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6. A MORTE COMO ESPETÁCULO

6.2 A arte de esquartejar e retalhar baleias: atração turística no litoral paraibano

... que delícia macabra, esta que vê um arpão perfurar um animal, explodindo-lhe internamente uma bomba, e ele ‘propiciando’ uivos de dor.

João Silva de Carvalho Filho50

A caça aos cetáceos permaneceu como parte constituinte da economia, da cultura e da paisagem do município de Lucena, sem grandes questionamentos éticos ou relacionados ao direito dos animais até início dos anos de 1980. Aliás, a morte das baleias e seu retalhamento passaram a se constituir em um atrativo a mais para quem desejasse visitar o litoral norte do estado da Paraíba. A então chamada “pesca da baleia” passou a ser explorada, em um certo período de sua trajetória, como atração turística da região, sem maiores constrangimentos para seus protagonistas.

Nas reflexões que se seguem, através de uma releitura nos jornais e revistas da época, de uma revisão bibliográfica e através de depoimentos orais, retomou-se a discussão sobre questões éticas e de bem-estar dos animais, relacionando-a com questões da caça comercial dos cetáceos realizada na Paraíba e com o turismo predatório mobilizado em torno da atividade baleeira. Uma discussão que versa, de uma maneira geral, sobre ética, comportamento humano e tradição cultural, mas também sobre dor, sofrimento e morte sistemática de algumas espécies de animais que, apesar de toda a luta dos ambientalistas, ainda continuam sendo molestados e mortos no Brasil e em outros países. Espécies animais que ao longo de séculos vêm sendo sacrificadas e exploradas, seja para divertimento e lazer ou para abastecer com seus corpos e derivados o mercado para atendimento de necessidades humanas e enriquecimento de grupos empresariais. Em nome de uma tradição legada por antepassados, muitos animais são transformados em objetos de espetáculos públicos ou privados, para divertimento e lazer de determinadas comunidades.

A caça e o retalhamento dos animais (Figura 9) usados em certos momentos como atração turística, como divertimento e até lazer para a comunidade local e regional, como

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João Silva de Carvalho Filho (popularmente conhecido como João Balula), falecido em 20 de fevereiro de 2008, era paraibano e membro do movimento negro da Paraíba. Na época do movimento pelo fim da atividade baleeira em Lucena, Balula era membro da Associação Nordestina de Arte-Educadores da Paraíba (Anarte), tendo participado ativamente na luta pelo fim da caça à baleia no litoral paraibano. Inclusive, Balula ficou muito conhecido por percorrer as principais ruas de João Pessoa, no ano de 1985, transportando uma réplica artesanal do animal que simbolizava a luta pela vida.

72 ocorria no estado da Paraíba, pode ser interpretada como resquícios de uma tradição cultural herdada ainda dos habitantes da América portuguesa nos primórdios da colonização.

Figura 9. Retalhamento de uma baleia na plataforma da COPESBRA.

Fonte: Revista Veja 29 de maio de 1985, p. 66.

Clássicos escritos por Frei Vicente do Salvador, Louse-François de Tollenare, José Bonifácio de Andrada e Silva e Daniel Parish Kidder, fazem referência ao espetáculo “fascinante” que a caça à baleia no litoral da América portuguesa oferecia, quando o abate dos maiores mamíferos do planeta havia se iniciado na então capitania da Bahia de Todos os Santos no século XVII para retirada do óleo, servindo ao mesmo tempo como espetáculo - com traços de exotismo - para comunidades que habitavam algumas áreas do litoral brasileiro.

Reveste-se de especial significação um trecho da narrativa de Louse-François de Tollenare, produzida entre 1816 e 1818 sobre esta prática na Bahia, quando se referindo a caça à baleia na ilha de Itaparica, o viajante francês descreveu com certa riqueza de detalhes o alvoroço causado pela população de Salvador que, em terra firme, se posicionava nos lugares mais propícios, na praia ou nas janelas de casa, para melhor observar a luta travada no mar entre os baleeiros e os grandes animais marinhos. Além da caça em si, a retirada dos mamíferos mortos e sua chegada à praia também eram apreciadas por curiosos, que se aglomeravam em terra firme com o objetivo de assistir o arrasto e o retalhamento artesanal dos enormes animais abatidos próximo à costa:

Um dos espetáculos mais interessantes que oferece a residência na Bahia é o da pesca de baleias. Esta pesca se faz no próprio ancoradouro e até no meio dos navios fundeados diante da cidade. Pode-se apreciá-las das janelas de casa; mas, para melhor observá-la cumpre transportar-se à praia que separa a cidade do cabo de Santo Antônio (...). O arpoador, sempre de pé na proa, indica ao patrão todos estes

