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O absurdo em Kafka: “O Processo” e “A Metamorfose”

1.2 O ABSURDO EM “O MITO DE SÍSIFO”

1.2.4 Romance e Absurdo

1.2.4.3 O absurdo em Kafka: “O Processo” e “A Metamorfose”

Contradição semelhante Camus encontra também na obra de Franz Kafka. Ainda que reconheça a integralidade do caráter absurdo em “O Processo”, Camus salienta, entretanto, o triunfo da esperança em outras obras de Kafka. Para nosso intuito aqui, entretanto, nos detivemo-nos unicamente às duas obras kafkanianas consideradas por Albert Camus como expressões integrais de uma arte absurda: “O Processo” e “A Metamorfose”.

Sobretudo, em “O Castelo” observa-se o caráter distinto e a intenção de continuidade em relação ao drama de Joseph K., personagem central de “O Processo”. Se “O Processo” se adéqua perfeitamente ao que se espera de um romance absurdo - ausência de respostas, desespero, revolta, lucidez mesclando-se a indiferença e mutismo – “O Castelo” constitui-se propriamente na tentativa de evasão do drama absurdo. Enquanto “O Processo” limita-se a expor o problema, suscitando as fragilidades da razão e do sentido, “O Castelo” constitui-se, para Camus, justamente na tentativa de solução. Enquanto um diagnostica, outro pretende curar. Um limita-se a descrever, o outro pretende explicar. Neste sentido, para Camus, tais obras não andam na mesma direção, embora, uma possa ser entendida como pretensa continuação da outra, uma espécie de um todo compreendido em “introdução” e “conclusão”.

Certamente “O Processo” é uma afirmação contundente do absurdo da condição humana. Paradoxalmente, o efeito atônito da obra dar-se na aparente naturalidade com que é encarada a saga existencial de Joseph K. De fato, os acontecimentos que sucedem a Joseph K. não são naturais em si; o trágico na narrativa, porém, suscita-se na ignorância desinteressada de Joseph perante um acusação que lhe ameaça a vida: Joseph K. sabe-se acusado, mas não tem conhecimento do conteúdo desta acusação; quer defender-se, mas quanto ao caráter desta motivação é indiferente. Na contraposição entre a gravidade da acusação e a alienação do personagem revela-se o trágico.

O alheamento de Joseph K. perante o perigo iminente da morte deixa entrever a nulidade do amor, dos fatos, e da manutenção da vida, ao mesmo tempo, que a loucura e o absurdo de sua rotina existencial, ininterrupta e despreocupada. Joseph sem dar-se conta do que realmente está em questão dá prosseguimento a uma vida aparentemente normal. O desespero que se espera de sua condenação e a ameaça iminente à sua vida é minado por sua descrença e alienação. Joseph chega a duvidar de sua sentença, de fato, apenas supõe sua condenação. Por fim, sua alienação encerra-se com a mesma terrível e trágica naturalidade de então: cortês e indiferente, a morte lhe encerra a torpe rotina. “Como um cachorro” Joseph K. conhece o fim de sua existência. (CAMUS, 2008, p.146)

O relato letárgico em “O Processo”, caracterizado pela indiferença e alienação de Joseph K. diante de eventos de tamanha gravidade, estabelece um paradoxo singular e ao mesmo tempo evidente em Kafka: “Quanto mais forem as aventuras do personagem, mais perceptível será a naturalidade do relato: ela é proporcional à distância que se pode sentir entre a estranheza da vida de um homem e a simplicidade com que esse homem a aceita.” (CAMUS, 2008, p. 146). De fato, este artifício em Kafka é que expõe tenazmente o absurdo da existência e a incoerência e insanidade da esquiva figurada na atitude de Joseph K. – representante aqui de todo ser humano ancorado na insana esperança.

Percebem-se assim nitidamente os elementos do problema expostos em “O Processo”. Trata-se, sem dúvida, da própria imagem da condição humana. “O Processo” é o reflexo da própria condição existencial pressentida por Kafka; a transposição, em imagens, de seu drama pessoal. O ser humano em geral e o próprio criador é que se adéqua à condição de condenado. Por mais que se possa esperar, a mensagem em “O Processo” demonstra a inevitabilidade da morte e a ausência de “surpresas” que se espera ao final. Joseph K., o reflexo do drama existencial e da própria condição humana, “sem alardes e com uma certa nostalgia e rendição” (CAMUS, 2008, p.146), relaciona o seu fim indistintamente à morte de um cão: cessam-se as narrativas de sentido, os subterfúgios, reconhece-se friamente a falta de sentido, a incoerência e a nulidade das ilusões.

