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ARTE E RELAÇÕES ARTISTA-PÚBLICO NA SOCIEDADE CAPITALISTA

2 RELAÇÕES ARTE-ARTISTA-PÚBLICO NA SOCIEDADE CAPITALISTA

2.2 ARTE E RELAÇÕES ARTISTA-PÚBLICO NA SOCIEDADE CAPITALISTA

Para que se compreenda a forma que as relações entre arte e público foram assumindo no capitalismo, é importante que se aponte, se bem que brevemente, como eram e se foram transformando essas relações nas sociedades que antecederam a sociedade burguesa.

Historicamente, as relações entre o artista plástico e o público foram se diferenciando, desde as civilizações antigas, segundo a função predominante que a arte exerceu em cada uma delas. Associada à magia, à religião ou à política, a arte coexistiu com o poder, temporal ou transcendente, e esteve de alguma forma a ele vinculada.

BRAVERMAN, 1981, p. 121).

Conforme ARGULLOL (1996, p. 81-88), entre os povos primitivos a arte expressou-se na forma de práticas mágico-rituais e sua função esteve perfeitamente integrada à vida desses povos, não fazendo sentido falar de arte como um pólo contraposto ao público.

Já nas civilizações antigas as características da arte foram se tornando diferenciadas: no Egito, existiam os artesãos populares e os artesãos da corte. Estes últimos eram pintores, escultores e arquitetos que trabalhavam exclusivamente para o faraó, os sacerdotes e os grandes proprietários de terra, um público restrito e poderoso. No ambiente da polis grega, apesar das artes ditas ‘manuais’ não gozarem do mesmo prestígio que a poesia, o teatro e a música, o espírito cívico não via com bons olhos o auto-engrandecimento, daí resultando que os objetos de arte não eram cobiçados para posse pessoal: as obras de Fídias, por exemplo, visavam honrar os deuses, bem como embelezar a polis e evidenciar o poder da cidade. Já na Roma imperial, a posse de obras de arte, espólio das guerras de conquista, tornou-se comum, na forma de coleção, entre as famílias da camada dos nobres. Há boa possibilidade de que, na Roma desse período, pela vez primeira se tenha estabelecido uma relação artista/obra de arte/público, que ressurgiria no período medieval tardio e que se estende até a contemporaneidade, marcada pela produção de obras sob encomenda de cliente particular.

No transcorrer da Idade Média, as relações artista/público se pautaram pelos índices de riqueza e poder: no Império de Bizâncio, os mosaicos, os mármores, a pintura e a escultura serviam tanto para o engrandecimento da fé quanto para ornamentar o palácio real e as mansões dos cortesãos e comerciantes ricos. Também aí a ourivesaria desenvolveu um forte comércio de arte, inclusive com as cortes européias. Sob o domínio da Igreja, na Alta Idade Média a pouca produção ficou confinada às oficinas de arte decorativa nos mosteiros, para, no movimento de renovação cultural denominado Renascimento carolíngio, ganhar novamente os cortesãos como principal público.

Entretanto, é na Baixa Idade Média que se dá um grande desenvolvimento das artes como resultado da secularização da cultura, do florescimento das universidades junto às catedrais, do desenvolvimento do grande comércio e do início da formação da classe burguesa, a qual começa a ocupar a posição de consumidora de arte - se bem que ainda em pequena escala -, pois as grandes encomendas continuam sendo feitas pela Igreja e pelo poder político.

Durante os séculos XIII e XIV, outro importante fator de incremento às artes foi a emancipação das cidades do norte da Itália enriquecidas pelo desenvolvimento mercantil, que se constituíram em repúblicas livres em relação ao sistema feudal: Florença, Veneza, Pisa, Siena, Gênova e Milão. A primeira delas se converterá, no século XV, no centro do movimento do Renascimento. Em Florença, onde o termo ‘artista’ já era utilizado, o acúmulo de grande riqueza por famílias das camadas da burguesia mercantil e financeira propicia o desenvolvimento do interesse em formar grandes coleções particulares de arte, bem como de financiar a arte, restaurando o mecenato.

Para CANCLINI (1984, p. 97-99), o período do Renascimento, a expansão do grande comércio para além-mar e a fundação das colônias, ao mesmo tempo que caracterizou o início da acumulação do capital, ensejou a apropriação colonialista de objetos desconhecidos para a cultura européia e gerou um acúmulo desses objetos nas metrópoles2. Esse fato, associado à grande riqueza resultante do desenvolvimento mercantil, propiciou a criação de um mercado para eles. Paralelamente, surge a necessidade de se estabelecerem espaços apropriados para guardá-los, expô-los ou vendê-los: os museus e as galerias que, a par das grandes coleções particulares formadas em cidades como Florença e Veneza, demarcaram para a

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Esses objetos, quando retirados do ambiente de origem, perdem sua função, seu ‘valor de uso’, próprio da cultura da qual são originários. Caracterizados como simples

obra de arte um território próprio, distinto e distanciado do público em geral.

