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PRODUÇÃO CAPITALISTA E ARTE: UMA RELAÇÃO HOSTIL

2 RELAÇÕES ARTE-ARTISTA-PÚBLICO NA SOCIEDADE CAPITALISTA

2.4 PRODUÇÃO CAPITALISTA E ARTE: UMA RELAÇÃO HOSTIL

Para MARX, a produção material sob o capitalismo “é hostil a certos ramos da produção intelectual, como a arte e a poesia” (MARX, Teoria sobre a mais-valia, apud MARX, K; ENGELS, F., 1971, p. 64), produções de cunho espiritual. Faltou, contudo, uma justificativa para tal afirmação. Após se debruçar criteriosamente sobre todos os textos marxianos que versam sobre arte, trabalho, produção capitalista, relações entre arte e economia e arte e trabalho, VÁZQUEZ elaborou uma análise da questão, a qual se intentará, aqui, sintetizar.

De início, VÁZQUEZ faz duas ressalvas: a primeira é a de que a produção material não hostiliza a totalidade da produção espiritual. É o caso das ciências da natureza, por exemplo, que floresceram sob o capitalismo, inclusive por se constituírem em esteio da produção material e, por sua vez, serem promotoras do progresso. No entanto, deve-se considerar que a arte e a poesia, apesar de não

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No Brasil, a Bienal de São Paulo, criada em 1951, constitui-se em exemplo da interferência das classes dominantes para desviar da rota progressista a produção artística nacional, numa clara tentativa de alinhá-la às tendências mundiais - leia-se dos países hegemônicos -, como denunciou Fernando Pedreira no texto “A Bienal - impostura cosmopolita”, publicado em Fundamentos. ( apud AMARAL, 1987, p. 248-251)

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Cabe aqui recordar que as diretorias dos museus são, de modo geral, cargos de confiança, cujos ocupantes raramente deixam de se submeter às políticas culturais determinadas pelo poder estabelecido.

corresponderem a nenhuma necessidade ou exigência da produção material e de sofrerem sob a determinação econômica, ainda assim continuam florescendo. (VÁZQUEZ, 1978, p. 171-177) A segunda ressalva constitui-se mais num alerta: deve-se ter em conta que a contradição entre arte e capitalismo independe das posições do artista como indivíduo frente às relações sociais estabelecidas pelo capital, ou da ideologia encarnada em sua obra, ou, ainda, da tendência estética expressa em seu trabalho. (VÁZQUEZ, 1978, p. 179) Trata-se, sim, da contradição objetiva da sujeição do produto artístico às leis

que regem a produção e o consumo no sistema capitalista.

Da compreensão das relações sociais e de produção geradas pelo processo produtivo capitalista deduz-se a impossibilidade para o artista de ser conivente24 com a banalização da arte e do processo criador, bem como com a desumanização das relações sociais e de produção impostas pela estrutura do sistema capitalista. A coisificação e a banalização da existência humana sob esse regime, independentemente do grau de consciência histórica e política do artista, levam-no a inconformar-se ou rebelar-se contra o sistema que gera tal realidade: o artista “... é obrigado a criar negando este mundo para salvar a si mesmo e, consigo, sua criação” (VÁZQUEZ, 1978, p. 180; 184) numa atitude semelhante à dos românticos, no início do século XIX.

Indignação à parte, pelo processo anteriormente descrito fica patente a incompatibilidade entre a produção artística - que se pauta

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Convém lembrar que a atitude de submissão e de conivência de grandes contingentes de artistas e intelectuais registrada na sociedade atual não foi tácita no início do estabelecimento da sociedade capitalista. No início da Era Moderna, no embate para a demolição do mundo feudal, e mais especificamente no Renascimento, a arte somou forças aos ideais da burguesia para construir o ‘novo’, pois os ideais da classe burguesa emergente representavam a superação de uma sociedade decrépita. No entanto, tal harmonia perdurou tão somente até que as relações sociais geradas por essa nova sociedade mostraram suas contradições mais agudas e a burguesia, que antes se colocava como representante de toda a nação, passou a se comportar como classe. Os primeiros a perceber que a vida burguesa não merecia ser exaltada e a tomar posição para negá-la ou se rebelar contra ela foram os artistas e intelectuais, num movimento amplo denominado romantismo. (VÁZQUEZ, 1978, p. 180-184)

pelo trabalho de criação e expressão livres (trabalho concreto) -, e a produção capitalista, em série, que usa a exploração do trabalho impessoal (trabalho abstrato) para a produção da mais-valia. Uma constitui-se na negação da outra. Da mesma forma, com relação ao produto final, ao objeto concreto que resulta de ambas as produções, há uma distância imensurável. Enquanto a obra de arte é única25, fruto da criação de seu produtor, - que, no caso de sua comercialização, pode vir a auferir integralmente do valor pecuniário que ela porventura adquira -, contrariamente, o produto da indústria é realizado em série, seu produtor deve obedecer a um processo planejado e preestabelecido por outrem, do qual ele participa com a feitura de algum fragmento, cuja execução é, em geral, rápida e repetitiva. Não há condição de imprimir a essa parcela do produto alguma marca de individualidade e, desta forma, fica impossível ao trabalhador reconhecer-se no que faz, reconhecer-se como homem produtor. Além disso, o valor produzido coletivamente (a riqueza nova em que se constitui a mercadoria ao final do processo) não guarda a menor proporção com o salário que é pago ao trabalhador individual pelo dispêndio de sua energia vital na produção.