Nunca se assombrará o suficiente dessa falta de assombro. Em tais contradições é que se reconhecem os primeiros sinais da obra absurda. O espírito projeta no concreto sua tragédia espiritual. E só pode fazêlo por meio de uma paradoxo perpétuo que dá às cores o poder de expressar o vazio e aos gestos cotidianos a força de traduzir as ambições eternas. (CAMUS, 2008, p. 147)

Para Camus, Kafka é o criador de uma literatura imersa em meio aos símbolos. Dado este caráter simbólico, pode-se reconhecer em sua obra a relação entre dois mundos distintos: o cotidiano e a transcendência deste na alma humana. Reflete-se assim em sua produção o divórcio que separa a grandeza da alma, em seus anseios mais profundos, e a precariedade e os limites do corpo: “O absurdo é que a alma desse corpo o ultrapasse tão desmedidamente”, afirma Camus em relação ao que compreende da expressão kafkaniana (2008, p.148).

Ecoam na obra de Kafka os “problemas da rua” (CAMUS, 2008, p.148), ou seja, os dilemas humanos imersos em meio ao cotidiano. A partir da condição humana, vislumbra-se o interesse de Kafka em fazer transparecer “uma implacável grandeza” ao mesmo tempo que “uma absurdidade fundamental” (CAMUS, 2008, p.148). Na representação deste absurdo, toma forma um “jogo de contrastes paralelos” na criação de kafkaniana. Sendo o símbolo um canal de relação entre dois planos distintos, o léxico de correspondência entre estes dá-se de forma genérica e não precisa. É preciso evocar o que se pressente nos contrastes, ambigüidades e vacilações perpétuas entre o natural e o extraordinário, o indivíduo e o universal, o trágico e o cotidiano, o absurdo e o lógico. Para Camus, situa-se aí o segredo de sua obra ao mesmo tempo que sua ressonância e significação. “São paradoxos que é preciso enumerar, contradições que é preciso reforçar para compreender a obra absurda.” (CAMUS, 2008, p. 147).

Em “A Metamorfose” observa-se esta relação e contraste ao notar-se que esta trata de uma “iconografia de uma ética da lucidez”, ao mesmo tempo, que do próprio horror humano ante os animais que habitam em si e que facilmente podem vir à tona. Destarte, “A Metamorfose”, num artifício similar a “O Processo”, projeta o absurdo e o trágico na cumplicidade entre o lógico e o cotidiano. De fato, Kafka, paradoxalmente, expressa a tragédia no cotidiano e o absurdo no lógico. Assim, Samsa é um caixeiro-viajante que ao ver- se se transformando em um inseto inquieta-se unicamente com o possível aborrecimento de seu chefe ante sua ausência. Frente à inusitada aventura do caixeiro-viajante nota-se apenas “um leve aborrecimento”, insensato e incoerente aos olhos do leitor. Camus reconhece neste artifício o matiz de toda a arte kafkaniana: “Quando Kaflka quer expressar o absurdo, lança mão da coerência.” (CAMUS, 2008, p. 150)

É conhecida a história do louco que estava pescando numa banheira; um médico que tinha suas idéias sobre os tratamentos psiquiátricos lhe perguntou “se estavam mordendo” e obteve uma resposta rigorosa: “Claro que não, imbecil, isso é uma banheira.” Esta história é do gênero barroco. Mas nela se percebe de maneira sensível como o efeito absurdo está ligado a um excesso de lógica. O mundo de Kafka é na

verdade um universo indizível onde o homem se dá o luxo torturante de pescar numa banheira, mesmo sabendo que dali não sairá nada. (CAMUS, 2008, p. 150)

Em seu princípio, a obra de Franz Kafka é então para Camus uma obra absurda. O problema do absurdo, de fato, encontra representação na criação kafkaniana. Em relação a “O Processo”, Camus é enfático: “nada falta”, “a carne triunfa”, “o sucesso é total” (CAMUS, 2008, p.150).