No entender HAUSER (1995, p. 320-322), a despeito do florescimento cultural e artístico, o Renascimento não garantiu uma ampliação do público para além das camadas aristocrática e burguesa: “as massas populares sequer tomavam conhecimento da existência de tais obras.” A Renascença se configurou como um movimento restrito “a uma elite intelectual e latinizada” que “consistia principalmente naquelas classes da sociedade que estavam associadas ao movimento humanista e neoplatônico” para as quais as obras de arte importantes eram destinadas. Começa, então, a se formar, entre os humanistas, um público de ‘iniciados’, diferenciado da massa, constituído por um número restrito de pessoas vinculadas de modo direto (ou indireto) à produção e ao consumo (aqui, no sentido de aquisição mais do que no de apreciação) de arte, e uma pequena parcela da população que apresenta um interesse especificamente estético pela obra de arte. Por não pertencer ao círculo dos ‘iniciados’3, nem dos abonados compradores, o grande público se vê cada vez mais alijado dos espaços destinados à arte.

A cisão entre arte e público teve aí seu princípio, conforme interpretação de HAUSER (1995, p. 320-321): “Foi essa a origem do abismo intransponível entre uma minoria educada e uma maioria carente de educação, abismo que atingia agora proporções nunca vistas e iria ser um fator decisivo em todo o futuro desenvolvimento da arte”. Ao contrário dos núcleos culturais da Idade Média, em que, afora por pequenos grupos fortuitos, nunca houve a intenção “de criar

‘mercadorias’, objetos de diferentes culturas têm mascarado o seu sentido de origem e passam a ser um mero ‘valor de troca’, uma mercadoria sujeita às ‘leis de mercado’.

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Simultaneamente, as questões teóricas da arte se tornam complexas e passam a exigir um preparo intelectual mais apurado para a sua compreensão, o que contribuirá sobremaneira para o distanciamento do grande público. Este estudo, pelas limitações impostas, não se detém nas questões específicas da arte, nem aquelas vinculadas à problemática da educação em geral e da educação artística em particular como determinantes na relação arte- público. No entanto, reconhecida a importância de tais determinações, sugere-se a elaboração de pesquisas que as contemplem.

deliberadamente a cultura de uma elite exclusiva”, no Renascimento, os humanistas contrapunham-se a tendências populares como, por exemplo, o uso das línguas nacionais, preferindo escrever em latim para manterem distância das massas, “a fim de criar para si próprios um monopólio cultural, como uma espécie de nova casta sacerdotal.” E os artistas, ao se emanciparem tanto do poderio da Igreja quanto das guildas, colocaram-se “sob a custódia espiritual desse grupo.” Entretanto, apesar de nem todos os humanistas dominarem conhecimentos sobre arte, entre eles estão os primeiros leigos a expressar, com certa lucidez, julgamentos sobre a qualidade artística de obras. Por tal motivo, constituíram-se na primeira parcela do público “realmente capaz de formular um julgamento [...] o início do público apreciador de arte, em nossa moderna acepção do termo.” (HAUSER, 1995, p. 321-322)

Na Idade Moderna, a partir da consolidação da sociedade de classes4, o distanciamento entre arte e público, entrementes, foi se aprofundando, de modo especial e aparentemente irreversível. Nesse contexto, observa-se que o acesso do público à arte e as relações artista-público foram sendo transformados dentro dos padrões estabelecidos por essa nova ordem social, como se verá na seqüência.

A relação do artista com seu próprio trabalho também sofreu transformação: enquanto que, durante a Idade Média, a Igreja encomendava os trabalhos e, em geral, impunha à obra padrões formais e simbólicos, no período clássico, a nobreza foi a principal mentora das artes, ditando-lhes os padrões estéticos. Todavia, tanto a Igreja quanto a nobreza deixaram de exercer tal papel em função da

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Essa nova sociedade cindiu-se em duas classes fundamentais: a dos capitalistas - proprietários dos meios de produção e a dos proletários, que, para proverem sua subsistência, passam a vender a única mercadoria que lhes restou - a força de trabalho -, num mercado regido por leis próprias, estabelecidas à revelia do indivíduo produtor. Tais classes passaram, no movimento da história, a apresentar frações internas.

perda de poder sofrida como conseqüência do declínio da sociedade feudal, o que permitiu, enfim, aos artistas o gozo de uma relativa autonomia econômica e social: não mais necessitavam se submeter às “censuras morais e programas estéticos de uma Igreja empenhada em proselitismo” ou aos “controles acadêmicos e das encomendas de um poder político”5. (BOURDIEU, 1999, p. 101) Na Idade Moderna, o novo modo de produção, no seu processo de consolidação, deu corpo a uma ideologia - o liberalismo - assentada na defesa do ‘indivíduo’, da ‘propriedade particular’ (em especial, dos meios de produção) e da ‘liberdade’ (de ir e vir para comerciar e, em especial, para gerar e acumular riquezas). Essa ideologia passou a reger as relações entre as classes. Em tal contexto, o culto ao ‘indivíduo’ fez surgir e reforçou no artista uma pretensão à originalidade que ele não postulava enquanto tutelado pela Igreja e pela nobreza, o que sublinhou a liberdade de produção. Isso, entretanto, não teria vida longa num sistema de mercado.

