• Nenhum resultado encontrado

1.2 O ABSURDO EM “O MITO DE SÍSIFO”

1.2.4 Romance e Absurdo

1.2.4.1 Arte e razão a partir do absurdo em Camus

Camus, em certo sentido, é tanto artista quanto filósofo. “Compreender” e “amar” são esforços comuns e concomitantes em seu pensamento. Interpenetram-se e se confundem (CAMUS, 2008, p. 112). A oposição entre arte e filosofia, segundo sua perspectiva, é arbitrária e repousa equivocadamente sobre a falsa pretensão de independência do artista em relação a sua obra e ainda da dissolução do filósofo em seu sistema. Mesmo que se possa falar em modos particulares da filosofia e da arte, o que persiste, sobretudo, em ambas as criações,

segundo Camus, é o comprometimento do criador com sua produção, que em relação a esta se transforma. A angústia criativa utiliza-se, assim, tanto da lucidez quanto da afetividade no fazer camusiano.

Como dito, no princípio do pensar, para Camus, está o anseio humano em criar e delimitar mundos. Este impulso, por sua vez, é propriamente conseqüência direta da contradição e do desacordo humano em relação à sua experiência. A motivação maior do pensar diz respeito diretamente, assim, à insatisfação humana diante da não-razoabilidade do mundo, seus paradoxos e sua contradição. Em suma, o desejo por unidade e clareza é o desejo por compreensão. Justamente neste sentido aproximam-se romancistas e filósofos, de acordo com Camus. Destarte, para Camus, as grandes produções romanescas não apenas “contam histórias”, mas “criam universos”. Balzac, Sade, Melville, Stendhal, Dostoievski, Proust, Malraux e Kafka convergem-se em romancistas-filósofos. O que torna suas criações possíveis é a inserção do pensamento em sua forma mais lúcida como inteligência ordenadora e ao mesmo tempo limitada (CAMUS, 2008, p. 113).

A inteligência apresenta no romance um caráter inerentemente limitado porque, segundo Camus, na arte triunfa o carnal. “A obra de arte nasce da renúncia da inteligência em raciocinar o concreto” (CAMUS, 2008, p.113). Ao mesmo tempo em que o pensamento lúcido situa-se na origem da arte ele mesmo se nega. Trata-se de uma filosofia não manifesta, convencida, por sua vez, da mensagem instrutiva da aparência sensível. É a opção pelas imagens em detrimento dos raciocínios. Ao mesmo tempo que expressa o drama reconhecido pela consciência, a obra de arte só o demonstra indiretamente.

Tanto a filosofia quanto a arte são fenômenos do absurdo para Camus. Não são refúgios e nem soluções ao absurdo da existência, mas conseqüências imediatas do divórcio entre anseio e existência na experiência humana. Dá-se assim uma “repetição monótona e apaixonada” do drama já presenciado no mundo: “o corpo, imagem inesgotável no frontão dos templos, as formas ou as cores, o número ou desespero” (CAMUS, 2008, p. 111). Destarte, Camus adverte que o absurdo repercute em todo pensamento e criação humana consciente. No universo absurdo a criação conserva a consciência e a divulga ao fixar as suas (des)a-venturas.

Na relação entre filosofia e arte, a obra de arte torna-se de má qualidade quando intenta ser explicativa. Ao contrário, a boa arte para Camus está sempre na medida da experiência humana, é mais testemunho do que cosmovisão. Limita-se a ilustrar experiências sedimentadas na existência humana, sem “sobrecarga e pretensão de eternidade”.

Essencialmente, para Camus, a boa obra de arte é aquela que “diz menos” (CAMUS, 2008, p. 113).

De outro modo, a recusa de Camus diante dos sistemas totalitários do pensamento, suas dogmáticas e pretensões de exaustividade, é tamanha a ponto de revelar-se em sua preocupação com a produção romanesca. Em distinção às artes “da forma” e “da cor”, onde indubitavelmente prevalece absoluta a descrição, Camus observa no romance a tentação contínua pelo “explicar”. Repousa no romance a maior intelectualização da arte; uma necessidade de lógica, raciocínios, intuição e postulados. O próprio romance tem suas exigências de clareza e unidade sendo reflexo direto da motivação que repousa no próprio ato do pensar. “Os jogos romanescos do corpo e das paixões” (CAMUS, 2008, p. 115) seguem, em certo sentido, as exigências de uma dada visão do mundo. É, de fato, neste campo comum às motivações do próprio pensamento, que Camus situa o perigo inerente à criação romanesca. Trata-se, com efeito, do intento de explicação, de tese, que em si busca estabelecer unificação e conforto, em suma: compreensão.

O “romance de tese” não interessa a Camus. Trata-se este de uma defesa, de um intento que busca provar determinada verdade pretensiosamente possuída. Esta criação realiza, propriamente, o mesmo erro que acomete o pensamento totalizador e dogmático. Em suma, carrega em si a pretensão de instruir segundo cenários estabelecidos a partir de incertezas. O romance verdadeiro em Camus, ao contrário, deriva-se da própria experiência do absurdo em seu criador. É em si reflexo de uma existência lúcida onde o pensamento, refletindo sobre si mesmo, compreende seu limite, transitoriedade e rebeldia. Não tendo a pretensão de resolver o absurdo, sobre o qual se debate o ser humano em sua existência, o romance absurdo limita-se em representá-lo. Em sua essência, o bom romance é para Camus verdadeiramente um sinal do próprio absurdo. Trata-se, propriamente, do reflexo da debilidade que repercute o pensamento humano. O artista absurdo revela, na sucessão de obras ressonantes, sua própria condição, que ecoa e se repete na obra do criador. A criação absurda é a própria extensão de uma vida absurda, exígua e revoltada. O grande artista, para Camus, é antes de tudo um grande “ser vivo”. (CAMUS, 2008, p. 113, 114)

Deste modo, no contraponto à “compreensão”, Camus situa o valor da arte, sobretudo, na “expressão”: “A expressão começa onde o pensamento acaba. Os adolescentes de olhos vazios que povoam templos e museus puseram sua filosofia em gestos. Para um homem absurdo, ela ensina mais que todas as bibliotecas”, sentencia (CAMUS, 2008, p. 114). Na “expressão” Camus verifica propriamente um exercício de desapego e de paixão. Transfigura-

se aí a tensão oriunda do anseio insatisfeito por clareza e racionalidade, ao mesmo tempo em que a gratuidade de uma obra sem pretensões. O desapego e a gratuidade se configura, de fato, a partir da perspectiva do absurdo, ou seja, do sem-sentido. Entretanto, se o criador encontra em sua obra um sentido, então se desfaz o absurdo e a gratuidade. De sua obra não mais pode se distanciar. Perde-se o desapego e a revolta quando reina a pretensão de compreender e explicar. A exigência de Camus feita à arte identifica-se com a própria exigência deste feita ao pensamento: quando o romance pretende “concluir”, e não ser apenas um esforço estéril, deixa de ser absurdo e realiza-se como ilusão.