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A obra de arte, enquanto produto originário - no sentido de sua criação- , permanece como única e seu valor no mercado da ‘arte erudita’ ainda é medido, entre outros parâmetros, pela originalidade, independentemente de se multiplicarem as formas de reprodução disponíveis na contemporaneidade, reprodutibilidade essa de que trata BENJAMIN. É claro, entretanto, que o grau de acesso à arte, em função da possibilidade de ela ser reproduzida em larga escala, muda radicalmente as relações que se vão estabelecendo entre a obra e o público, inclusive porque a condição de ser facilmente apropriada, de se transformar em uma mercadoria de consumo como qualquer outra, desmitifica a obra, destrói-lhe a ‘aura’ e põe em xeque sua autenticidade. (BENJAMIN, 1994, p. 167) Todavia, é interessante lembrar que as reproduções em série são produto do campo da ‘indústria cultural’ e que esta, fundamentalmente heterônoma, mantém relações de dependência com a ‘arte erudita.’ (BOURDIEU, 1999, p. 143-145) Por esse motivo, no caso de obras plásticas, simultânea e contraditoriamente, a ampliação da reprodução, que facilita a posse, pode reforçar a ‘aura’ da obra original, ao gerar a ilusão de uma proximidade da obra originária, que pertence ao campo da ‘arte erudita’ - por consenso social tida por ‘arte superior’ e inatingível. “A ‘cultura símile’, substituto degradado e desclassificado da cultura legítima” (BOURDIEU, 1999, p. 145) é, por isso mesmo, uma referência a ela e, como tal, uma confirmação à ordem de legitimidade a que pertence a obra original. Parece lógica a suposição de que o simples interesse em possuir uma cópia remete à existência de um objeto original que, de alguma forma, é tido por valioso, seja essa atribuição de valor uma atitude conscientemente tomada ou fruto de inculca pelo sistema de ensino e disseminada no imaginário popular.

Infere-se, ao finalizar este capítulo, que, para o artista plástico, engajar-se na produção em série da indústria cultural, ou então, produzir uma arte para decoração, que serve apenas para a mercantilização - submetendo-se aos ditames do mercado e obrigando- se a sufocar a própria liberdade para criar -, significa, em síntese, assumir-se, profissionalmente, como produtor de mais-valia para os meios de comunicação de massa ou para marchands e galeristas. Por outro lado, ao aderir à concepção da ‘arte pela arte’ da arte erudita, e, assim, produzir obras centradas em meras questões formais, trabalhos divorciados da vida e, como tal, empobrecidos em conteúdo, o artista, via de regra, deve negar a autenticidade, a verdade de sua arte. Torna- se, então, alienado não apenas como profissional, mas como indivíduo, por não desenvolver, na produção de suas obras, uma consciência social e histórica. Em todos esses casos, o artista plástico nega-se a si mesmo como trabalhador livre, como construtor consciente da história. Quando assim age, dificilmente poderá manter a dignidade profissional e a autonomia, ou seja, o estatuto de artista.

À tentativa capitalista de impor uma visão única de arte como mercadoria, submissa às leis de mercado contrapõe-se a concepção materialista de arte26, que, apesar de não ter sido tratada de modo

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É preciso esclarecer que não se trata, aqui, da concepção de arte expressa pela doutrina oficial soviética do ‘realismo socialista’ (termo cunhado por GORKI), sectária e dogmática, imposta por Stálin. Esse realismo, que se desenvolveu em meados dos anos 30, tentou impor normas e fixar modelos para a arte dentro dos princípios da Revolução de Outubro, o que, praticamente, numa postura reducionista, restringia a finalidade da arte à propaganda política. Segundo LUKÁCS, os artistas recebiam um conteúdo “já elaborado de forma científico-propagandística” e buscavam “torná-lo artístico” (1968, p. 269) submetendo- se a um processo que cindia a unidade conteúdo-forma; ou seja, a substância da obra, seu conteúdo não era artístico. Tal processo resultou num formalismo vazio que - em qualquer situação -, dificulta ou impede que um trabalho se configure como obra de arte. A estética do realismo socialista fez com que ele, “ao deixar de postular um tratamento infinitamente diversificado do real, estabelecesse normas e fixasse modelos, convertendo-se assim numa estética normativa, incompatível com as posições marxistas em que pretendia fundar-se.” A crítica dos métodos de Stalin foi realizada após o XX Congresso dos PCUS, começando, então, “um processo de restauração dos princípios marxistas-leninistas que haviam sido esquecidos ou desnaturados» em busca do “restabelecimento de seus laços com a prática, com a própria vida.” (VÁZQUEZ, 1978, p. 21-22). Para mais esclarecimentos sobre o ‘realismo socialista’ do ponto de vista de um crítico interno, veja-se FISCHER. (1987, p. 124-132)

aprofundado por MARX, mereceu a atenção de LUKÁCS, BAKHTIN, FISCHER, GOLDMANN, KOSÍK, MÉSZAROS e VÁZQUEZ, como se verá no capítulo 4.

Antes, porém, cabe perguntar: por que a arte não deve se transformar em simples mercadoria? Por que não deve ser assumida como objeto de consumo sofisticado? Por que a arte deveria ser acessível à maioria dos indivíduos? Se, historicamente, foi privilégio de poucos, por quais motivos se deveria, hoje, advogar uma ‘arte para todos’?

Pode-se, igualmente, perguntar o motivo de a arte social se imiscuir no cotidiano, ir à praça, às ruas em busca do seu público, como se observou em muitos dos eventos de arte, no Brasil (capítulo 1). Afinal, em que a arte pode beneficiar os indivíduos, ou melhor, que papel pode desempenhar a arte no processo cotidiano de ‘fazer o homem se tornar homem’? Em que pode corroborar com sua educação? Esse é o tema do próximo capítulo.

3 ARTE E EDUCAÇÃO: DOS NEXOS POSSÍVEIS NA VIDA