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movimentos e este governa de acordo; a luta perigosa entre o poderoso monstro e a frágil embarcação dura de trinta minutos até três a quatro horas, e apresenta um espetáculo aterrador. O arpoador repete os seus golpes, a baleia avermelha as águas com o seu sangue, dá pancadas com a sua formidável cauda, arrasta a chalupa até duas e três léguas mar em fora, e morre sem ter podido desembaraçar-se dos terríveis ferros que a prendem.51

A caça à baleia nos três primeiros séculos da colonização já chamava a atenção pela violência e crueldade com que era praticada. Também, pelo “espetáculo” que produzia para os mais curiosos, numa intensa campanha organizada por grupos de homens, com suas estratégias e seus aparatos técnicos, contra a força dos enormes mamíferos marinhos que precisavam ser capturados para o atendimento, inicialmente, de uma demanda local: utilização do óleo para iluminação pública e dos engenhos de cana-de-açúcar, calafetagem de barcos e navios e ainda para a confecção de argamassa para a construção civil e de fortificações (ELLIS, 1969).

Espetáculos envolvendo homens e animais que se constituíram em divertimento público não são, portanto, um fenômeno recente na relação sociedade e natureza. Aliás, combates sangrentos entre homens e animais oferecidos como forma de entretenimento, e que levavam quase sempre os últimos à morte, remontam à antiguidade quando gladiadores e feras selvagens, principalmente tigres e leões trazidos das colônias africanas, lutavam em feriados e dias festivos nas suntuosas arenas construídas durante o apogeu do Império Romano. Esse tipo de entretenimento, comum na época, atraía pessoas de diversas regiões da Europa, servindo de diversão e delírio para a plebe e a nobreza presentes aos espetáculos romanos:

Combates com animais selvagens prosseguiram durante a era cristã e, aparentemente, diminuíram gradualmente de número apenas porque a riqueza e a extensão decrescente do Império (romano) tornaram cada vez mais difíceis a obtenção de animais selvagens. Na verdade, é ainda possível assistir a combates desse gênero, sob a forma moderna de touradas na Espanha e na América Latina.52

Nos dias atuais, apesar de toda complexidade que envolve o debate em torno do conceito de libertação animal e da existência em vários países de leis de proteção que tentam impedir certas práticas de molestamento de animais, de certo nível de organização e de resistência dos movimentos de proteção e defesa dos direitos dos animais em todo o mundo,

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TOLLENARE, Louse-François de. Notas Dominicais tomadas durante uma viagem em Portugal e no

Brasil em 1816, 1817 e 1818. Bahia, Livraria Progresso Editora, 1956.

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74 ainda se verifica em certos países da Europa e em algumas nações da América Latina, espetáculos com touros em arenas ou soltos nas ruas, mobilizando centenas de pessoas. Como se estivessem em estado de êxtase, de transe, as pessoas se divertem sem considerar o sofrimento dos animais e as implicações éticas que essas práticas cruéis suscitam, principalmente em situações em que o desfecho final, como no caso das touradas e da caça às baleias, se dá com a morte do animal depois de horas de tortura, sofrimento e dor.

No Brasil, ainda predominam certas práticas de tortura com animais. Os infratores sempre encontram mecanismos para burlar as leis de proteção ambiental e, na maioria das vezes, com a conivência de quem deveria fazer cumpri a legislação. Um caso que ilustra bem a prática cruel com animais para divertimento e lazer no país, mas que para alguns é considerada parte das tradições da região trazida pelos açorianos há pelo menos dois séculos, é a “farra do boi”, como ficou conhecido no estado de Santa Catarina um ritual de molestamento e morte de bovinos que em determinadas épocas do ano são sacrificados com crueldade em algumas cidades catarinenses, principalmente na capital Florianópolis.

Na tradicional “farra do boi”, os maus tratos com os animais são evidentes. O ritual começa com o confinamento do animal, que é separado do rebanho ficando sem alimento disponível por vários dias. O objetivo dos organizadores é deixá-lo cada dia mais enfurecido, preparado para o dia da “brincadeira”. Para aumentar o desespero do bovino, comida e água são colocados em locais onde o animal pode ver, mas não tem como alcançá-las. O ritual tem prosseguimento quando o animal enfurecido é solto e perseguido nas principais ruas da cidade. Homens, mulheres e crianças, carregando pedaços de pau, facas, lanças de bambu, cordas, chicotes e pedras, perseguem o animal por horas, até levá-lo à completa exaustão. Quando a prática é feita em Florianópolis, o animal, cujo desespero chega ao extremo, tenta fugir, se livrar de seus algozes correndo em direção ao mar. Sem saída, a perseguição e os maus tratos findam quase sempre com o afogamento do mesmo. Depois de morto, o animal é esquartejado e a carne dividida entre os “farristas”, uma festa acompanhada de churrasco e

regada a bebidas alcoólicas encerra o ritual.53

Quando ainda não havia sido proibida, todos os anos centenas de bois eram torturados e mortos em vários municípios daquele estado. A “farra do boi” ocorria com mais frequência (e mesmo proibida ainda ocorre) na época da Páscoa, culminando na Sexta-feira Santa. Algumas comunidades de Santa Catarina ao celebrarem casamentos, aniversários, jogos de

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Informações mais detalhadas sobre o evento da farra do boi que ocorre em Santa Catarina podem ser obtidas pelo site <http://www.farradoboi.info/noticias.shtml>. Acesso em 20 de março de 2011.

