tradição - para Perry Anderson um flerte com a cultura burguesa, para Martin Jay uma tentativa de ampliar o horizonte da perspectiva marxista - não tem o mesmo fundamento na teoria de Fredric Jameson, porque não são os

141Ver COMPAGNON, Antoine. ​O demônio da teoria​: literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão, Consuelo Fontes Santiago. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

142Ver EAGLETON, Terry. After theory​. Nova Iorque: Basic Books, 2004; ​DURÃO, Fábio Akcelrud..Breves observações sobre a teoria, suas contradições e o Brasil. ​Revista de Letras​, p. 81-95, 2004.

mesmos interlocutores. Existe sim o diálogo com sistemas diferentes, mas o ecletismo de Jameson se radicaliza dado o seu público e sua posição ​política​ no debate . 143

Além desse contexto formativo, do que podemos chamar de tradição norte-americana de Teoria, existe também o movimento teórico da década de 1960, de crescimento do neokantismo nas ciências sociais e de uma decadência da hegemonia do paradigma ‘holístico’ mesmo na filosofia continental. Então são estes três flancos da teoria de Jameson: tradição do marxismo ocidental, intelectualidade estadunidense e crítica da razão do pós-estruturalismo. Os Estados Unidos apresentaram um terreno fértil para o pós-estruturalismo justamente pela sua tradição pragmática e de individualismo metodológico, daí a necessidade de um texto de apresentação crítica do marxismo como foi ​Marxismo e forma​; sem essas considerações é difícil perceber o movimento teórico de Jameson.

A tarefa proposta pelo autor, de sustentação da tese de que o marxismo é a ‘filosofia insuperável de nosso tempo’, não pode ficar alheia ao desenvolvimento histórico-filosófico do século XX. O caso do pós-estruturalismo - que será mais abordado em nosso terceiro capítulo - representa uma forte crítica externa ao marxismo, manifesta no descrédito das metanarrativas e nas acusações de reducionismo, falta de rigor do materialismo, realismo ingênuo pré-crítico e fechamento do discurso. Isso num contexto de crítica da razão e revisão da filosofia, expressa na ‘viragem linguístico-pragmática’.

Endogenamente, o marxismo ocidental também tenta resolver estas questões, se contrapondo à teorização da II Internacional e ao “marxismo vulgar” e sociologista de sua época, importante sobretudo na teoria literária . O terreno de discussão é fértil para Jameson, 144 dada a importância da epistemologia, da metodologia e da estética como temas centrais da tradição. Mas pesa também no tipo ​específico de resposta do autor o fortalecimento do discurso crítico ao holismo das décadas de 1960 e 1970.

O ‘marxismo ocidental’ de Jameson tem essa peculiaridade. Se o ‘ecletismo’ já era uma marca da tradição , ele é radicalizado na obra do crítico norte-americano. Jameson145 mobiliza para a sua teoria tanto o formalismo russo, quanto a psicanálise, o estruturalismo e o pós-estruturalismo. Sua ideia é a da necessidade de uma crítica imanente a essas teorias, junto

143SIMON, Iumna e XAVIER, Ismail. “O apóstolo da dialética”. In: JAMESON, Fredric. ​Marxismo e forma​. São Paulo: Hucitec, 1985, p. vii.

144 WILLIAMS, ​op. cit​.

da construção de um sistema interpretativo que seja como que a ​Aufhebung destas tantas outras visões sobre o mundo e a arte.

Partindo da teoria literária e das discussões estéticas e epistemológicas do marxismo ocidental, Jameson tenta fazer uma reconciliação tal qual a proposta por Ricoeur em ​O conflito de interpretações​: algo como a formulação de uma “teoria do signo e da significação”, com “uma noção de significação muito mais complexa do que a dos signos ditos unívocos” , afim de reconhecer os méritos e o enriquecimento da interpretação146 proporcionado por outros ‘códigos interpretativos’.

A aposta de Jameson é que o marxismo consegue não só acomodar, mas realizar uma verdadeira síntese das teorias rivais devido ao seu holismo. É uma reversão da acusação da própria crítica: em vez de reducionismo, a perspectiva da totalidade do marxismo permite o alargamento dos horizontes e a compreensão ampla a partir de várias esferas da vida. É assim que Jameson defende a superioridade de uma hermenêutica marxista, que parece em seus textos transcender inclusive os limites da teoria literária. O arsenal mobilizado por Jameson na construção de uma hermenêutica marxista se constrói com uma defesa do ‘realismo’ marxista, do materialismo, a partir da crítica imanente, que serve de árbitro para o conflito das interpretações.

Mas o verdadeiro, ‘regra’ que serve à arbitragem deste conflito, é o marxismo ocidental, que pelo seu ‘ecletismo’ já mostra a possibilidade do diálogo entre os escritos marxianos e outras contribuições filosóficas, sem prejuízo do trabalho de Marx. Nos parece uma aposta naquela ideia do autor, de que o que fundamenta a consciência é o ser social. A perspectiva mais completa possível para se pensar o fenômeno cultural, político e econômico é aquela assentada nas relações humanas em sociedade. Algo tão amplo deve abarcar tanto a sociologia, quanto a história, a economia política, a psicanálise e as diversas ‘filosofias’ do século XX. Esta parece ser a aposta sobre o ser social da obra de Jameson, que acompanhamos de forma mais detida no próximo capítulo.