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A arte literária como um procedimento

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3 ENTRE O CORPO E ARTE, UMA TRAVESSIA

3.2 A arte literária como um procedimento

A arte literária é um procedimento. Não existe arte sem imagens, pois ela é criadora de símbolos, os quais são carregados de significados. Para Ezra Pound (2006, p. 33), a literatura é uma linguagem carregada de significado até o máximo grau possível. “[...] Literatura é novidade que permanece novidade”:

[...] a literatura não existe num vácuo. Os escritores, como tais, tem uma função social definida, exatamente proporcional à sua competência como escritores. Essa é a sua principal utilidade. Todas as demais são relativas e temporárias e só podem ser avaliadas de acordo com o ponto de vista particular de cada um. (POUND, 2006, p. 36).

A arte é um meio de devolver a sensação de vida, de sentir os objetos e a vida a sua volta. A arte literária, então, devolve à realidade um ponto de vista sobre algo, despertando sensações. Como exemplos temos as obras de artistas como Marcel Duchamp e Clarice Lispector, que, cada qual a sua maneira, valeram-se da estratégia de fazer com que o espectador vá além ao usar o ready-made para a composição de uma obra de cunho artístico, promovendo um procedimento voltado à percepção, ao experimento. Uma estratégia radical, de origem francesa, conhecida como objet trouvé. Refere-se ao uso de objetos industrializados, na maioria das vezes, apenas como eles são. Nesse momento é importante salientar que o dadaísmo foi um

movimento de ruptura que ocorreu em 1915, cuja característica principal foi a publicação da antiarte para provocar a sociedade da época. Marcel Duchamp apresenta aos espectadores uma obra chamada “fonte”, que na verdade não passava de um urinol masculino, sem nenhuma intervenção artística ou histórica. A arte dadaísta vai contra a arte “essencialmente retiniana”. Em 1960, surgem os neodadaístas Rauschemberg e Kosuth, que resgatam as influências duchampianas, rivalizando com Picasso, e propagam as suas características na arte contemporânea. Dessa forma, em 1968, a autora de A paixão segundo G.H. traz para a sua literatura elementos desse momento: seleciona um objeto nada convencional para a literatura – uma actante contracena com uma barata, um objet trouvé, imprestável, asqueroso, transformado em algo de cunho altamente filosófico. “Era isso era isso então. É que eu olhara a barata viva e nela descobria a identidade de minha vida mais profunda. Em derrocada difícil, abriam-se dentro de mim passagens duras e estreitas.” (LISPECTOR, 2009, p. 39).

Clarice vale-se de uma estratégia duchampiana e, por isso, encontramos na barata de G.H. algo intrigante: um crivo. Um problema suscitado que precisa ser pensado, vivenciado e ultrapassado. Um ready made, como fez Duchamp ao romper com a estética artística da época. Mostrar um objeto da construção civil como obra de arte causou estranhamento em toda a plateia. Urinol e roda de carro são objetos feitos com finalidade prática, e não artística, mas Duchamp desviou os holofotes para essa problemática e provocou questionamentos e estranhamentos quanto à sua expressividade artística. Caracteriza-se por estranha, uma operação que provoca uma fuga à lógica, um paradoxo: uma mulher que passa horas analisando uma barata, sentindo nojo, após esmagá-la decide provar do seu interior.

Em A paixão segundo G.H., o objeto artístico não está fundamentado no dadaísmo, mas no modernismo contemporâneo. Note que a barata aparece para introduzir um discurso, uma psiconarrativa que atribui uma nova forma de entender e experimentar o novo objeto encontrado, porém, algo inusitado ocorre: G.H. não “é”. Ela busca por Ser e, de acordo com Maria Teresinha Martins (2007), “o Ser é a Palavra, pois a historicidade do Ser, far-se-á mediante o pleno domínio da linguagem”. Pode se dizer que a linguagem configura história e isso é a existência. De acordo com Heidegger (1967, p. 43), a existência, ou seja, o homem se essencializa de tal sorte que ele é o lugar. G.H., portanto, é o lugar que ocupa em sua existência. Há momentos em que a barata revela situações-símbolos que podem ser equiparadas à condição da personagem, pois, para a arte, ambas estão na condição de objet trouvé. Nesse livro, o que chama a atenção é que a arte transcende a linguagem, de modo que a existência se configura quando a história da personagem é resgatada por meio do corpo-linguagem, corpo-experimento, corpo que vai de reencontro à palavra silenciosa sinestésica, que restou quando não se consegue

exprimir nada frente à realidade. Ao findar o discurso das palavras, resta o silêncio do corpo transformado em linguagem. Diante do exposto, a linguagem brota e dá origem a uma narrativa ontológica, surpreendente:

G.H. remonta os acontecimentos passados para verbalizá-los e adquirir por esse intermédio a vida. Os fatos evocados suscitam outros acontecimentos que produzidos pela rememoração adquirem vida literária. Enquanto ela procura se encontrar, seu eu está sendo construído, montado, recriado. (MARTINS, 2007, p. 146).