75 futebol e em várias outras ocasiões consideradas especiais, também praticava esse ritual com os bovinos.

A “farra do boi”, considerada uma das festas mais tradicionais do estado catarinense, que tem a tortura e a morte como espetáculo, foi objeto de muitos questionamentos de setores da imprensa nacional e de organismos de proteção e defesa dos animais, entre eles a World Society for Protection of Animals – WSPA/Brasil.

Com o apoio da mídia, principalmente da televisão, a WSPA/Brasil se mobilizou para pressionar as autoridades brasileiras com o intuito de proibir a “farra do boi” na região Sul do Brasil. No dia 03 de junho de 1997 a “farra do boi” foi finalmente proibida no estado catarinense por força de Acórdão do Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário número 153.531-8/SC; RT 753/101), depois da Ação Civil Pública de nº 023.89.030082-0. Na decisão tomada pelo STF, explícita no Acórdão, a denominada “farra do boi” foi considerada cruel, passando a ser enquadrada em crime punível com até um ano de prisão para quem pratica, colabora, ou no caso das autoridades, omite-se de impedí-la.

Embora a prática tenha sido proibida pela justiça, casos isolados ainda ocorrem todos

os anos no estado de Santa Catarina.54 As autoridades, responsáveis por fazer cumprir a lei,

fazem vista grossa ao ritual, e os animais continuam recebendo maus tratos em nome de uma tradição que se estende há quase dois séculos.

A demanda por espetáculos como touradas, vaquejadas, rinhas, farra do boi e “pesca da baleia”, esta última promovida pela extinta COPESBRA inspira reflexões filosóficas importantes sobre essas práticas: o que motiva centenas, até milhares de pessoas, ainda hoje, a procurarem esse tipo de “espetáculo”? O que leva as pessoas a saírem de suas casas para ver um animal ser torturado, morto, esquartejado e retalhado? Respostas para essas indagações sugerem certo grau de dificuldade dado o viés psicológico e cultural envolvido na questão. Mas parece coerente sugerir que nem todas as pessoas procuram este tipo de “espetáculo” em circos, arenas e parques, pelo simples prazer de se deleitar, de se sentir bem com a morte de outros animais, que é quase sempre feita de maneira cruel e brutal. Talvez, a maioria das pessoas seja seduzida por um sentimento cultural de superioridade humana para com os outros animais.

O antropocentrismo, a percepção da preponderância e do domínio humano sobre os outros seres vivos, sobre o qual escreveu Thomas (2001), talvez seja a mais forte motivação

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Farra do Boi: Animal foge da população e invade hotel em Florianópolis, Jornal do Brasil Online: 22 de abril de 2011. Disponível em: http://www.jb.com.br/pais/noticias/2011/04/22/farra-do-boi-animal-foge-da-populacao- e-invade-hotel-em-florianopolis/Acesso em junho de 2011.

76 para que espetáculos com animais ainda exerçam atração sobre pessoas das mais diferentes origens e culturas, independentemente do nível de inserção econômica, social e cultural. Pessoas das mais variados origens sociais participam desses rituais.

Um exemplo que ilustra a atração que alguns “espetáculos” com animais exercem sobre as pessoas, independentemente da condição social e dos riscos que a “diversão” oferece, pode ser demonstrado com o problema que envolveu recentemente o publicitário baiano José

Eduardo Cavalcanti de Mendonça55 e o vereador Jorge Luiz Hauat (conhecido por Jorge

Babu) do Partido dos Trabalhadores, quando foram presos pela Polícia Federal no ano de 2004 no Clube Privê Cinco Estrelas participando, como apostadores, em uma rinha de galo em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A presença de autoridades, de pessoas

importantes56 em eventos dessa natureza pode ser sugerida para demonstrar que espetáculos

exóticos e cruéis, de morte de animais em arenas, ainda fazem parte do universo de lazer, de “hobby” de pessoas pertencentes a grupos sociais os mais diversos.

Evidentemente que o caso que envolveu a prisão do publicitário e do político carioca (rinha de galo) está situado em década diferente do turismo baleeiro em Lucena. São momentos distintos, caracterizados por peculiar historicidade, não obstante elementos de permanências e continuidades são observados e devem ser considerados nas reflexões que envolvem a temática.