A burguesia manufatureira e financeira em ascensão - agora configurada como o novo ‘público comprador’ - passa a estabelecer os critérios estéticos para a apreciação e compra das obras, apesar de ser - na sua grande maioria - um público néscio no que diz respeito à qualidade no campo das artes. Motivado por tal ausência de conhecimentos, característica da nova clientela, o mercado de arte cria, no século XVIII, a figura do marchand - um negociante de quadros e objetos de arte -, que atua como intermediário entre o artista e o público comprador. Entretanto, nessa condição, passa a interferir diretamente na produção da arte, quando se põe a oferecer contratos

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A utilização, neste trabalho, da obra A economia das trocas simbólicas, de Pierre BOURDIEU, justifica-se porque, apesar de o autor não ser dialético, adota uma postura teórico-metodológica crítica, o que configura suas análises dos determinantes da produção artística como importante contribuição para a compreensão das relações do artista com o sistema de arte e, conseqüentemente, com o público especializado e não especializado, ou seja, o grande público. As posições deterministas que eventualmente venham a transparecer não são assumidas pela autora.

de trabalho vitalícios aos artistas, os quais, em troca de teto e comida, devem produzir obras cujos temas são indicados pelo próprio marchand, de acordo com a encomenda dos compradores (CANCLINI, 1984, p. 98). Atropelada pela história, a liberdade para criar mostrou- se, então, fugaz e ilusória.

O artista, a partir de então, ignora quem será seu público, quem adquirirá seu trabalho, que uso fará dele. Diante desse usuário desconhecido, ou melhor, longe dele, o artista pode acreditar que é livre. Cria sua obra com toda ‘independência’, num recolhido isolamento. A atividade artística desembaraçava-se da preocupação com sua própria utilização. Constrói-se um mundo à parte, caracterizado por sua esplêndida inutilidade, sua gratuidade. (Galard apud CANCLINI, 1984, p. 99)

Ao se isolar em seu próprio ateliê, muitas vezes trabalhando sozinho (não mais coletivamente, como, por exemplo, na construção das catedrais medievais), sem contato direto com o público, o artista proporcionou condições para o surgimento do mito do ‘gênio criador’, que KANT exaltará em seu pensamento sobre arte ao final do século XVIII6; essa idéia, sob sua influência, será adotada pelo romantismo7: a classificação do verdadeiro artista como ‘gênio’, alguém dotado de

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Em 1790, KANT publica a Crítica da faculdade do juízo, a primeira sistematização da estética, na qual trata sobre as características do ‘gênio criador’ (KANT, 1992, p. 211-226) - idéia posteriormente adotada e acalentada pelo movimento filosófico e artístico do romantismo -, pela qual o artista passa a ser visto (e a se ver) como ‘alguém especial’, diferente do vulgo. Na obra, afirma que “o génio é a originalidade exemplar do dom natural de um sujeito no uso livre das suas faculdades de conhecimento [...] favorito da natureza, [...] como aparição rara, [...] o seu exemplo produz para outras boas cabeças uma escola, isto é, um ensinamento metódico segundo regras [...] extraídas dos produtos de seu espírito e peculiaridade.” (KANT, 1992, p. 224). KANT irá também exaltar a liberdade como fundamento único da ‘arte bela’: “de direito dever-se-ia chamar arte somente à produção mediante a liberdade, isto é, mediante um arbítrio que põe a razão no fundamento das suas acções”. (KANT, 1992, p. 206).

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Apesar de, no início, o movimento romântico ter significado, principalmente, uma reação de descontentamento frente aos resultados funestos da Revolução Industrial (segunda metade do século XVIII) para a maioria da população e, portanto, ter se mesclado a um forte sentimento de solidariedade com a miséria da classe trabalhadora, no âmbito das artes, historicamente, prevaleceu a posição individualista e elitista do ‘gênio criador’, bem ao gosto e em acordo com os interesses mercantis da classe burguesa, voltados para a ‘obra única’, original e exclusiva, que, por tais características, alcança altos preços no mercado, regido pelos ditames da ‘lei da oferta e da procura’.

qualidades ímpares, um ser iluminado por natureza, só ele capaz de criar.