A barata é uma alegoria, um elemento simbólico que permite muitas interpretações: luta de classe, briga pelo poder e hierarquias, força, resistência, luta pela sobrevivência, alimento na cultura oriental – o inseto possui características que lembram a empregada, um ser inferior aquisitivamente, que não tem quase nada, vive como hóspede, recolhe-se em um quartinho, é morena, tem cílios e olhos grandes, lábios expressivos, é submissa e ambas possuem um interior que provoca transcedência em quem tem coragem de, apesar da aparência estranha, experimentá-lo. A empregada desenhou na parede uma pintura, uma observação do que para ela seria a felicidade, produção dos seus sentimentos, uma expressão vinda de suas entranhas. G.H. ficou horas analisando o desenho feito a carvão, irou-se, ofendeu-se, odiou a empregada e o ódio acumulado foi atirado para o inseto, cujo produto do seu interior, tal como o do interior da empregada, teve função desautomatizante, o que se torna um prato cheio para a crítica. Foi a própria Janair, com toda a sua insignificância, que fez uma grande leitura de sua patroa e do contexto em que ela estava inserida, o que ocasionou uma transcendência em G.H.

Janair, acostumada a viver nos escombros da sociedade, excluída, nem se preocupou ao ser mandada embora do lar de sua patroa. Ainda, analisou-a e deixou desenhos registrados na parede da casa de G.H., expressando, por entre os “vagalhões de mudez”, traços evidentes de que a patroa precisava transmutar-se, compreender-se e edificar seu reino que acabara de ruir, porque a protagonista deixara de Ser a algum tempo. Temos, então, um romance metalinguístico, que revela ser a fraqueza tão pertinente ao gênero humano quanto respirar, mas não se limita a isso, pois abrange a pequenez e a grandeza do nada que habita em nós. Na obra A paixão segundo G.H., esse caráter paradoxal da linguagem e também da obra de arte está em evidência.

Como entendemos, personagens fragmentados portam características de um grande marco histórico-literário: o dadaísmo. Esse momento trouxe uma grande contribuição para a literatura: a arte de chocar o espectador com o que é exposto. Um choque polemiza, desautomatiza e tem grande valia quando se trata de obra de arte – os vanguardistas precisavam

reformular seus conceitos e renová-los, objetivo atingido principalmente na arte contemporânea, que passou a romper com a estrutura convencional até então vigente.

A arte literária de Clarice Lispector também vale-se de readymade. Os olhos, que já estavam acostumados a uma espécie de leitura, de repente se deparam com um discurso psicológico que espelha e evidencia uma polissemia estética. Diante dos fatos narrados, a arte se manifesta e é apresentada, talvez uma demonstração asquerosa diante do leitor, que é convidado a olhar para si. É preciso desafiá-la, ir além do seu aspecto grotesto para experimentá-la e definir ou recusar caso de fato se trate de uma obra de arte.

O discurso de G.H. é uma experiência estética nova, provoca um conceito, é um convite para um rendez-vous, um encontro entre a obra de arte, o autor e o leitor. Uma passagem que revela quase uma blague, um episódio cômico em que uma barata passa a ter um sentido cósmico, um objeto metafísico, mas parte para um drama filosófico-existencial. O readymade provoca no espectador/leitor a sensação estética de que pode questionar e lançar avante suas próprias conclusões. Independente do gosto, a arte passa a ser também uma experiência, um problema, e não apenas mera representação do real. Cabe ao leitor/espectador o papel de afirmar se o que ele vê ou lê é ou não é arte, assim como fez Duchamp ao desafiar toda a vanguarda, expondo um urinol como sendo uma “fonte” e realizando uma provocação a esse respeito.

O livro A paixão segundo G.H. nunca vai parar de instigar o leitor, pois não é uma obra estanque, limítrofe, sendo plena de significações. A barata, como um readymade, é um objeto que sempre propõe um algo a mais, sempre será fonte e objeto de novas interpretações.

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